Um homem de 63 anos, chamado Kwame Ajamu, vive a pouca distância de minha casa, num subúrbio de Cleveland. Em 1975, foi condenado à morte pelo homicídio de Harold Franks, um vendedor da zona oriental da cidade. Kwame tinha 17 anos quando foi condenado.
Kwame chamavase então Ronnie Bridgeman. Foi declarado culpado devido ao depoimento de um rapaz de 13 anos, que testemunhou tê-lo visto e a outro jovem agredirem o vendedor numa esquina. Não foram apresentadas mais provas que associassem Ronnie ao homicídio. Ele não tinha antecedentes criminais. Outra testemunha contou que Ronnie não estava na rua quando Harold Franks foi assassinado. No entanto, poucos meses após a sua detenção, ele foi condenado à morte.
Trinta e nove anos mais tarde soube-se que o rapaz que testemunhou contra ele tentou retractar-se, mas os agentes da polícia de Cleveland disseram ao rapaz que, se alterasse a sua história, deteriam os seus pais e acusá-los-iam de perjúrio, de acordo com o depoimento mais tarde apresentado em tribunal. Kwame saiu em liberdade condicional em 2003, depois de passar 27 anos na prisão, mas o estado de Ohio só o declarou inocente do homicídio 12 anos mais tarde, quando o falso testemunho do rapaz e a má conduta da polícia foram revelados no decurso de uma audição em tribunal relacionada com o processo.
Entrevistei Kwame Ajamu e outros indivíduos com antecedentes socioeconómicos muito díspares, mas partilhando um fardo comum: uma sentença de morte proferida depois de serem condenados por crimes que não cometeram.
A sua vida diária no corredor da morte é tão desanimadora, aterradora e confusa como o peso que carregaram por saberem que tinham sido condenados e eram inocentes. O stress pós-traumático sofrido por um indivíduo erradamente condenado, aguardando a execução pelo Estado, não se dissipa só porque o Estado o liberta, lhe pede desculpas ou lhe concede uma indemnização financeira – o que muitas vezes não acontece. A lição retirada deste caso é tão flagrante como um relâmpago intenso: um homem ou uma mulher condenados à morte, apesar de inocentes, são a testemunha perfeita contra aquilo que muitos consideram a imoralidade da pena capital.
É uma lição dolorosa para um país que executa pessoas a um ritmo quase sem paralelo no mundo e onde factores como a etnia do arguido ou da vítima, o baixo nível de rendimentos ou a incapacidade para contrariar os argumentos de polícias ou procuradores podem pôr o arguido em risco acrescido de uma condenação errada. A etnia é uma variável particularmente forte: em Abril de 2020, os negros representavam mais de 41% dos condenados no corredor da morte, apesar de apenas constituírem 13,4% da população dos EUA.
Derrick Jamison (Condenado na Comarca de Hamilton,Ohio). 20 ANOS NA PRISÃO, TODOS NO CORREDOR DA MORTE; ABSOLVIDO EM 2005. Derrick Jamison foi detido em 1984 por roubo e homicídio de um empregado de bar de Cincinnati. Foi condenado com base no falso depoimento de um dos verdadeiros autores do crime, que testemunhou a troco de uma redução da pena. A sua execução esteve agendada por seis vezes, mas houve sempre adiamentos, o último dos quais 90 minutos antes da hora prevista. Em 2000, um juiz ordenou novo julgamento. A sua condenação foi anulada e as acusações retiradas. Derrick tem 60 anos, dá formação sobre as falhas do sistema de justiça dos EUA e encoraja alterações legais.
Nas últimas três décadas, grupos como o Projecto Innocence ajudaram a esclarecer até que ponto o sistema de justiça norte-americano pode ser perigosamente falível, sobretudo em casos de pena de morte. Testes de DNA e inquéritos à conduta de agentes da polícia, procuradores e advogados de defesa oficiosos contribuíram para libertar 182 pessoas do corredor da morte desde 1972. Em Dezembro de 2020, tinham sido absolvidas mais de 2.700 pessoas condenadas desde 1989.
Os antigos reclusos do corredor da morte que entrevistei são associados da organização Witness to Innocence (WTI). Sediada em Filadélfia desde 2005, a WTI é uma organização sem fins lucrativos dirigida por antigos reclusos, entretanto absolvidos, cujo principal objectivo consiste em zelar para que a pena de morte seja abolida nos EUA, modificando a percepção pública.
2.555 Pessoas encontram-se no corredor da morte nos EUA
Em 1972, o Supremo Tribunal dos EUA decidiu que a pena de morte violava a proibição, pela Oitava Emenda constitucional, de castigos cruéis e incomuns. Vinte e dois estados aboliram-na: outros promulgaram leis compatíveis com as decisões do tribunal. Na actualidade, há reclusos no corredor da morte em 28 estados, bem como em instalações federais e das forças armadas dos EUA.
*No Wyoming, não há sentenças de morte desde 1982. Em 2020, o governador ponderou uma moratória.
**O estado de New Hampshire aboliu a pena de morte em 2019. O decreto de revogação não foi aplicável ao único recluso que ainda se encontrava no corredor da morte do estado.
† crê-se que foram levadas a cabo milhares de execuções na China, embora não sejam publicamente reconhecidas.
Dados de 15 de dezembro de 2020. Incluem apenas os indivíduos condenados à morte depois de 1972.
Christine Fellenz; Kelsey Nowakowski. Fontes: Amnistia Internacional; Centro de Informação sobre a pena de morte (DPIC)
Nos últimos 15 anos, a intervenção da WTI junto do Congresso dos EUA, dos parlamentos estaduais, dos assessores de políticas públicas e da comunidade académica contribuiu para a abolição da pena de morte em vários estados, embora esta continue a ter vigência legal em 28, a nível federal e nas forças armadas dos EUA. Em 2020, foram executadas 17 pessoas, dez das quais pela administração federal. Foi a primeira vez que o número de reclusos executados pela administração federal ultrapassou o valor da totalidade dos estados.
“Fui raptado pelo estado de Ohio quando tinha 17 anos”, resumiu Kwame Ajamu, no início da nossa conversa no meu quintal. Hoje, ele preside ao conselho de administração da WTI. “Era uma criança quando me mandaram para a prisão para ser executado”, disse-me. “Não percebia o que me estava a acontecer, nem como era possível que acontecesse. No princípio, implorei a Deus que tivesse misericórdia de mim, mas rapidamente me apercebi de que não haveria misericórdia.”
No dia em que chegou ao Estabelecimento Correccional do Sul do Ohio, Kwame foi conduzido a uma ala cheia de homens condenados. No corredor da morte, ao fundo, estava uma sala onde fora instalada a cadeira eléctrica do Ohio. Antes de o levarem à cela, os guardas fizeram questão de passar com ele por essa sala. “Um dos guardas quis que eu visse a cadeira”, recorda. “Nunca hei-de esquecer-me das suas palavras: ‘É ali que vais ter o teu encontro escaldante’.”
Desde o dia em que Kwame Ajamu foi condenado até 2005 – ano em que o Supremo Tribunal Federal dos EUA decidiu que a execução de menores violava a proibição, determinada pela Constituição, de castigos cruéis e incomuns – o país executou 22 pessoas condenadas por crimes cometidos antes de completarem 18 anos de idade, segundo o Centro de Informação sobre a Pena de Morte (ou DPIC na sigla anglófona).
A decisão do Supremo Tribunal foi tomada à revelia de uma história de execução de menores iniciada muito antes de os Estados Unidos da América sequer existirem. O primeiro caso conhecido de um menor executado nas colónias britânicas aconteceu em 1642, na Colónia de Plymouth, onde Thomas Granger, de 17 anos, foi enforcado pelo crime de sodomia com animais domésticos.
Shujaa Graham (Comarca de San Joaquin, Califórnia). 11 ANOS NA PRISÃO, 5 NO CORREDOR DA MORTE; ABSOLVIDO EM 1981 Graham, à direita, hoje com 69 anos, e o seu 20lho Jabari, exibindo uma tatuagem do pai, foi um adolescente problemático que passou parte da adolescência em centros de correcção juvenis. Já se encontrava numa prisão para adultos quando foi condenado pelo homicídio de um guarda prisional na Califórnia, em 1973. O Supremo Tribunal Estadual anulou a condenação em 1979, depois de ter sido revelado que a acusação excluíra sistematicamente jurados negros. Foi absolvido num novo julgamento, em 1981. Hoje, é um conferencista activo em debates sobre pena de morte e justiça racial.
Nos primeiros tempos do país, crianças ainda mais novas foram condenadas à mais dura pena judicial. Em 1786, Hannah Ocuish, de 12 anos, uma rapariga nativa-americana, foi enforcada em New London, Connecticut, acusada de homicídio. Durante a maior parte dos duzentos anos que se seguiram, o factor etário foi ignorado na aplicação das sentenças. Menores e adultos eram julgados, condenados e executados tendo em conta os seus crimes e não a maturidade. Até ao século XX, os registos criminais disponíveis não mencionam regularmente a idade dos executados. Em 1987, ano em que o Supremo Tribunal dos EUA concordou, pela primeira vez, em ponderar a constitucionalidade da pena de morte para menores, já tinham sido documentadas 287 execuções de menores. Em 1978, quando o Supremo Tribunal decidiu que a lei do Ohio sobre a pena de morte violava a proibição de castigos cruéis ao abrigo da Oitava Emenda, bem como o requisito da igualdade de protecção ao abrigo da lei, determinado pela Décima Quarta Emenda, a sentença de morte de Kwame Ajamu foi comutada para prisão perpétua. Mesmo assim, ele ficou atrás das grades durante mais um quarto de século até ser libertado. Só viria a ser absolvido em 2014, depois de um repórter de uma revista de Cleveland e o Projecto Ohio Innocence terem ajudado a desmontar a mentira que o empurrara para o corredor da morte.
“Há um amplo leque de falhas que podem provocar condenações erradas em casos de pena capital”, disse Michael Radelet, sociólogo da Universidade do Colorado. “Os agentes da polícia podem obter uma confissão à força ou, de qualquer outra maneira, falsa. A acusação também pode suprimir provas de inocência. Por vezes, testemunhas oculares fazem identificações bem-intencionadas, mas erradas. A falha mais frequente é o perjúrio, cometido por testemunhas da acusação.”
Poucos opositores da pena capital resumem tão frontalmente a sua posição contra as execuções sob tutela do Estado como a irmã Helen Prejean, co-fundadora da WTI e autora do livro “Dead Man Walking”, o campeão de vendas que inspirou o filme de 1995 com o título “A Última Caminhada”, protagonizado por Susan Sarandon e Sean Penn.
A freira sem papas na língua descreveu a maneira como a sua atitude face à pena de morte se tornou pessoal, ao fazer-lhe recordar o medo que sentira de uma experiência dentária bastante rotineira há alguns anos. “Eu ia desvitalizar um dente numa segunda-feira de manhã,” contou-me. “Durante a semana anterior à desvitalização, sonhei com ela. Quanto mais se aproximava o dia da consulta, mais nervosa eu ficava.”
Ela prosseguiu: “Agora imagine como será viver antecipadamente o dia para que está marcada a sua morte. Dos seis indivíduos que até hoje acompanhei ao longo do corredor da morte, todos contavam o mesmo pesadelo: os guardas arrastam-nos para fora das celas, eles gritam a pedir ajuda e resistem e, por fim, acordam e apercebem-se de que ainda se encontram na cela. Percebem que é só um sonho. Mas sabem que, um dia, os guardas vão mesmo chegar para vir buscá-los e que já não será um sonho. É essa a tortura. É uma tortura que, até hoje, o Supremo Tribunal se recusa a reconhecer como violação da proibição constitucional dos castigos cruéis e incomuns.”
Mais de 70% dos países do mundo aboliram a pena de morte, ou na lei ou na prática, segundo o DPIC. Dos locais onde a Amnistia Internacional documentou execuções recentes, os EUA foram um entre apenas 13 países onde ocorreram execuções em cada um dos últimos cinco anos.
O apoio dos norte-americanos à pena capital tem vindo a diminuir desde 1996, ano em que 78% defendiam a pena de morte para indivíduos condenados por homicídio. Em 2018, esse apoio descera para 54%, segundo o Pew Research Center.
Antes de Ray Krone ser condenado à morte, a sua vida não tinha quaisquer semelhanças com a de Kwame Ajamu. Natural de Dover, na Pensilvânia, Ray era o mais velho de três filhos e um rapaz típico de uma aldeia norte-americana. Criado como luterano, cantava no coro da igreja, foi escuteiro e, na adolescência, era conhecido como um miúdo bastante esperto, com tendência para pregar partidas. Fez um pré-alistamento na Força Aérea quando frequentava o ensino secundário e, depois de concluir o 12.º ano, prestou serviço militar durante seis anos.
Na sequência de uma dispensa honrosa, permaneceu no Arizona e foi trabalhar para o Serviço Postal dos EUA, emprego que tencionava manter até se reformar. Essa carreira de sonho e a sua vida foram abruptamente estilhaçados em Dezembro de 1991, quando Kim Ancona, de 36 anos e gerente de um bar, foi encontrada esfaqueada na casa de banho masculina de um estabelecimento comercial de Phoenix frequentado por Ray Krone.
A polícia centrou de imediato a sua atenção em Ray como suspeito depois de saber que ele tinha dado boleia a Kim poucos dias antes. Um dia após a descoberta do cadáver, Ray Krone recebeu ordens para fornecer uma amostra de sangue, saliva e cabelo. Foi igualmente feito um molde dentário seu. No dia seguinte, foi detido e acusado de homicídio qualificado.
Segundo os investigadores, os dentes desalinhados de Ray correspondiam a marcas de mordedura no corpo da vítima. Pouco depois, as reportagens jornalísticas troçavam de Ray Krone, chamando-lhe o homicida do “dente torto”. Tal como no caso de Kwame Ajamu, não havia provas forenses que o associassem ao crime. O estudo de DNA era então uma ciência relativamente jovem e nem a saliva nem o sangue recolhidos no local do crime foram submetidos a qualquer exame. Outros testes, mais simples, ao sangue, à saliva e ao cabelo revelaram-se inconclusivos. Existiam provas de inocência, mas estas foram ignoradas, como o facto de as pegadas em redor do cadáver da vítima não coincidirem com a dimensão dos pés de Ray, nem com quaisquer dos seus sapatos. Baseando-se em pouco mais do que o depoimento de um perito dentário, que testemunhou que as marcas de mordedura no corpo da vítima coincidiam com os dentes desalinhados, um júri declarou Ray culpado. Foi condenado à morte.
Ray Krone (Comarca de Maricopa, Arizona). 10 ANOS NA PRISÃO, 4 NO CORREDOR DA MORTE; ABSOLVIDO EM 2002 Em Abril de 2002 Ray (hoje com 64 anos) tornou-se conhecido como o centésimo homem absolvido do corredor da morte. Fora condenado pelo homicídio da gerente de um bar, de 36 anos, assassinada na casa de banho de um estabelecimento de Phoenix. Ray dera-lhe boleia para uma festa dias antes. O DNA encontrado no local do crime não foi examinado. A acusação baseou-se numa prova fraca: uma marca de mordedura. Uma vez submetido o DNA como prova no novo julgamento, Ray foi ilibado. O verdadeiro homicida identificado pelo DNA encontrava-se já na prisão, por agredir sexualmente e asfixiar uma menina de 7 anos.
“Ficamos devastados ao ver que tudo aquilo em que sempre acreditámos e defendemos nos é retirado e sem justa causa”, contou Ray. “Eu era tão ingénuo. Não acreditava que isto me pudesse mesmo acontecer. Tinha prestado serviço militar ao meu país. Trabalhei para os correios. Não era perfeito, mas nunca me metera em sarilhos. Nunca me fora passada uma multa de estacionamento, mas ali estava eu, no corredor da morte. Foi então que me apercebi de que, se aquilo me podia acontecer, poderia acontecer a qualquer pessoa.” O Gabinete do Procurador da Comarca de Maricopa gastou mais de 50 mil dólares na acusação, baseada na teoria da marca de mordedura, enquanto o perito dentário consultado pelo defensor oficioso de Ray Krone recebeu 1.500 dólares. Esta discrepância na utilização dos recursos disponibilizados a procuradores e advogados de defesa em casos de pena capital gera resultados previsíveis para os arguidos manietados por representação jurídica mal financiada e ineficaz.
Em 1995, Ray Krone conseguiu um novo julgamento, quando um tribunal de recurso decidiu que os procuradores tinham ocultado indevidamente um vídeo da prova da mordedura até à véspera do julgamento. Voltou a ser considerado culpado. Os procuradores recorreram aos mesmos peritos dentários que tinham condenado Ray originalmente. Desta feita, porém, o juiz que proferiu a sentença decidiu que a prisão perpétua era mais adequada.
A mãe e o padrasto de Ray recusaram-se a desistir da convicção de que o filho era inocente. Hipotecaram a casa e contrataram um advogado para analisar as provas recolhidas no decurso da investigação original. Apesar das objecções levantadas pelo procurador, um juiz aprovou um requerimento apresentado pelo advogado da família no sentido de as amostras de DNA serem examinadas por um laboratório independente.
Em Abril de 2002, os resultados dos exames de DNA demonstraram a inocência de Ray Krone. Um homem chamado Kenneth Phillips, que vivia a menos de um quilómetro de distância do bar onde Kim fora assassinada, deixara o seu DNA nas roupas que esta vestira. Phillips foi facilmente encontrado: já estava na prisão por ter agredido sexualmente e asfixiado uma menina de 7 anos.
Libertado da prisão quatro dias depois de os resultados dos testes de DNA serem anunciados, Ray tornou-se o centésimo homem nos Estados Unidos a ser condenado à morte, desde 1973, e posteriormente absolvido e libertado.
Gary Drinkard não era nenhum menino do coro. Já tivera os seus problemas com as forças da lei quando Dalton Pace, um negociante de sucata, foi assaltado e assassinado em Decatur, no estado do Alabama, em Agosto de 1993.
Duas semanas mais tarde, a polícia deteve Gary, então com 37 anos, quando Beverly Robinson, meia-irmã de Gary, e Rex Segars, companheiro desta, fizeram um acordo com a polícia que implicava Gary no homicídio. Alvo de acusações de roubo não ligadas a este crime, o casal concordou em cooperar com a polícia e testemunhar que este lhes contara ter matado Pace.
Quando conversei com Gary, este falava ainda com o arrastado sotaque do Sul. Só se exaltou quando lhe pedi que descrevesse o tempo no corredor da morte.
“Pensei que me iam matar”, disse. E esse parecia ser mesmo o plano. Recorrendo ao depoimento das testemunhas principais, os procuradores manipularam a alegada confissão, ao mesmo tempo que influenciavam o júri com referências à alegada participação de Gary nesses roubos anteriores. Os advogados de defesa oficiosos, sem qualquer experiência em processos de pena de morte e pouca em matéria de direito penal, permaneceram quase sempre mudos. Não fizeram grandes tentativas para apresentar provas em prol da inocência do seu cliente. Gary foi declarado culpado em 1995 e condenado à morte. Passaria quase seis anos no corredor da morte.
Em 2000, o Supremo Tribunal do Alabama ordenou a realização de um novo julgamento, devido ao facto de a acusação ter aduzido os antecedentes criminais de Gary Drinkard. “A prova de maus actos anteriormente praticados pelo arguido … é geralmente inadmissível. Essas provas são prejudiciais por poderem levar o júri a inferir que, como o arguido cometeu crimes no passado, há mais probabilidade de ter cometido o crime de que é acusado”, escreveu o tribunal, ao conceder a realização de um novo julgamento.
O caso de Gary Drinkard chamara a atenção do Southern Center for Human Rights, uma organização que combate a pena de morte. A instituição disponibilizou-lhe representação jurídica. No novo julgamento, em 2001, os seus advogados apresentaram provas de que Gary padecia de uma lesão nas costas e se encontrava fortemente medicado na altura do homicídio. Os advogados argumentaram que ele estava em casa, de baixa por acidente de trabalho, quando Pace foi assassinado. Gary foi absolvido.
“Eu não era contra a pena de morte até o Estado tentar matar-me”, resumiu Gary.
Registaram-se mais de 2.700 absolvições nos EUA desde 1989, primeiro ano em que o DNA se tornou um factor de ponderação, de acordo com o Registo Nacional de Absolvições.
Em 1993, Kirk Bloodsworth foi o primeiro indivíduo libertado do corredor da morte graças a provas de DNA. Fora detido em 1984 e acusado da violação e homicídio de Dawn Hamilton, uma menina de 9 anos, no estado de Maryland. A polícia recebeu um alerta contra Kirk, que acabara de se mudar para aquela zona, quando um delator anónimo o identificou depois de ver um desenho policial do suspeito na televisão.
Na verdade, Kirk tinha poucas semelhanças com o suspeito mostrado no esboço policial. Não havia qualquer prova física que o ligasse ao crime. Não tinha antecedentes criminais. Mesmo assim, foi considerado culpado e condenado à pena de morte praticamente com base no depoimento de cinco testemunhas, incluindo duas crianças de 8 e 10 anos, que afirmaram tê-lo visto perto do local do crime. A existência de erro na identificação por testemunhas é um factor de influência em muitas condenações erradas, segundo o DPIC.
“Gaseiem-no e dêem-lhe cabo do canastro”, recorda-se Kirk de ter ouvido depois de ser condenado. Durante esse tempo, interrogava-se sobre como era possível ter sido condenado à morte por um crime hediondo que não cometera.
Cerca de dois anos mais tarde, foi-lhe concedido um segundo julgamento por ter sido demonstrado, em sede de recurso, que a acusação ocultara à sua defesa provas que poderiam inocentá-lo, nomeadamente que a polícia identificara outro suspeito, mas não seguira essa pista. Mais uma vez, Kirk foi considerado culpado. A sentença foi dada por um juiz diferente, que condenou Kirk a prisão perpétua e não à morte.
“Houve dias em que perdi a esperança. Pensei que ia passar o resto da vida na prisão. Um dia, li um exemplar do livro de Joseph Wambaugh”, conta. Nesse livro de 1989, “The Blooding” [sem tradução portuguesa], descreve-se a emergente ciência dos exames de DNA e a maneira como as entidades responsáveis pela aplicação da lei a tinham utilizado pela primeira vez para ilibar suspeitos e resolver um caso de violação e homicídio.
Kirk perguntou a si mesmo se essa ciência seria, de alguma maneira, capaz de limpar o seu nome. Quando perguntou se era possível recorrer ao exame do DNA para provar que não estivera no local do crime, foi-lhe dito que essa prova fora inadvertidamente destruída. Não era verdade. A prova foi mais tarde encontrada no armazém do tribunal. Os procuradores, seguros do seu caso, aceitaram disponibilizar os artigos.
Uma vez examinados os artigos, foi detectada a presença de DNA viável e não pertencia a Kirk Bloodsworth. Foi libertado e, seis meses mais tarde, o governador de Maryland concedeu-lhe a absolvição plena. Seria precisa quase uma década até o verdadeiro homicida ser pronunciado. O DNA pertencia a um homem chamado Kimberly Shay Ruffner, que fora libertado da prisão duas semanas antes do homicídio da menina. Ruffner confessou-se culpado do homicídio da menina Hamilton e foi condenado a prisão perpétua.
Kirk é agora director executivo da WTI e militante contra a pena de morte. O Decreto da Protecção da Inocência, promulgado por George W. Bush em 2004, criou o Programa Kirk Bloodsworth de Subsídio aos Testes de DNA Pós-Condenação para ajudar a custear a realização de testes de DNA após a condenação.
“Eu era pobre e chegara a Baltimore 30 dias antes de ser preso”, afirma Kirk. “Quando conto a minha história e explico a facilidade com que um indivíduo pode ser injustamente condenado, isso leva a repensar a maneira como o sistema de justiça criminal funciona. Não é precisa muita imaginação para acreditar que inocentes foram executados.”
Sabrina Butler descobriu que Walter, o seu filho de 9 meses, parara de respirar pouco antes da meia-noite de 11 de Abril de 1989. Mãe solteira de 18 anos, Sabrina tentou reanimá-lo. Passados vários minutos sem êxito, conduziu-o rapidamente a um hospital em Columbus, no estado do Mississippi, onde ele foi declarado morto à chegada. Menos de 24 horas mais tarde, era acusada de homicídio.
Walter apresentava lesões internas graves quando morreu. Sabrina contou aos agentes da polícia que as lesões deveriam ter sido causadas pelos esforços de reanimação. A polícia duvidou da história e, após várias horas de interrogatório sem a presença de um advogado, ela assinou um depoimento em que afirmava ter batido na barriga do bebé porque não parava de chorar. Onze meses mais tarde, Sabrina foi considerada culpada e condenada à pena de morte.
A equipa de defesa de Sabrina Butler não apresentou quaisquer testemunhas. Um perito médico poderia ter testemunhado que as lesões de Walter eram compatíveis com a reanimação desajeitada de uma mãe desesperada. Um vizinho chamado como testemunha durante um julgamento posterior poderia ter prestado um depoimento útil sobre as tentativas feitas por Sabrina para salvar a vida do filho. Em vez disso, os advogados de defesa oficiosos, nomeados pelo tribunal, um dos quais especializado em lei do divórcio, não convocaram testemunhas nem chamaram Sabrina a depor em defesa do seu caso.
“Ali estava eu, uma miúda negra numa sala cheia de adultos brancos”, recordou Sabrina Butler, hoje Sabrina Smith. “Eu não compreendia a sequência do julgamento. Tudo o que os meus advogados me disseram foi que ficasse sossegada e olhasse para o júri. Quando me apercebi de que a minha defesa não iria chamar testemunhas que me ajudassem a provar a minha inocência, percebi que a minha vida tinha acabado.”
A condenação e a sentença de Sabrina foram anuladas em Agosto de 1992, depois de o Supremo Tribunal do Missíssipi decidir que o procurador fizera comentários impróprios sobre o facto de ela não ter prestado depoimento em tribunal. Foi ordenado um novo julgamento.
O segundo julgamento, com melhores advogados, trabalhando probono, resultou numa absolvição. Um vizinho confirmou as tentativas desesperadas feitas por Sabrina para reanimar o filho. Um perito médico testemunhou que as lesões da criança poderiam ter resultado desses esforços. Foram também apresentadas provas de que Walter tinha uma doença renal preexistente que terá contribuído para a morte súbita. Sabrina saiu em liberdade depois de cinco anos na prisão, a primeira metade dos quais no corredor da morte.
Uma questão que deixa perplexos os absolvidos e o público em geral é a seguinte: existe uma fórmula coerente para indemnizar as pessoas erradamente condenadas, em especial as sentenciadas à morte? Na verdade, não existe. Um pequeno número de absolvidos recebeu milhões de euros de indemnização, dependendo das leis do estado que os condenou, mas muitos receberam pouco ou nada.
Poucos absolvidos do corredor da morte acompanham tanto a questão da indemnização como Ron Keine, que vive na região sudeste do Michigan. Ron resolveu dedicar parte da sua vida a contribuir para a causa das pessoas condenadas por erro judicial, que muitas vezes são reintegradas na sociedade com fracas capacidades de sobrevivência. Nem sempre foi tão bondoso na sua vida. Tendo crescido em Detroit, Ron pertencia a um bando de rufias. Antes dos 16 anos, já fora baleado e esfaqueado. Aos 21 anos, ele e o seu melhor amigo decidiram atravessar o país numa carrinha.
Ron Keine (Comarca de Bernalillo, Novo México). 20 ANOS DE PRISÃO, TODOS NO CORREDOR DA MORTE; ABSOLVIDO EM 1976. Ron Keine, ao centro (73 anos), foi um dos quatro homens condenados à morte pelo rapto, violação e homicídio de um estudante da Universidade do Novo México em 1974. O jornal “The Detroit News” apurou que a acusação forçara o depoimento de uma testemunha, que mais tarde se retractou, revertendo o depoimento. Ron foi libertado depois de se provar que a arma do crime conduzia a um vagabundo que confessou o homicídio. Um procurador foi expulso da Ordem e três detectives foram despedidos da polícia devido aos seus actos.
A longa festa rodoviária corria conforme os planos quando, em 1974, ele e mais quatro motociclistas foram detidos no Oklahoma e extraditados para o Novo México, onde foram pronunciados pelo homicídio e mutilação de um estudante universitário de 26 anos em Albuquerque. Segundo o testemunho de uma empregada de limpeza de um motel, o grupo violou-a e, em seguida, ela viu o grupo matar o estudante no mesmo motel.
O problema desta história deveria ter sido imediatamente constatado. Os motociclistas não se encontravam em Albuquerque quando William Velten, Jr., o estudante, foi assassinado. Estavam numa festa em Los Angeles e tinham uma multa de trânsito que o provava. Mais tarde, a empregada de limpeza retractou-se, revertendo a sua versão.
Em Setembro de 1975, um vagabundo, Kerry Rodney Lee, confessou o homicídio de Velten, possivelmente por se sentir culpado ao saber que cinco homens estavam no corredor da morte devido ao seu crime. A arma utilizada para matar Velten correspondia a uma arma roubada ao pai da namorada de Lee. Com base nesta prova, Ron e os seus amigos motociclistas obtiveram um novo julgamento e o procurador decidiu não pronunciá-los pelo crime. Lee foi condenado pelo homicídio de Velten em Maio de 1978.
“Quando estava no corredor da morte, eu sabia que era inocente, mas mesmo assim cheguei a estar a nove dias da minha primeira data de execução”, afirmou Ron, hoje com 73 anos. “Eu não tinha voz. Por isso, quando fui libertado, decidi que passaria a vida a ser um espinho” cravado no flanco do sistema de justiça criminal.
Ron fundou várias pequenas empresas de sucesso após a sua absolvição e tem apresentado depoimentos no parlamento estadual para abolir a pena de morte. Tendo recebido apenas uma indemnização de 2.200 dólares da comarca que o pôs no corredor da morte, tem exigido a criação de um sistema de indemnização para outros condenados erradamente condenados à morte.
“Quando saem do corredor da morte, as pessoas sentem-se inúteis”, afirmou. “Sentem que não valem nada. Não têm auto-estima e, normalmente, saem com menos de vinte cêntimos no bolso. Nós tentamos ajudá-los a encontrar os recursos de que precisam para sobreviver.”