Quando a 14 de Agosto de 1385 o exército português confrontou as hostes castelhanas nos campos de Aljubarrota, a História viria a conhecer esta batalha por vários nomes: batalha de Aljubarrota, devido à localização geográfica; batalha real, pelo facto de os reis respectivos liderarem eles mesmo os exércitos; ou a batalha dos 2 Joões, já que se defrontavam um Juan de Castela e um João, mestre de Avis. É o episódio militar que a nossa memória nacional mais guarda, nos seus feitos e heróis, nas lendas de uma padeira que muito provavelmente não existiu e nos macabros relatos de ruas inteiras calcetadas com os ossos dos soldados inimigos mortos. Mas a sua importância para a História centra-se acima de tudo num problema de sucessão do trono português, num duelo mano a mano entre dois reinos: um que se assumia como o mais extenso e maior da península e outro, um vizinho mais pequeno que desde 1143 ganhara a independência. Se queremos falar da sobrevivência de Portugal como estado independente, antes de Aljubarrota… temos de parar em Coimbra.
o papel das cortes
Porquê Coimbra? Ora, só se torna rei o D. João I que as crónicas registam porque uns meses antes da batalha de Aljubarrota, Coimbra recebeu Cortes que visavam decidir quem seria o futuro rei de Portugal. O que eram Cortes? Eram um órgão consultivo e legislativo que fazia arte do processo de decisão política medieval e reunia representantes de todos os grupos da ordem social medieval: Clero, Nobreza e Povo. Terão tido origem nas antigas Cúrias Régias visigóticas e provavelmente numa certa tradição de dependência em relação à Nobreza e ao Clero em que os monarcas europeus se encontram nos séculos a seguir à Queda do Império Romano, devido às vagas de invasões que assolaram o continente.
As Cortes eram órgãos convocados ordinariamente ou em situações de crise. As primeiras em Portugal foram chamadas por D. Afonso II, em 1211. Nela elaboraram-se e aprovaram-se as primeiras Leis Gerais do Reino, o primeiro código legal português e talvez a maior herança de um rei que viria a ser conhecido para a História com o nada simpático apodo de O Gordo.
Domínio Público
"Acclamação do Senhor D João Iº, nas Cortes de Coimbra" (1829), por Mauricio José do Carmo Sendim (Museu de Lisboa, MC GRA 2282 02)
Foi nestas Cortes que começou uma história de amor entre a figura do rei e a classe social mais desfavorecida, o Povo. No contexto medieval, um concelho era uma ilha administrativa num mundo feudal de senhorios. Enquanto que os senhorios eram controlados por Nobres e membros do Clero, que exploravam amiúde os camponeses que neles habitavam, os concelhos dependiam do rei, que deles necessitava para combater o poder das classes sociais mais favorecidas e que muitas vezes eram um obstáculo ao seu poder e influência.
Por estranho que pareça hoje, o Rei dependia do Povo até certo ponto e como tal, as primeiras Leis Gerais mostram um D. Afonso II atento a problemas de dignidade humana e submetendo-se ele mesmo às Leis, dando o exemplo às ordens privilegiadas. Ficou aqui estabelecido quem representava quem nestas Cortes: os Nobres sentavam os senhores feudais mais poderosos e as cabeças das famílias nobiliárquicas mais antigas e tradicionais; o Clero comparecia com prelados, representantes dos cabidos – ligados aos mosteiros – e líderes das Ordens Religiosas; e pelo Povo, à volta de cem concelhos, que eram seleccionados rotativamente.
UMA CRISE DE SUCESSÃO: A PARTE DA GUERRA DOS TRONOS
A decisão a tomar nas Cortes de 1385 era importante: um novo rei. Não era a primeira vez desde o início do Reino que o país tinha uma situação dinástica espinhosa. D. Sancho II, excomungado pela Igreja Católica pela sua ingerência em questões do bispado do Porto – entre outros problemas que apoquentaram o seu reinado, como um divórcio proibido e um temperamento belicoso – fora forçado a ceder o trono ao irmão mais novo, futuro Afonso III, numa guerra civil. Sancho II, o Capelo, acabara os seus dias fora de Portugal, em Toledo, onde ainda hoje se crê que esteja enterrado.
Porém, esta situação era muito diferente. D. Fernando, que disputara várias vezes o trono de Castela e perdeu sempre, viu-se obrigado a assinar um acordo de paz que contemplou o Tratado de Salvaterra de Magos. Decretava este que D. Beatriz, filha do rei português, estava prometida a D. Juan de Castela e que um filho de ambos, na ausência de herdeiro directo de D. Fernando, seria o futuro rei de Portugal. O que isto significava era simples: um herdeiro das coroas conjuntas iria combinar os dois reinos e a independência de Portugal ficava em claro risco. Assinou-se este tratado a 2 de Abril de 1383; e quase meio ano depois, morre D. Fernando sem deixar descendência. A sua esposa, D. Leonor Teles, odiada pelo povo, ficou a reger o reino à falta de herdeiro e como estava estipulado pelo tratado de Salvaterra. A crise dinástica que se seguiu teve vários episódios que não cabem neste artigo, cercos e batalhas, heróis e vilões, uma divisão na sociedade portuguesa que, em linhas gerais, colocava as classes privilegiadas do lado de Castela, na pretensão de fazer cumprir Salvaterra de Magos e o Povo, agarrado à ideia de não ser integrado em Castela e acima de tudo uma paixão suposta pela figura de D. João, mestre de Avis. Sendo uma das mais importantes ordens militares religiosas do seu tempo, a liderança de Avis era apetecível e João nascera com esse destino: era filho ilegítimo de D. Pedro, um rei de paixões e instintos básicos, famoso pelo seu romance com Inês de Castro e conhecido pelo cognome de Justiceiro ou Cruel; mas era, como o filho D. Fernando, um notável femeeiro e deixou vários descendentes, o que era comum nas realezas europeias da época.
Devido à crise sucessória, é este João quem rapidamente assume a liderança na defesa do reino português e é elevado aos cargos de Defensor e Regedor do reino. Naquela conjuntura externa perigosa, com a perda da independência uma possibilidade real, era necessário um rei. As complicadas mecânicas de sucessão medieval não permitiam a João, o mestre da Ordem de Avis, que subisse ao trono. Havia outros pretendentes: para além do rei de Castela que estava desde 1383 a insistir nas suas pretensões, havia também outro João, filho de Inês de Castro, o mais velho dos quatro que a cortesã teve com D. Pedro.
Sim, é muito confuso, têm todos o mesmo nome; mas para desatar a confusão, convocaram-se Cortes para Março de 1385, em Coimbra. Oficialmente, a reunião serviria para a tomada de várias decisões. Mas decidir um rei era o principal. Na sua biografia do futuro D. João I, a historiadora Maria Helena da Cruz Coelho conta o desenrolar dos acontecimentos. Oferece documentos e também, claro, a voz de Fernão Lopes, futuro cronista do rei, que traça a chegada do mestre de Avis a Coimbra com crianças, aclamando-o como rei antes do facto consumado.
DECIDIR UM MONARCA: A PARTE DO COIMBRA LEGAL
Já nas Cortes, desenroladas na antiga Alcáçova de Coimbra – na sala dos Capelos da Universidade – fica claro que há duas grandes facções: uma defende D. João de Castro – que estava em Castela, preso, e impossibilitado de comparecer – liderada por um nobre chamado Martim Vasques, com os seus aliados, muito vocal; outra ladeia D. João, o mestre, com o apoio dos concelhos, grandes centros urbanos e a maioria das famílias nobres. A luta torna-se a alturas tensa: D. Nuno Álvares Pereira, o grande estratego militar da campanha de 1383-85, que ficou para a História como santo mas era um bocadinho mais complicado que isso, discute muitas vezes com Vasques e seus comparsas.
Num certo momento mais aceso, D. João puxa-o para o lado, recomenda-lhe calma, apela ao diálogo. D. Nuno, em estilo críptico, pergunta ao Mestre se não quer que ele despache aquele estorvo, o roncador Martim Vasques. D. João, mais ponderado, declinou a proposta. Não seria a última vez que o futuro Condestável do Reino confrontou D. João de maneira frontal e exacerbada. Poucos dias antes do encontro de Aljubarrota, quando o nessa altura já rei lhe revelava dúvidas sobre se devia confrontar os castelhanos nas cercanias daquilo que hoje é a Batalha, D. Nuno declara que se o rei não vem, ele sozinho combaterá o inimigo com o seu pequeno exército. O que convenceu finalmente a decisão real.
Domínio Público
João das Regras (1889), por José Malhoa.
Não se usando a força, sobra a razão. E aqui, o aliado maior da causa do Mestre D. João será João das Regras (sim, mais um João), jurisconsulto, um dos mais admirados homens de leis do reino e excelente naquilo que interessa numa argumentação: o seu discurso persuasivo. O sábio legalista tem uma estratégia clara: mostrar que o poder de decisão está naquelas Cortes, o que era uma estreia na História Portuguesa, dando ideias às várias classes sociais sobre como aproveitar esta oportunidade; e que o trono estava de facto vago, já que nenhum dos pretendentes reúne de facto condições para ser rei. Na demonstração desta segunda parte, nunca refere o nome do Mestre de Avis, mas demole extensivamente os seus adversários: no caso de João de Castela, demonstra que na verdade, quando este invade Portugal, viola a cláusula de Salvaterra de Magos determinando que nunca causaria dano a este reino. Além disso, o monarca castelhano, numa altura em que a Cristandade europeia se dividiu no Grande Cisma do Ocidente entre duas metades que apoiavam dois papas simultâneos, um em Roma e outro em Avignon, colocara-se do lado daqueles que a Igreja considerava cismáticos e hereges. Logo, era obrigação de Portugal combater os heréticos. E ainda que almas bem intencionadas quisessem alegar que então D. Beatriz, filha de D. Fernando, subiria então ao trono, o orador levantou logo suspeitas sobre a paternidade da jovem, já que a sua, D. Leonor Teles, tinha reputação de muito solta…
Quanto a D. João de Castro, foi necessário outro esforço, devido à resistência de Martim Vasques. João das Regras começou por mostrar que, ao contrário do que D. Pedro, o falecido rei, sempre alegara, não era certo que houvesse contraído matrimónio com Inês de Castro. Aliás, quando D. Afonso IV, seu pai, lhe deu essa possibilidade décadas antes, D. Pedro chutou para canto e mostrou-se desinteressado. Só depois da morte da esposa legítima e da amante é que começou a espalhar essa certeza. Mas nunca apresentou documentos nem sequer uma data ou um lugar. Perguntava D. João das Regras: que homem digno é que se esquece do próprio casamento? Além disso, Inês de Castro fora madrinha de baptismo de um dos filhos de D. Pedro. Mesmo que tivessem casado, era um laço de parentesco artificial que ia contra o direito canónico. Logo, o casamento seria nulo. E mesmo com tudo isto, como os filhos de Inês de Castro já se tinham unido a monarcas castelhanos em conflitos contra Portugal, inclusive na ocasião em que se discutia, haviam perdido o seu direito à herança do reino.
Como se Martim Vasques continuasse a, vamos citar D. Nuno Álvares Pereira, roncar, João das Regras bateu o seu trunfo na mesa com estrondo, um documento que provaria que D. Pedro e Inês de Castro eram na verdade aparentados e os infantes resultado da ligação com a honra manchada. Discute-se a veracidade deste documento até hoje. Aliás, Fernão Lopes só o menciona na sua crónica e não o incorpora no discurso do jurisconsulto. Faria até sentido que este começasse a sua argumentação logo com esta carta forte, evitando toda a confusão que se seguiu. Seja como for, Vasques e seus aliados desistiram e as Cortes foram convidadas a eleger um rei, alguém que combinasse as quatro condições requeridas: ser de linhagem real; coragem para defender o território; amar os súbditos; mostrar bondade e acção. Só sobrava D. João, a quem foi pedido que subisse ao trono. De uma forma encenada, o Mestre recusou, dizendo que era filho legítimo e figura religiosa, incapacitado de no futuro dar descendência ao trono. Além disso, querendo defender Portugal, referiu ser vencido como cavaleiro e não como rei, já que seria desonroso para a pátria. A comoção geral leva a juramentos de fidelidade, aos presentes a revelar que como rei, mais facilmente dariam a sua vida e os seus corpos pela causa. E aí, D. João cede e aceita. Portugal tinha um novo rei, por vontade dos Portugueses, e aprovado pelos bispos, recuperando assim a legitimidade tradicional dos costumes de sucessão medieval. Um rei moderno na maneira como coloca a decisão e o seu destino nas mãos do ovo, mas crente na permanência dos costumes
COMEÇA A DINASTIA DE AVIS
A 6 de Abril de 1385, é aclamado. Houve em Coimbra cerimónias religiosas e grande festa, mas sempre com a ideia de que ainda faltava um lado importante: garantir a derrota dos Castelhanos no conflito militar. Tal seria garantido em Agosto desse ano, em Aljubarrota, e depois de alguns meses de escaramuças, D. João reinou enfim efectivamente e em paz. O seu reinado, de 55 anos, será o mais longo da nossa História, e marcará o início da Expansão portuguesa, naquele que foi tantas vezes considerado o mais marcante período da nossa História. É isso que lhe marcará a visão futura na historiografia nacional e as várias visões que existem acerca da sua acção como monarca. E à boa maneira da saga Highlander, de três Joões, no fim… só poderia haver um.