A morte de Émile Zola. O desenho recria o momento em que os criados entram no quarto do casal e descobrem o corpo sem vida do escritor. Imagem de Costa / Bridgeman / ACI.
Convertido na besta negra dos nacionalistas franceses pela sua defesa do capitão Dreyfus, Zola morreu em circunstâncias estranhas.
A morte trágica de Émile Zola”, era o título da primeira página do diário Le Figaro do dia 30 de Setembro de 1902 e a notícia surgiu também em todos os periódicos franceses e internacionais. Aos 62 anos, morria o mais célebre e estimado romancista de França, o último de uma tríade de grandes que incluía Flaubert e Daudet, assim como o jornalista que anos antes agitara os alicerces da República francesa com o artigo J’accuse.
Nesse artigo, Zola defendera o capitão alsaciano de origem judaica Alfred Dreyfus, que em 1894, acusado de ser um espião dos alemães, foi condenado ao degredo e deportado para a ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Num clima de crescente nacionalismo e anti-semitismo, era evidente que Dreyfus fora condenado pela sua ascendência, pois as provas indicavam que não era culpado.
Falha na chaminé
Publicado em 1898, J’accuse acusava publicamente os perseguidores de Dreyfus. O artigo custou a Zola uma condenação à prisão que evitou ao fugir para Londres durante um ano. A partir desse momento, o escritor tornou-se a besta negra da extrema-direita francesa, que mostrou um ódio visceral contra ele e nunca aceitou a reabilitação do capitão, que resultou do artigo de Zola.
Casado em 1870 com Alexandrine, Émile Zola iniciou em 1888 uma relação com Jeanne Rozerot, que tinha metade da sua idade. O escritor levou uma vida dupla até à sua morte: continuava casado com Alexandrine, mas teve uma família paralela com a amante. Esta deu-lhe dois filhos, reconhecidos como herdeiros pela esposa oficial. Na fotografia, Émile Zola E Jeanne Rozerot cerca de 1895. Fotografia de Bridgeman / ACI.
Os jornais informaram depois com todo o pormenor as circunstâncias da morte de Zola, graças ao testemunho da mulher Alexandrine, que sobreviveu à tragédia, e dos vizinhos da casa onde viviam. No dia 28 de Setembro, ambos regressaram à sua residência parisiense. No dia anterior, tinham-nos avisado de que tinham um problema com a saída de fumos da chaminé, mas não se preocuparam e foram para a cama à hora de sempre, sem apagar as brasas.
De manhã, inquietos com a ausência de Alexandrine, que era geralmente a mais madrugadora, os criados abriram a porta do quarto e encontraram-nos sem sinais de vida: o corpo já sem vida do escritor, ainda quente no chão, e a mulher, que ainda respirava, deitada na cama.
A polícia encarregou-se da investigação e concluiu que Zola morrera asfixiado pelo monóxido de carbono da chaminé obstruída de sua casa. A reconstrução dos factos explicaria que Émile aturdido, levantara-se para abrir a janela, mas desmaiara antes de a alcançar e colapsara no chão. Isto foi a sua condenação à morte já que o gás tóxico estava depositado junto do chão e invadiu-lhe os pulmões.
Na véspera da tragédia, Émile Zola e a mulher regressavam à sua casa de Paris depois de três meses no campo. Devido à longa ausência e à descida das temperaturas, a casa estava muito fria, pelo que o escritor mandou acender a lareira do quarto, o que se revelaria fatal. O quarto do casal Zola era uma divisão de grandes dimensões. Fotografia captada cerca de 1895, de Ullstein Bild / Getty Images.
Alexandrine, pelo contrário, salvou-se graças à altura da cama, que impediu que inalasse uma dose mortal do gás venenoso. A justiça considerou que a morte do escritor fora acidental e arquivou o caso.
O limpa-chaminés
Ninguém questionou esta versão da morte de Zola até 1953. Nesse ano,surgiram acusações no diário Libération. Tinham transcorrido poucos meses desde as comemorações dos 50 anos da morte do escritor e a redacção recebeu a carta de um farmacêutico reformado, Pierre Hacquin, que afirmava conhecer a verdade sobre a morte de Zola.
Hacquin contou ao jovem jornalista Jean Bedel que, durante a sua militância juvenil na extrema-direita, travara amizade com um limpa-chaminés chamado Henri Buronfosse, o qual, após anos de amizade e batalhas políticas comuns, lhe confessou que assassinara Émile Zola. Os acontecimentos ter-se-iam desenrolado da seguinte forma: Buronfosse e um companheiro subiram ao telhado da casa de Zola.
Disfarçados de operários que trabalhavam no edifício contíguo, taparam a chaminé e desobstruíram-na depois de o romancista morrer. Isto explicaria as dificuldades da polícia para reconstituir as condições que tinham provocado a asfixia num quarto com uma chaminé apenas parcialmente obstruída.
A imprensa contra Zola. A partir do momento da publicação de J’accuse, Zola ficou na mira dos grupos ultranacionalistas e da sua imprensa. Foi continuamente ameaçado e os periódicos mais conservadores lançaram uma campanha contra ele. Colunas furibundas de opinião apresentavam-no como um traidor, dedicaram-lhe canções e panfletos difamatórios e apareceu nas páginas dos diários caricaturizado como o rei dos porcos. Henri Lebourgeois realizou uma série de trinta desenhos satíricos nos quais o escritor surgia como um iluminado, um louco, um bobo da corte e um homem de hábitos sexuais estranhos. Nesta caricatura de Henri Lebourgeois, zola coloca a sua fama ao serviço das potências estrangeiras para prejudicar a imagem de França. Imagem de AKG / Album.
Em 1953, Buronfosse já estava morto e Bedel não pôde validar a sua versão, mas tentou confirmar os pormenores da história. As suas pesquisas mostraram que vários aspectos do relato de Buronfosse estavam correctos, como o facto de no momento da morte de Zola estarem a ser feitas obras no edifício adjacente ao do escritor. Também constatou que Buronfosse tinha sido um limpa-chaminés com ideias extremistas, manifestadas na sua militância na Liga dos Patriotas ultranacionalista e anti-semita. Na década de 2000, Alain Pagès, professor da Sorbonne especialista em Zola, recuperou a tese de homicídio e levou a cabo novas investigações. Pagès destacou o facto de a polícia não ter tido em conta as provas empíricas que indicavam que as condições do quarto não justificavam a morte de Zola por asfixia, pois a chaminé não estava totalmente obstruída. Pagès revelou um pormenor sugestivo: desde 1903, o ano a seguir à morte de Zola, Henri Charles Émile Buronfosse começou a aparecer nas listas eleitorais da Liga. Mas o registo de nascimento do limpa-chaminés só continha um nome, o de Henri.
A adição do nome Charles pode ser explicada como um tributo ao avô paterno, mas o de Émile não pode referir-se nem ao avô nem ao pai, pois o limpa-chaminés era filho ilegítimo. O nome, incluído precisamente após a morte de Émile Zola, seria uma alusão ao escritor? E no caso de o ser, seria um sinal de arrependimento porque teria querido apenas dar-lhe uma lição mas perdera o controlo da situação ou seria a reivindicação da execução de um traidor à pátria?
Um clima de ódio
Pagès contribuiu também para a contextualização dos factos para perceber até que ponto a situação da época estava extremada nesses anos, marcados pelo fim da optimista Belle Époque e pelo ressurgimento de um nacionalismo exasperado que provocou graves convulsões nas décadas seguintes.
O Panteão, túmulo das personalidades ilustres de França. Os restos mortais de Zola foram aqui depositados em 1908. Fotografia de Hercules Milas / Alamy / ACI.
De facto, os inimigos do escritor celebraram a sua morte como se se tratasse de uma festa. O periódico La Libre Parole, por exemplo, deu como título à notícia da morte de Zola a frase “Um facto naturalista. Zola asfixiado”, um jogo de palavras relativo ao naturalismo, o movimento literário que tinha Zola como principal expoente. Por outro lado, outros periódicos da mesma tendência insinuaram que Zola se suicidara.
O casal Zola tinha sido alvo de ameaças durante muito tempo, a ponto de num primeiro momento, Alexandrine ter pedido ao capitão Dreyfus que não assistisse ao funeral. Ela própria nunca protestou contra a versão oficial da morte acidental.
Não eram poucos portanto os que, em 1902, desejavam a morte do mais famoso defensor de Dreyfus. Isto será suficiente para acreditar na tese de atentado tal como foi apresentada na década de 1950? Henri Mitterand, um dos especialistas internacionais na obra de Zola, fez o seguinte balanço da questão: “A presunção quanto ao crime de um fanático é sólida”, mas, dado ter passado mais de um século e todos os protagonistas da história terem morrido há muito, “faltam provas materiais que permitam passar da suspeita à evidência”. Por isso, é necessário aceitar que a morte de Zola continuará a ser um “mistério da história que não diminui em nada a grandeza do homem”.