Nos andes peruanos, o desespero desencadeia uma busca perigosa e tóxica do metal precioso.
A cinco quilómetros de altitude, La Rinconada é a mina à altitude mais elevada do planeta.
É um lugar onde a existência depende do alto preço do mais precioso dos recursos – o ouro.
O preço do metal precioso mais do que quintuplicou nas últimas duas décadas. Com essa situação, aquilo que outrora era uma vilória à sombra do cume nevado do monte Ananea transformou-se numa urbanização descontrolada de barracas de chapa metálica amontoadas em torno de entradas de minas artesanais e de um lago poluído por resíduos. O frio e a falta de oxigénio a 5.100 metros acima do nível do mar forçam os habitantes locais a arquejar quando respiram, e o cheiro condiz com o cenário: um povoado com uma população temporária de 30 a 50 mil pessoas, sem recolha de lixo nem sistema de esgotos.
No labirinto de galerias existente nas profundezas do monte Ananea, os acidentes mortais são frequentes, bem como as rixas fatais. Já houve mineiros assaltados, até mesmo assassinados, depois de venderem o seu ouro, ficando os cadáveres nos poços das minas.
Entre as vítimas de assassínio, contam-se algumas mulheres e raparigas oriundas de grandes cidades do Peru e da Bolívia, atraídas por traficantes de seres humanos que lhes confiscam os documentos de identidade e as põem a trabalhar nos bares e bordéis imundos de La Rinconada.
Várias empresas possuem concessões mineiras no monte Ananea e uma delas celebra contratos de empreitada para a exploração de parte da sua concessão com cerca de 450 membros de cooperativas que se contam entre os seus accionistas.
A maior parte das minas exploradas ao abrigo destes contratos são consideradas informais. Isso quer dizer que funcionam em condições laborais de segurança e ambientais precárias, embora o governo permita que continuem a operar desde que se registem num programa que tem por objectivo levá-las a seguir padrões mais exigentes.
As condições em La Rinconada são prejudiciais à saúde dos trabalhadores e envenenam a paisagem andina, mas isso não tem impedido os compradores e refinadores dos EUA, Suíça e outros países de adquirirem o ouro de La Rinconada, processando-o e transformando-o em barras e jóias finas. Por essa altura, já o ouro não traz qualquer indicação da sua proveniência. Os esforços internacionais desenvolvidos no sentido de obter preços mais justos em minas que cumpram padrões mais exigentes não obtiveram qualquer sucesso em La Rinconada.
A ironia da corrida ao ouro moderna de La Rinconada não é indiferente a Victor Hugo Pachas, um antropólogo peruano que estuda a mineração de ouro desregulamentada no Peru e noutros países da América do Sul. “A mineração de pequena escala semelhante à de La Rinconada sempre existiu nos Andes, como actividade secundária”, diz. “Os agricultores e os criadores de gado suplementavam periodicamente nas minas o rendimento das suas quintas.” A prática data pelo menos do início do século XIX na região peruana de Puno, onde se situa La Rinconada.
Ar rarefeito, terreno perigoso.
La Rinconada é o povoado mais alto do mundo. A 5.100 metros de altitude, os baixos níveis de oxigénio e o terreno traiçoeiro tornam a vida difícil. No entanto, La Rinconada cresceu nas últimas três décadas devido à subida dos preços do ouro. A poluição originada pelo processamento aurífero fixa-se nos glaciares que formam as nascentes do sistema hídrico andino, provocando o escorrimento para jusante de substâncias tóxicas como o mercúrio.
Os mineiros queixam-se sempre de que as minas estão a esgotar-se, “mas ainda há ouro”, diz o especialista. “Quando chegar a altura em que haverá menos ouro, a mineração transformar-se-á de novo numa actividade complementar para os agricultores, como acontecia antes.”
Os empreiteiros que exploram as minas informais vivem nos arredores de La Rinconada, depositando as extracções quotidianas nas mãos de um supervisor da sua confiança. Essa pessoa gere a mão-de-obra que extrai o minério, recorrendo a meios poucos sofisticados como dinamite e martelos pneumáticos. As unidades de processamento de pequena escala trituram o minério e misturam-no com mercúrio ou cianeto para extrair o ouro. Depois, uma cadeia de intermediários compra e vende o ouro e, nalguns casos, exporta-o.
Os edifícios de La Rinconada estão densamente organizados entre colinas íngremes.
Por norma, os contratos de trabalho são verbais. Um capataz contrata trabalhadores por prazos que variam entre uma semana e vários meses, dependendo do veio de ouro que está a ser explorado. Os operários podem receber comida e alojamento, mas sem benefícios ou salários. Em vez disso, durante um ou dois dias por mês, é-lhes permitido que trabalhem na mina e guardem para si o que encontrarem – um sistema conhecido como cachorreo. Se nada encontrarem, isso significa que trabalharam de graça.
Os mineiros protestam contra o sistema, mas na verdade ninguém quer mudá-lo. É mais barato para o empreiteiro e mais fácil para o trabalhador deixar o trabalho caso decida que já está farto.
A sorte só sorri aos mineiros em sonhos e surge de formas mais insidiosas, diz a antropóloga peruana-boliviana Maria Eugenia Robles Mengoa.
Em 2016, quando se deslocou pela primeira vez a La Rinconada, Eugenia descobriu um mundo machista no qual as mulheres são omnipresentes. Para os mineiros, até o monte Ananea é do sexo feminino, conta ela. Chamam-lhe awicha, palavra que significa “avó” na língua quechua.
Se um mineiro tiver sorte, reza a lenda, um espírito feminino (la gringa) visitá-lo-á em sonhos, guiando-o até um veio rico em minério. No entanto, la gringa é considerada ciumenta e os habitantes locais acreditam que ela não dará o seu ouro se outra mulher entrar na mina. Mesmo hoje, poucas mulheres se aventuram no interior da montanha. Existe também a crença perturbadora de que a sorte sorri aos mineiros que bebem muito e têm relações sexuais com mulheres jovens. Em La Rinconada, cerca de duas mil jovens, algumas das quais menores, trabalham em bares que também funcionam como bordéis.
As condições são igualmente duras para as pallaqueras – esposas de mineiros, mães solteiras ou viúvas, que esgravatam a terra no meio de pilhas de resíduos de rocha do lado de fora das entradas das minas, recolhendo pedregulhos com teor aurífero. Embora desempenhem uma tarefa essencial para o dono da concessão, limpando os detritos, as pallaqueras inalam pó e vapores venenosos enquanto procuram qualquer fracção de ouro que consigam arrancar da pilha de resíduos. Estão entre os trabalhadores mais vulneráveis da cadeia de produção. Grandes volumes de minério são frequentemente processados com cianeto para extracção do ouro. No entanto, as quantidades mais pequenas obtidas pelas pallaqueras e pelos mineiros nos seus dias de cachorreo são trituradas com mercúrio, substância que agrega o ouro, formando uma massa amalgamada. Isto pode fazer-se através de um tambor semelhante ao de uma máquina de secar roupa ou de enormes rochas num instrumento chamado quimbalete.
Em seguida, o mineiro ou a pallaquera levam a massa amalgamada a um comprador que a faz rebentar com um maçarico para vaporizar o mercúrio, deixando apenas o ouro.
Em algumas lojas de ouro, são utilizados dispositivos para captar o mercúrio, mas os lojistas e os mineiros continuam a ser expostos ao vapor do mercúrio que, por sua vez, também flutua até ao glaciar acima de La Rinconada, condensando sobre o gelo e envenenando o abastecimento de água potável. A nível mundial, este tipo de processamento do ouro é a fonte principal de mercúrio antropogénico libertado na atmosfera da Terra.
No momento em que o ouro proveniente das minas informais de La Rinconada ou de outras regiões do Peru chega às alianças de casamento ou aos relógios, já não apresenta quaisquer vestígios das condições duras em que foi produzido.
Parte deste ouro é vendido através de vias legais, mas, para fugirem à burocracia e aos impostos, alguns mineiros vendem ouro no mercado negro.
O ouro do mercado negro pode ser branqueado, com a documentação necessária para que pareça legal. Desde que os documentos pareçam legítimos, os exportadores poderão não inspeccionar uma mina para verificar se cumpre, ou não, os regulamentos.
Por fim, a maior parte do ouro proveniente do Peru acaba por ser exportado para refinarias no estrangeiro: cerca de um terço das exportações dirige-se à Suíça, que refina quase 70% de todo o ouro do mundo.
Os elevados preços do ouro permitiram que os intermediários peruanos, outrora modestos, se transformassem rapidamente em exportadores de primeiro plano. No entanto, a pressão exercida pelas organizações ambientais e de direitos humanos, bem como vários casos altamente mediáticos, conduziram a esforços destinados a limpar a cadeia de abastecimento.
Entre esses casos, refira-se a apreensão por agentes aduaneiros peruanos de um carregamento de 90 quilogramas destinado à Suíça e as detenções nos EUA de empregados de uma refinaria acusados de branqueamento de capitais.
A limpeza da cadeia de abastecimento implica também exigir aos mineiros o cumprimento dos regulamentos e permitir que os compradores possam rastrear o ouro até à sua fonte, inspeccionando depois as condições ali existentes.
A tarefa tem sido dificultada por um surto de minas desreguladas no Peru, causado pela subida dos preços do ouro, de menos de dez dólares por grama há duas décadas para mais de 55 dólares por grama na Primavera passada. Incapazes de cumprir regulamentos concebidos para minas de grandes empresas, os operadores de pequena escala não pagam impostos e são menos supervisionados pelas entidades oficiais.
Nas duas últimas décadas, o governo do Peru fez várias tentativas para obrigar esses mineiros a cumprirem os regulamentos administrativos, laborais e ambientais, mas esse processo é demorado. Dos mais de 60 mil mineiros informais registados pelo Estado, apenas 1.600 concluíram o processo, que os obriga a pagar impostos, obter as licenças necessárias e gerir os impactes ambientais.
As restantes dezenas de milhares de mineiros informais podem vender legalmente ouro. Basta-lhes para tanto declarar que estão a tomar medidas no sentido do cumprimento. O prazo para a formalização já foi prorrogado em diversas ocasiões, permitindo assim a venda de ouro em condições duras e perigosas como as de La Rinconada ou em minas de depósitos aluviais que têm deixado crateras semelhantes às da paisagem lunar nas terras baixas da Amazónia.
É assim que o ouro potencialmente obtido por um mineiro no seu dia de cachorreo, com todos os riscos de saúde e ambientais envolvidos, pode acabar numa aliança ou num relógio suíço.
A única maneira de extinguir a mineração aurífera informal acontecerá se os consumidores insistirem em determinar se as suas jóias foram manchadas por poluição ou por práticas laborais abusivas, explica Hugo Pachas, que actualmente gere os assuntos relativos ao Peru e à Bolívia na Aliança para a Mineração Responsável (ARM).
A ARM é uma das três principais organizações (juntamente com a Fairtrade International e a Responsible Jewellery Council) responsáveis pela certificação do ouro proveniente de mineiros que obedecem a uma série de normais legais, sociais e ambientais e os ligam a joalheiros que querem rastrear o ouro comprado até à sua origem. Além do preço de mercado, o ouro certificado recebe uma bonificação que os mineiros reinvestem na mina ou utilizam em projectos comunitários.
Desde 2015 que a medalha do Prémio Nobel da Paz é cunhada com ouro “de mineração justa” certificado pela ARM, ao passo que o Banco Cantonal de Zurique vende barras feitas com ouro proveniente do Peru certificadas pela Fairtrade International. No entanto, a rastreabilidade implica um consumo intensivo de recursos humanos e, devido à escassez de compradores dispostos a pagar mais caro, a quantidade de ouro certificado como oriundo de “comércio justo”, “mineração justa” ou “ecológica” (processado sem substâncias químicas tóxicas) ainda representa uma fracção minúscula do total extraído por ano.
A Iniciativa Ouro Melhor, uma parceria público-privada na qual participam o Estado suíço e a indústria do ouro, tenta estabelecer uma ligação directa entre os mineiros e os joalheiros e fabricantes de grande escala e aumentar a sua procura entre os compradores.
Embora 18 minas já tenham sido certificadas no Peru, o complexo sistema de contratos e cachorreo existente nas minas subterrâneas da jazida mais alta do mundo torna a certificação especialmente difícil. Mesmo assim, “não é impossível”, diz Hugo Pachas. “É apenas uma questão de persuadir os mineiros. E uma questão de confiança.”