Fundado em 1603 na região País do Loire pelo rei Henrique IV de França, o Colégio Enrique IV de La Flèche, confiado à direcção da poderosa Companhia de Jesus, não tardou em converter-se numa das instituições de ensino mais elitistas de França. Nele se formaram os filhos das mais abastadas famílias do país, com o objectivo de se prepararem para as mais altas missões políticas ou diplomáticas a que, dadas as suas origens, estavam destinados. Ali ensinavam-se disciplinas próprias das artes liberais, Teologia, noções de Matemática, Astronomia, Música, Arquitectura e uma normativa prática que permitiria aos alunos moverem-se correctamente na sociedade do seu tempo. Um ensino que, anos mais tarde, qualificaria de absurdo e inoperante o mais famoso e ilustre de todos os seus alunos: René Descartes.
O COLÉGIO HENRIQUE IV DE LA FLÈCHE. Fundado em 1603 pelo monarca homónimo e dirigido pelos jesuítas, foi a primeira instituição académica na formação de René Descartes. Aqui recebeu um tratamento especialmente atencioso, em parte pela sua saúde delicada, mas também devido à precocidade do seu talento, que muito cedo se orientou para a filosofia e as matemáticas. Na imagem, as instalações do colégio numa gravura de 1655 (Biblioteca Nacional, Paris).
Descartes chegara a La Flèche com apenas 11 anos. Até então, a sua saúde delicada recomendara que estudasse na casa de família com professores particulares. Nasceu no dia em 31 de Março de 1596, na cidade de La Haye-en-Touraine, que actualmente é conhecida como Descartes (Indre-et-Loire) em homenagem ao seu filho mais ilustre. A família, no entanto, era originária de Rennes e o seu pai, Joachim Descartes, pertencente a uma família da baixa nobreza bretã, era membro do parlamento em Nantes. A sua mãe, Jeanne Brochard morreu quando Descartes contava pouco mais de 1 ano e o futuro filósofo foi criado aos cuidados de uma ama à qual permaneceu unido ao longo de toda a sua vida.
Primeiros trabalhos
Uma vez concluídos os estudos no colégio de La Flèche em 1614, Descartes mudou-se para a Universidade de Poitiers, onde, dois anos depois, terminaria os de Direito civil e canónico. Convencido de que a sua sede de conhecimento apenas poderia ser saciada através da descoberta de novas terras e novos costumes, aos 22 anos, partiu para os Países Baixos com a desculpa de participar como observador na preparação do exército de Maurício de Nassau para a iminente Guerra dos Trinta Anos. Durante dois anos residiu na Holanda e, para se sustentar, trabalhou com um cientista, Isaac Beeckman, para quem escreveu pequenos ensaios de física como Sobre a pressão da água num copo e Sobre a queda de uma pedra no vazio, além de um tratado de musicologia. Também como observador, em 1619, alistou-se nas fileiras do duque Maximiliano da Baviera, embora na sua curta carreira militar nunca tenha participado em qualquer batalha. No dia 10 de Novembro de 1619, enquanto estava bloqueado pela neve com o seu batalhão, numa povoação perto de Ulm, foi-lhe revelado, segundo relataria anos mais tarde no seu Discurso do método, o que seria o núcleo central do seu pensamento: o método matemático e os princípios que se resumiriam na frase: cogito, ergo sum (“penso, logo existo”). Foi de noite, ao lado de um fogão, quando o assaltaram sucessivamente três estranhos sonhos que interpretou como sinais e que lhe serviriam para reafirmar a sua vocação de consagrar toda a sua vida ao estudo.
Um cientista chamado Descartes. No campo científico, Descartes é o herdeiro natural da revolução científica renascentista, com a sua pesada crítica em relação à física aristotélica, bem como ao heliocentrismo proposto por Copérnico. A minuciosa correspondência que manteve com os investigadores do seu tempo demonstra sobejamente que tinha uma estreita colaboração com eles e que estava ao corrente das suas respectivas descobertas, especialmente no que dizia respeito às matemáticas e à física. Partilhou com Galileu o conceito matemático de espaço e ambos entenderam o universo como um mecanismo imenso. Descartes defendeu que o fundamento do espaço é uma ideia evidente: a extensão; e, em conclusão, nega a existência do vazio, pelo que escreveu em Princípios da Filosofia: “O espaço e o corpo que nele está compreendido não são diferentes, a não ser pelo nosso pensamento. De facto, a mesma extensão em comprimento, largura e profundidade que constituem o espaço, constituem o corpo.” Com base nestes postulados, segundo Descartes, a extensão preenche o espaço da forma contínua e através de vórtices gera-se o movimento contínuo dos astros. Na imagem, gravura de uma edição francesa de 1692 do Tratado do Homem.
De acordo com este novo propósito de conduta e decidido a reorientar adequadamente a sua vida, Descartes abandonou para sempre a vida militar e empreendeu uma longa viagem que o levaria à Dinamarca, Alemanha e Itália. Neste último país, passou dois anos repetindo o itinerário que, em 1580, fizera o pensador francês, Michel de Montaigne, que tanto infiuenciaria o seu pensamento. Em 1622, regressou a França e estabeleceu-se em Rennes, na casa do seu pai, onde se dedicou fundamentalmente ao estudo da Astronomia, Óptica e Matemática. Ali permaneceu até 1624 quando, decidido pela enésima vez a encontrar novos horizontes, tomou a decisão de se mudar para Paris. Naquela altura, tinha-se tornado efectiva a herança recebida da sua mãe, uma fortuna considerável (um rendimento de seis mil libras), que lhe permitiria viver comodamente durante o resto da sua vida e dedicar-se em exclusivo ao trabalho intelectual, que era a sua paixão. A sua casa parisiense na Place Royale tornou-se um autêntico cenáculo de investigação para os pensadores e cientistas da época, independentemente da matéria a que dedicavam os seus estudos. O próprio Descartes demonstrou a sua polivalência intelectual, elaborando trabalhos como a Harmonia universal, um tratado original sobre teoria da música, no qual desenvolve a relação entre música e matemática, mostrando as causas e propriedades dos sons e de tudo o que com eles está relacionado.
No entanto, em França, não se sentia livre para expressar o seu pensamento. Como tal, em 1628, decidiu instalar-se na Holanda, sabendo que nos Países Baixos as ciências eram muito consideradas e os pensadores beneficiavam de ampla liberdade de pensamento.
Nos Países Baixos, cientistas e filósofos não tinham de suportar a tensão dos recentes confiitos religiosos entre protestantes e católicos que se tinham registado em França.
Os anos holandeses
Descartes viveu na Holanda até 1649. Refugiado na sua residência, no n.º 6 da Rua Westermarkt, em Amsterdão, durante os primeiros cinco anos da sua estada dedicou-se a sistematizar a sua concepção do mundo e da fisiologia humana, enquanto esboçava um longo texto metafísico a que deu o título de Tratado do mundo e da luz. No entanto, ao receber a notícia da condenação de Galileu pelo Santo Ofício, dado que o seu ensaio estudava o movimento da Terra em relação ao Sol e tinha pontos em comum com o trabalho do cientista italiano, com receio de vir a ser também ele uma vítima da Inquisição, renunciou a publicar o texto, que só chegou a ver a luz do dia depois da sua morte.
O ESTÚDIO DO FILÓSOFO. Depois de percorrer meia Europa, e depois de ter inclusive ponderado uma carreira militar, foram três sonhos premonitórios (com a ajuda oportuna da herança recebida da sua mãe) os que orientaram definitivamente a vida de Descartes para o estudo e para a constante busca de conhecimento. Na imagem, gravura de finais do século XVIII, que mostra o filósofo a trabalhar no seu estúdio.
Em contrapartida, estando em Amsterdão, publicou a que seria a sua obra-prima, o Discurso do método (1637), em que propunha aplicar a dúvida sistemática sobre todos os saberes conhecidos, como o único caminho que podia conduzir a uma verdade sobre a qual pudessem ser solidamente fundamentados. Esta certeza encontrou-a na realidade da própria consciência, o que lhe permitiu formular o seu célebre cogito, ergo sum, que, descartando todo o cepticismo, o levaria até Deus como garante máximo da verdade.
O método que Descartes propunha era igual para todas as disciplinas. Decompunha as partes de qualquer dilema e avançava até à origem do problema. De seguida, percorria o caminho inverso e reconstruía todo o conjunto. Seguindo este método, Descartes propôs uma primeira formulação da lei da inércia e um sistema concreto para ser aplicado à matemática. Tanto pela ousadia da proposta como pela novidade dos conceitos expostos, o livro concedeu-lhe prestígio imediato, mas provocou também uma enorme polémica. Seguindo os sectores mais conservadores que classificavam a obra como herética, a Inquisição debruçou-se sobre a obra do pensador e iniciou uma angustiante perseguição a tudo o que se relacionasse com ele.
Os problemas aumentaram quando ao Discurso se seguiu, em 1641, Meditações metafísicas. No livro, Descartes expunha o conjunto da sua física mecanicista, em que a tridimensionalidade dos corpos era a principal qualidade da matéria. A partir deste ponto, e depois de uma laboriosa elucubração, demonstrava a existência de um Deus perfeito e omnipotente, bem como a imortalidade da alma. Alarmados pela profundidade dos seus princípios teológicos, grande parte dos sectores eclesiásticos e intelectuais de França e dos Países Baixos empreenderam uma cruzada contra Descartes. Embora essa perseguição não o tenha conduzido a qualquer processo, intensificou-se na sequência da publicação dos Princípios da Filosofia (1644) e As paixões da alma (1649).
Professor de Cristina da Suécia
Cansado e receoso, em 1649, Descartes aceitou o convite da rainha Cristina da Suécia para se mudar para a corte de Estocolmo e desempenhar o cargo de professor de filosofia da monarca. Cristina da Suécia era um espírito livre e tinha grandes inquietações intelectuais. Correspondia-se com o filósofo há vários anos e, ansiosa por alargar os seus conhecimentos, pediu-lhe que se instalasse no palácio. Descartes aceitou iludido e convencido de que sua participação na corte sueca lhe garantiria alguma paz interior, o respeito pelo seu trabalho e, ao mesmo tempo, isso o protegeria dos seus inimigos. Mas não foi exactamente assim. Uma vez instalado em Estocolmo, sentiu-se ignorado pela corte e até mesmo pela própria soberana, que demorou vários dias a recebê-lo. Por fim, impôs-lhe um horário restrito para as suas aulas, que deveriam começar às cinco da manhã, não tendo sequer em conta o precário estado de saúde do pensador. Este horário, implicava, além disso, que Descartes se tivesse de levantar muito antes para assistir à missa e fazer a sua higiene. As comodidades do palácio também não eram as mesmas das que usufruíra em França ou na Holanda. Decepcionado, escreveu que se encontrava “no país dos ursos, onde os pensamentos dos homens parecem, tal como água, uma metamorfose em gelo”.
UM FILÓSOFO UNIVERSAL. Escultura de mármore de Descartes, realizada por Augustin Pajou em 1777 (Museu do Louvre, Paris).
A inclemência do clima e a falta de conforto foram mais fortes do que ele e, cinco meses depois da sua chegada à Suécia, em 11 de Fevereiro de 1650, morreu, aparentemente como resultado de uma pneumonia, na residência do embaixador francês em Mälaren, onde permanecia desde que adoecera.
Os rumores de um possível envenenamento não tardaram a circular, parcialmente encorajados pelo próprio embaixador, que ordenou a inscrição na sua lápide a frase: “Expiou os ataques dos seus rivais com a inocência da sua vida”.
Pouco depois, soube-se que o médico pessoal da rainha Cristina escrevera ao médico que cuidava da saúde de Descartes na Holanda uma carta na qual assegurava que os sintomas da doença que o levara à morte eram mais compatíveis com um envenenamento do que com a pneumonia. A teoria parece ter sido confirmada, séculos depois, especificamente em 1980, quando o médico alemão Eike Pies contribuiu com novos dados para a investigação, que apenas se encerraria definitivamente em 2010. As suas conclusões pareciam indicar que a morte de Descartes se devia ao envenenamento por arsénico, depois de uma conspiração orquestrada por François Viogué, um clérigo ultraconservador e fanático, que teria arquitectado uma conspiração para acabar com a vida do filósofo.
O pensamento cartesiano
Frequentemente considerado o precursor da filosofia racionalista moderna, o pensamento de Descartes supõe a ruptura definitiva com a escolástica. Convencido de que o universo respondia a uma ordem racional, esforçou-se por encontrar o método que lhe permitiria alcançar, na esfera metafísica, as mesmas certezas que, no seu campo, proporciona a matemática. Este método, exposto no Discurso, é composto por quatro passos: não aceitar como verdadeiro nada do que se conhece; decompor a realidade em cada um dos seus componentes; durante a sua análise, partir dos mais acessíveis para depois analisar os mais complexos; e por último, rever de novo o caminho percorrido mas no sentido inverso, para ter certeza de que se concluiu sem ter saltado nenhum dos quatro passos. O sistema, que permite coroar com êxito todo o processo é a dúvida metódica: ou seja, a atitude de pôr em causa todos os conhecimentos adquiridos ou recebidos das gerações anteriores, bem como tudo o que é percebido através dos sentidos. Para isso, é necessário pensar e não é possível pensar sem existir. Daí o seu “penso, logo existo”. Resumindo, o homem pode ser definido como uma realidade pensante.
O FILÓSOFO E A RAINHA ILUMINISTA. Descartes foi o mais destacado dos intelectuais e artistas que chegaram à Suécia atraídos pela protecção e facilidades oferecidas pela rainha Cristina, a qual tinha adoptado como lema a frase “A sabedoria tem de ser o pilar do reino”. Na imagem, detalhe de Descartes na corte da rainha Cristina da Suécia, óleo de Pierre-Louis Dumesnil (Palácio de Versalhes).
A partir deste ponto, Descartes reconstrói o seu pensamento. Dado que não se pode confiar em nada que não se tenha conseguido demonstrar, devemos basear-nos no pensamento, a única realidade comprovada. O pensamento, por outro lado, não é constituído por matéria, mas sim por ideias sobre a matéria. Será necessário descobrir, então, se existe alguma ideia que o ser humano possa perceber com a mesma clareza e distinção com que se percebe a si mesmo como sujeito pensante.
Descartes revê, então, a partir daqui todos os conhecimentos que previamente descartara no início da sua pesquisa. Ao voltar a eles, distingue três classes de ideias: “as inatas”, como as ideias de beleza ou justiça, que se encontram na mente antes de qualquer experiência ou percepção do mundo; as ideias “adventícias”, com as quais se aprecia a matéria por intermédio dos sentidos, e a ideias “fictícias”, que são produto da fantasia, formadas pela mente a partir de outras ideias. Entre as primeiras, aparecem as ideias de infinito e de Deus, este como um ser supremo, eterno e imutável, infinito e perfeito. Uma ideia tão complexa não poderia ter sido criada de forma alguma por um ser humano, pelo que se deduz que terá necessariamente de ter sido induzida por um Ser Supremo. Ou seja, a mera presença da ideia de Deus prova a sua própria existência e, ao mesmo tempo, garante a possibilidade de alcançar um conhecimento pleno.
Da mesma forma, Descartes desenvolveu um conceito particular de “substância”, que definiu como o que “existe de tal forma que apenas necessita de si mesmo para existir” e isso manifesta-se através dos seus modos e atributos. Estes últimos são aquelas qualidades que conferem carácter à própria substância, já que, sem esses modos e atributos, não poderia existir. Os modos, por sua vez, são apenas propriedades puramente acidentais. O atributo dos corpos é a extensão ou tridimensionalidade. Todas as demais determinações (cor, forma, posição, dimensões…) são apenas modos. Quanto ao espírito, o seu atributo é o pensamento.
Existe, portanto, uma res cogitans (ou seja, substância ou matéria que pensa), sem extensão e cujo atributo é o pensamento, e uma res extensa (ou seja, substância ou matéria extensa), que compõe os corpos físicos e cujo atributo é a tridimensionalidade. A primeira seria a alma ou a mente e, a segunda, o corpo. Com base nestes princípios, os animais seriam apenas máquinas altamente aperfeiçoadas, enquanto o ser humano seria composto por alma e corpo (de res cogitans e res extensa), que se comunicam entre si, de uma forma peculiar, única e complexa.