Contos de fada reimaginados

Apreciadas pelas lentes da história, cultura e política da Nigéria, as narrativas europeias clássicas assumem novos significados neste país. Yagazie Emezi, bolseira da National Geographic, reimaginou-as com a sua câmara fotográfica.

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STOCK 9211

Em 2018, comecei a expressar as minhas dúvidas e pensamentos através da fotografia. O meu projecto, “Another Tale by Moonlight”, apoiado pelo programa de bolsas da National Geographic e atribuído durante a pandemia de COVID-19, é uma releitura (sobretudo) dos contos de fadas europeus, justapondo as realidades histórica, cultural, ambiental e sociopolítica da Nigéria.

Com esta série, pretendo destacar as narrativas obscuras e as complexidades morais entrelaçadas por estas duas culturas, expandindo a narrativa visual e o que esta pode concretizar quando ultrapassa os padrões ocidentais.

O projecto aborda os dramas do nosso passado, do presente e do futuro próximo, explorando as formas através das quais esses conflitos, reenquadrados visualmente, podem confrontar a autoridade e exigir mudanças. O regresso às narrativas europeias é a forma de mostrar a minha história e a do meu país. 

UMA NAÇÃO VINCULADA PELA LIBERDADE, PAZ E UNIDADE

YAGAZIE EMEZI

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UMA NAÇÃO VINCULADA PELA LIBERDADE, PAZ E UNIDADE

O título inspira-se no hino nacional da Nigéria e a imagem alude ao conto “Cachos Dourados e os Três Ursos”. Os ursos tornam-se espíritos de grupos étnicos e a sua aposta na independência derrota as remanescências do colonialismo, representadas por uma mulher vestida como Isabel II na sua visita à Nigéria, em 1956.

Na reinterpretação de “A Pequena Sereia”, a personagem transforma-se em Mami Wata

YAGAZIE EMEZI

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POSSO ESTAR MORTA...

... mas as minhas ideias não morrerão: nesta reinterpretação de “A Pequena Sereia”, a personagem transforma-se em Mami Wata, uma divindade aquática africana que se ergue de forma desafiadora, protestando contra a poluição, num leito de algas marinhas e cercada por jerricãs de água suja.

A minha versão deste conto aborda a crise da poluição dos plásticos.

YAGAZIE EMEZI

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“A ROUPA NOVA DO IMPERADOR”

A minha versão deste conto aborda a crise da poluição dos plásticos. Reaproveitei saquetas de água purificada para construir o traje do imperador. O meu objectivo é chamar a atenção para uma questão real do planeta que eu — e muitas outras pessoas — ainda precisamos de ver e abordar de uma forma abrangente.

Inspirada no “Barba Azul”, transformei a personagem numa mulher rica da etnia igbo que segura as cabeças de antigos líderes nigerianos.

YAGAZIE EMEZI

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GUIA BEM OS NOSSOS LÍDERES

Inspirada no “Barba Azul”, transformei a personagem numa mulher rica da etnia igbo que segura as cabeças de antigos líderes nigerianos. Como seria a nossa história sem corrupção, tribalismo e políticas fracassadas? Ao abordar esta questão, espero que possamos trabalhar rumo a uma sociedade mais justa.

Um homem usa uma T-shirt do Corpo de Serviço Juvenil, cujos membros zelam para que não existam subornos ou interferências nos processos eleitorais na nigéria

YAGAZIE EMEZI

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PARA CONSTRUIR UMA NAÇÃO

Usei “Rumpelstiltskin” para denunciar as práticas eleitorais injustas que contribuem para o declínio ambiental, económico e político do país. Um homem usa uma T-shirt do Corpo de Serviço Juvenil, cujos membros zelam para que não existam subornos ou interferências nos processos eleitorais. No cenário, há boletins de voto e nairas, a moeda local.

“ CAPUCHINHO VERMELHO”

YAGAZIE EMEZI

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“CAPUCHINHO VERMELHO”

Estudei os arquivos de fotografia colonial da Nigéria e encontrei referências culturais que usei na minha forma de interpretar esta história infantil. Substituí a personagem principal por uma mulher igbo envolta pela bandeira britânica, numa interpretação de como o poder colonialista distorceu e afectou a expressão indígena.

PAGAR AO FLAUTISTA

YAGAZIE EMEZI

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PAGAR AO FLAUTISTA

Esta imagem é uma adaptação de “O Flautista de Hamelin” que ilustra a forma ineficaz como o governo lida com os bandidos e militantes, aumentando a insegurança geral. Um exemplo são as quase cem alunas de Chibok ainda desaparecidas depois de terem sido sequestradas pelo grupo terrorista Boko Haram, em 2014.

Reinterºretação de “A Bela Adormecida”.

YAGAZIE EMEZI

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CRIANÇAS DE AMANHÃ

Para destacar a ineficácia do sistema educativo, que pode dar origem a que alguns alunos faltem à escola durante anos, reinterpretei “A Bela Adormecida”. A personagem principal representa o corpo estudantil, enclausurado atrás de um vidro à espera de ser resgatada… algum dia.

Porquê este projecto?

Gostaria de vos apresentar algumas das histórias com que cresci na Nigéria. Faziam parte de um programa de televisão chamado “Tales by Moonlight”, onde um ancião, sentado debaixo de uma árvore, contava histórias. Era a versão televisiva da antiga tradição oral. Antigamente, as fontes de luz ideais eram a lua cheia e as estrelas, que iluminavam rostos de crianças e adultos ansiosos com a sua luz azul-prateada. Talvez houvesse também o som próximo de grilos e o da brisa suave agitando as folhas das árvores.

Venho de uma família de contadores de histórias. À noite, o meu pai contava a história de como, em menino, quase se afogou num poço quando tentava içar água. Lembrava como fora atingi-do por um raio na faculdade de medicina e como lutara contra um agente do KGB com um bastão numa estação de comboios para se despedir da namorada... Eu acreditei por completo em todas as narrativas.

Talvez essas histórias tivessem o intuito de nos distrair da vida real, tal como as pilhas de livros onde enterrávamos as nossas cabeças, curvados sobre a mesa de jantar, empoleirados em cadeiras e camas, construindo mundos a partir de palavras.

Para mim, os contos de fadas eram especialmente emocionantes. Adorava aquelas histórias grandiosas e impossíveis e as imagens fantásticas que criava na minha cabeça de castelos magníficos, trajes bordados extravagantes, fadas, florestas e, é claro, lutas de espadas, enganos e sangue. Ficava encantada com o sangue fictício dessas histórias, mas havia uma violência real à nossa porta. Na década de 1990, a ditadura militar não travava os confrontos étnicos e religiosos.  A justiça da selva muitas vezes resultava em corpos decapitados e queimados e o fedor impregnava as ruas enquanto as crianças caminhavam para a escola. Apertávamos o nariz e abríamos os olhos para absorver tudo.

Quando cheguei à idade adulta, com o coração devastado por essas memórias, comecei a focar-me na minha infância e na regra de silêncio que a escondia. Por que motivo não se falaria dessa violência em casa? Fui criada sobretudo pelo meu pai em Aba, uma cidade do Sudeste da Nigéria. Embora ele se identifique com orgulho como um homem de etnia igbo, o legado colonial do país e a hipervalorização dos costumes europeus levaram a que desse prioridade à língua e educação inglesas em detrimento da nossa língua e cultura. Ao fazê-lo, pensava que teríamos mais hipóteses de sermos bem-sucedidos no futuro.

Yagazie Emezi
JOE MCKENDRY

Para criar o seu projecto “Another Tale by Moonlight”, Yagazie Emezi demorou quatro anos a conceber, construir e compor cenários simbólicos. Recrutou amigos, modelos e activistas como colaboradores. Criou figurinos, adereços e cenários, utilizando peças carregadas de significado e, em algumas imagens, utilizou ferramentas de edição digital para eliminar imperfeições. A National Geographic Society, empenhada em destacar e proteger as maravilhas do nosso mundo, financiou o trabalho da exploradora Yagazie Emezi desde 2019.

Artigo publicado originalmente na secção "Diário de uma Fotógrafa" edição de Julho de 2023 da revista National Geographic.