Podemos encontrar o seu nome na ficha técnica das revistas mensais ou de (algumas) edições especiais da National Geographic desde 2005. Porém, o início do percurso de Erica Cunha e Alves na tradução remonta à década de 1990, quando começou, como freelancer, a verter conteúdos do inglês para as edições portuguesas de revistas como a Official PlayStation, Game Boy e DVD Review. As tecnologias não a assustam: afinal, Erica foi a primeira mulher a fazer análises de videojogos em Portugal, neste caso para a Mega SCORE (assim mesmo, em caixa alta). 

No  seu vasto currículo, conta-se ainda um mestrado em História e Cultura das Religiões pela Universidade de Lisboa, a co-fundação de uma empresa de consultoria nos ramos da tradução, edição e revisão de textos e interpretação em conferências, para além da tradução de um livro que possivelmente até já lhe passou pelas mãos: O Segredo da Apple, de Adam Lashinsky. E se a conversa for sobre revistas, podemos acrescentar que como tradutora, extra-National Geographic, Erica deixou marca na Vogue, GQ e Máxima. Como agente dupla – tradutora e jornalista de viagens – guiou-nos várias vezes na Rotas & Destinos durante uma década.

No dia-a-dia, a nossa entrevistada trabalha com vários idiomas. Além do português, trata o inglês por tu (mais frequentemente), e o castelhano e francês por você (menos vezes). Para a National Geographic, o idioma dos textos de origem é sobretudo o inglês, mas também traduz da língua de Cervantes para a de Camões.

Quando lhe pedimos uma expressão ou frase que já lhe deu luta ou que partilhe uma situação em que ficou "lost in translation" durante algum tempo, Erica responde: "Não me ocorre nada de momento. Tenho a cabeça demasiado cheia de palavras." Seja, então, bem-vindo às palavras transmissíveis e ao local de trabalho de Erica, onde "chá ou água em cima da mesa e silêncio são obrigatórios."

NG: Comecemos por uma pergunta elementar: que ingredientes deve ter, no seu entender, uma boa tradução?

ECA: Respeito pelo original, pelo autor, mas sempre tendo em mente a compreensão pelo leitor.

NG: Costuma ter em mente um leitor-tipo do texto no qual está a trabalhar? 

ECA: Identifico-me sempre com o leitor porque já traduzi de tudo um pouco. Por exemplo, quando traduzia para a Vogue ou revistas de videojogos não “falava” da mesma maneira que “falo” com um leitor da National Geographic. O mesmo se aplica a artigos científicos. A linguagem é outra.

"A médio prazo [com a inteligência artificial na equação] talvez nos tornemos cada vez menos tradutores-tradutores e mais tradutores-revisores, mas a necessidade de conhecimento e técnica continua presente."

NG: Considera-se regularmente uma potencial leitora dos artigos que traduz?

ECA: Sim, sou sempre leitora das minhas traduções. Faz parte do meu método deixar algum intervalo entre tradução e revisão para já “ler” e não só “rever”.

NG: Que tipo de temas lhe passavam ao lado antes de começar a colaborar com a National Geographic?

ECA: Sobretudo a parte mais profunda das questões sócio-políticas. São reportagens, por vezes, dolorosas de traduzir. As notícias do dia não nos dão o mesmo conhecimento que estes relatos, resultantes de investigações intensas.

NG: Quais os projectos editoriais que lhe deram mais prazer integrar? 

ECA: Sempre fui apaixonada por astronomia e física. As minhas leituras facilitam-me o trabalho, pois estou familiarizada com a terminologia. A minha formação em História, com especialização em História e Cultura das Religiões e um grande foco no Próximo Oriente Antigo, também ajuda nessas áreas. Para além disso, tudo o que aprendi sobre vida selvagem nestes quase 20 anos de National Geographic faz com que seja um tema com o qual também me sinto à vontade.

NG: Quando domina o tema é mais fácil traduzir... ou não é assim tão linear?

ECA: Claro que dominar o tema facilita a tradução, mas nem sempre algo que me encante é fácil de traduzir. A aprendizagem é um processo eterno e são os textos mais técnicos, embora mais desafiantes, que mais me ensinam.

"A minha formação em História, com especialização em História e Cultura das Religiões e um grande foco no Próximo Oriente Antigo, também ajuda [a traduzir textos] nessas áreas."

estante
Erica Cunha e Alves

Numa das estantes da tradutora, encontramos o Dicionário do Antigo Egipto, uma obra colectiva de autores portugueses coordenada por egiptólogo Luís Manuel de Araújo. Esta é uma das muitas áreas de interesse de Erica Cunha e Alves.

NG: Quer partilhar com os leitores da National Geographic alguma prática curiosa relacionada com a sua profissão?

ECA: Por vezes, quando estou a trabalhar em projectos mais longos e científicos, tenho flashes em que me lembro de uma palavra melhor para transmitir uma ideia e envio emails a mim mesma.

NG: Como olha, por exemplo, para ferramentas como o Linguee, Google Translator ou DeepL? Como complementos ou ameaças à profissão, ou ambas?

ECA: Complementos. São dicionários, bases de dados, assistentes que podem sugerir uma palavra que não nos ocorre quando estamos em busca de um sinónimo, por exemplo. Não me sinto ameaçada.

"Tudo o que aprendi sobre vida selvagem nestes quase 20 anos de National Geographic faz com que seja um tema com o qual também me sinto à vontade."

NG: Dê um exemplo de como estas ou outras ferramentas "inteligentes" não podem substituir um humano na hora de traduzir um texto complexo?

ECA: É uma brincadeira, mas um clássico: “as moscas do tempo gostam de uma seta” [como tradução incorrecta de] “time flies like an arrow”. Quanto mais longo for o texto, mais necessidade há de conhecimento humano. Precisamos de conhecer e avaliar o contexto. A Inteligência Artificial disponível (ainda) não consegue fazer isso.

NG: Traduzir é também um acto de criação?

ECA: O meu trabalho não é criar. O criador é o autor do texto. O tradutor é um transmissor de conteúdo. Por outro lado, é impossível não deixarmos um pouco da nossa marca, do nosso estilo, em tudo o que fazemos. Quando preciso de intervir no conteúdo para efeitos de compressão, tenho o cuidado de consultar o autor do texto e propor aquilo que pretendo fazer.

NG: Tem um tradutor ou livro de referência em matéria de tradução?

ECA: Frederico Lourenço, com a Odisseia e a Ilíada.

NG: Consegue identificar os maiores desafios desta actividade em 2023? 

ECA: Os mesmos de sempre, agravados pela febre do chatGPT. 

NG: Por último, a médio prazo, teme pela sobrevivência desta profissão? 

EC: Não. Bem, a médio prazo talvez nos tornemos cada vez menos tradutores-tradutores e mais tradutores-revisores, mas a necessidade de conhecimento e técnica continua presente. Se até na nossa língua conseguimos explicar-nos mal e gerar equívocos... O tradutor não é um mero repositório de línguas. É um profissional da comunicação.

"O tradutor não é um mero repositório de línguas. É um profissional da comunicação."