Não se sabe muito sobre Gaio Victório Victorino. Foi centurião na legião VII Gemina Antoniniana Pia Felix, destacada para a cidade galega de Lugo. Tinha dois libertos a seu cargo, Segundo e Victor. Seria provavelmente oriundo da Germânia e estaria destacado para Lucus Augusti, a cidade fundada nos anos finais do século I a.C, quando Augusto reordenou as províncias ocidentais de Roma. Victorino, porém, deixou um testemunho duradouro para a história religiosa do mundo romano: no primeiro piso da sua impressionante domus, mandou construir, entre 212 e 218 d.C., um mitreu discreto. À superfície, Gaio poderia prestar culto ao imperador e à sua família, bem como aos deuses oficiais do panteão romano. Na privacidade de sua casa, a história seria outra.

O mitreu da domus de Lugo é um dos mais notáveis achados arqueológicos ibéricos das últimas décadas. Em 2000, a Universidade de Santiago decidiu construir uma nova sede para a sua vice-reitoria. Escolheu para o efeito o Paço de Montenegro, uma velha residência senhorial junto da porta sul da muralha da cidade. Estava então longe de imaginar o que se seguiria. Sete metros abaixo da cota moderna, apareceu uma domus senhorial. Implantada num declive, terá exigido aos seus construtores o desmonte do terreno para posterior nivelamento e aplicação de níveis de contenção. Em compensação, a vista sobre o rio Minho era excelente e a área disponível para escavação prometia revelações sobre o passado de Lucus Augusti.

Celso Rodríguez Cao coordenou os trabalhos arqueológicos e aplicou neles a paciência típica de quem há muito esperava por uma janela do tempo para espreitar os vestígios da Antiguidade na cidade. Em muitos aspectos, foi como um cirurgião, de bisturi na mão, desconstruindo camada a camada. Mas nem o arqueólogo esperaria encontrar ecos da distante Pérsia no piso inferior da casa do centurião romano.

Reconstituição de um espaço privado
CELSO RODRÍGUEZ CAO

Com base nas evidências arqueológicas e em espaços semelhantes identificados na península Itálica, realizou-se esta reconstituição do que poderia ser o altar do mitreu, com uma estátua de bronze da tauroctonia. Identificaram-se na sala vários fragmentos de bronze, talvez restos da estrutura que presidiu ao mitreu.

O culto de Mitra

Desde o Renascimento que os eruditos discutem os estranhos vestígios que emergem, de vez em quando, nas cidades romanas, testemunhando cultos exóticos e clandestinos. Descritas pela primeira vez em 1562, as cenas representadas em mitreus só foram realmente compreendidas duzentos anos mais tarde, quando o cruzamento de fontes escritas com os primeiros vestígios arqueológicos permitiu compreender que, por baixo da epiderme do panteão romano, coexistiam outras crenças.

O culto de Mitra deverá ter emergido na Pérsia e circulou pelo Império Romano, transportado por mercadores e soldados. Um dos achados curiosos da domus de Lugo é precisamente a pedra de um anel com uma Victória alada encontrada no mitreu. A iconografia era popular entre os militares, pois sugeria triunfos bélicos e, nos escassos vestígios que chegaram à posteridade, há referências regulares a soldados como praticantes do culto. De alguma forma, foram as legiões que disseminaram o culto de Mitra. Com homens como o centurião Victorino.

A mitologia principal do culto de Mitra é a tauroctonia, a luta de Mitra com um touro que termina com a morte do animal por apunhalamento – desse acto de morte, nasce depois toda a vida. Embora o culto tenha nuances por todo o Império, há características comuns: o nascimento da divindade através de uma rocha da qual emerge, desnuda; a presença constante da água no culto; e o banquete que se seguiria à morte do touro com oferendas ao Sol.

Não se sabe ao certo o que se passaria no ritual. Muitas referências clássicas são omissas, parciais ou reflectem o ponto de vista dos inimigos do culto. Em Lugo, encontrou-se o altar de granito, onde certamente se posicionaria a estátua de bronze da tauroctonia. Identificou-se também uma planta tripartida, entre o pronaos, onde os fiéis se poderiam vestir de acordo com os sete graus de iniciação; o spelaeum, onde se posicionavam os bancos laterais com capacidade para duas dúzias de praticantes do culto; e o podium, onde se apoiaria a estátua. Encontrou-se igualmente a fossa de deposição das oferendas e restos dos banquetes, cuja análise osteológica expôs a grande riqueza faunística destas refeições. A inscrição no altar permitiu retirar qualquer dúvida sobre o espaço e a sua função. 

 

Um espaço de culto
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O mitreu da domus de Lugo, invisível a partir da rua, tem outras peculiaridades. Pressupunha segredo face aos não iniciados e era um espaço escuro, provavelmente só iluminado pela luz das lucernas. Usando a superfície rochosa do promontório, o solo daria aos praticantes a sensação de que estavam na gruta original, onde o mito fundador tivera lugar.

Conhecem-se agora cerca de 170 mitreus em todo o mundo romano. Embora Roma e Óstia concentrem a maioria, estes espaços dispersaram-se pelo império. Na Hispânia Romana, havia quatro candidatos até 2000: dois na província Tarraconense (Els Munts, Tarragona; e Can Modollel, Cabrera del Mar), um na Bética (Fuente Álamo, Córdova) e outro na Lusitânia (em Mérida). Este será o quinto e é decerto o mais completo.

Fazendo jus ao segredo do culto imposto aos iniciados, os vestígios de Mitra são escassos, mas a descoberta de um espaço destes, nos confins do Império Romano no início do século III, sugere a sua rápida expansão.

Conhecem-se agora cerca de 170 mitreus em todo o mundo romano. Embora Roma e Óstia concentrem a maioria, estes espaços dispersaram-se pelo império.

Trezentos anos de uso

A domus terá tido três fases distintas de utilização ao longo de três séculos. Foi mandada construir no início do século I d.C., pouco tempo após a fundação de Lucus Augusti. Desse período, emergiram escassos vestígios, embora a disposição das divisões tenha sido confirmada por Celso Rodríguez Cao. São particularmente interessantes os vestígios da cozinha e das latrinas, que abrem uma janela para o quotidiano doméstico dos séculos I e II.

Cem anos mais tarde, já na dinastia dos Severos, a casa foi transformada e fizeram-se obras em função da implantação de um mitreu clandestino. Mudaram-se os corredores de circulação e abriram-se novas divisões, mais pequenas. Até o telhado foi readaptado para cobrir o novo espaço de culto. O mitreu deverá ter existido até ao século IV, mas não se sabe se foi usado durante tão longo intervalo.

Não há marcas de destruição, como noutros mitreus europeus, onde os rivais deste culto destruíram com ferocidade os templos pagãos. O arqueólogo encontrou marcas de um desmonte voluntário – a estátua da tauroctonia terá sido fragmentada e os pedaços de bronze espalhados pelo solo. A ara com a inscrição foi oculta no solo e protegida por uma camada de terra. Com o tempo, perdeu-se a memória deste espaço exótico, a cerca de duzentos metros do local onde, no século XII, seria implantada a catedral da cidade.

A expansão da muralha da cidade no século IV destruiu áreas significativas da domus. O mitreu, porém, ficou soterrado, aguardando por um vislumbre de luz, que chegou – paradoxalmente – no ano do Jubileu.

Artigo publicado originalmente na edição especial da Hispânia Romana.