À entrada da Sé de Braga, o peso dos séculos é quase tangível. A porta principal, imponente, tem o efeito paradoxal de fazer sentir o visitante simultaneamente inspirado e esmagado pela história. Ganhando coragem para cruzar as arcadas, dirigimo-nos ao encontro do túmulo de Dom Gonçalo Pereira, arcebispo de Braga e um dos mais destacados clérigos do século XIV. A luz, escassa, coada por diminutas janelas, empresta densidade ao espaço, como se a presença do arcebispo fosse real. Neste ambiente, o silêncio é quebrado, ouvindo-se na laje de pedra os passos ritmados de alguém que se aproxima. A silhueta de uma batina impecavelmente negra, contrastando com a alvura do colarinho branco, assoma. O cónego Macedo cumprimenta-nos então, de olhar austero, mas conversa franca.
O dia 24 de Setembro de 1992 é um tópico incontornável na conservação deste monumento. Nessa manhã, sob orientação do conservador Fernando Beloto, deu-se a abertura do túmulo. Ocupando o centro da capela de Nossa Senhora da Glória, é uma estrutura imponente. Minuciosamente esculpido em pedra clara, ostenta os 12 apóstolos num dos lados e figuras cantantes do outro, com o corpo do arcebispo no topo, em escala aumentada. Na companhia do cónego Macedo, verdadeiro repositório histórico das últimas décadas da Sé de Braga, as memórias vão-se desfiando ao longo de horas, com o objectivo de melhor compreender o legado resultante daquele evento, a propósito do estudo dos têxteis encontrados, um projecto que o Departamento de Conservação e Restauro do Instituto dos Museus e Conservação desenvolve desde 2010.
“Estive aqui como testemunha, uma vez que era o secretário do Cabido”, recorda o cónego Macedo. “O túmulo foi aberto e rapidamente a capela se encheu de um cheiro a rosas secas. Colaborei na remoção de alguns tecidos, e recordo especialmente o momento em que retirei as luvas, com imenso cuidado. Mas logo percebemos que o pálio deveria ter sido pilhado, talvez durante as invasões francesas... Não havia joalharia, apenas um alfinete, escondido, sob as franjas da mitra.”
A imponência das vestes que envolviam o corpo ossificado era inegável. Oriundo de uma das mais aristocráticas famílias portuguesas, Dom Gonçalo Pereira foi pai do prior do Crato e avô do Condestável, Dom Nuno Álvares Pereira, tendo um papel político activo e de prestígio ao longo da vida. Tendo sido criado no paço de Dom Dinis, estudaria mais tarde em Salamanca, onde completou a sua formação. Sinal do seu estatuto, o rei enviou-o à cúria pontifícia, em Avignon, numa missão diplomática. A nomeação para bispo de Évora surgiu em 1321, mas no ano seguinte assumiria funções em Lisboa, culminando no arcebispado de Braga, de 1326 a 1348, ano da sua morte. Aí desenvolveu um projecto social interventivo, tanto em termos de gestão administrativa como de apoio militar à Coroa, o que lhe mereceria o invulgar reconhecimento simultâneo por parte da aristocracia e da população, como aquando da epidemia da peste negra, em que, dada a falta generalizada de alimentos existente, ele próprio os providenciou a custo reduzido ao povo, a suas expensas.
No Departamento de Conservação e Restauro, em Lisboa, os conservadores e restauradores recuperam com cuidado cirúrgico fragmentos de tecidos medievais, restituindo-lhes parte do esplendor que outrora tiveram.
O legado do arcebispo mantém-se até hoje, patente na toponímia da cidade. O largo com o seu nome passa junto à Sé e a fortificação da Torre de Menagem foi por si iniciada. Sinal do poder e prestígio que gozava na capital eclesiástica de Portugal, mandou construir ainda em vida o seu próprio túmulo e respectiva capela. Sublinhando a importância de Braga na hierarquia da Igreja e na identidade nacional, o cónego Macedo cita um velho aforismo, com uma ponta de orgulho, reforçada pelo sorriso contido: “Portugal nasceu no castelo de Guimarães, mas veio baptizar-se a Braga”!
O espólio recolhido nesta acção teve um percurso tortuoso. No ano seguinte, seguiria para o Museu Monográfico de Conímbriga, onde foi sujeito a trabalhos prévios de conservação. Entre 2000 e 2006, a Fundação Abegg, sediada na Suíça e especializada na conservação de têxteis, fez o tratamento da mitra, ínfulas e luvas, presentemente em exposição no Tesouro-Museu da Sé de Braga.
Em meados da década de 2000, chegou ao então Instituto Português de Conservação e Restauro (IPCR) uma parte dos fragmentos desta colecção, o que levaria a que, há dois anos, tivesse início nesta instituição o ambicioso projecto de investigação em colaboração com o Laboratório HERCULES, da Universidade de Évora. O objectivo era o estudo e conservação destes têxteis medievais, dado o seu elevado valor patrimonial, histórico e cultural, ainda por cima porque em Portugal é pouco comum a abertura de túmulos tão antigos e já ocorreram casos controversos no passado. Por outro lado, o facto de existir uma datação precisa e de ser possível identificar a sua origem (um alto dignitário eclesiástico) sugere um enquadramento e relevância históricos singulares. A tudo isto acresce a curiosidade de se dispor de tecidos com mais de seis séculos que apresentam diversidade de materiais (seda, linho, algodão, penas, pele e lâmina de pele dourada), de técnicas (lampassos, sarjas, tafetás, bordados e passamanaria) e até de origens (inglesa e oriental). Com os trabalhos sediados no actual Laboratório de Conservação e Restauro José de Figueiredo da Direcção-Geral do Património Cultural (antigo IPCR), coordenado pelo químico António Candeias, a equipa aliou tecnologia de ponta à investigação histórica, usando técnicas de conservação e restauro tradicionais.
Numa ampla sala desta unidade contígua ao Museu Nacional de Arte Antiga, a investigadora Madalena Serro encontra-se debruçada sobre uma lupa binocular, aspirando com minúcia um fragmento acastanhado e ressequido. Com a voz abafada pela máscara de protecção que lhe esconde as feições delicadas, conta como a equipa trabalha: “Por vezes, sentimo-nos quase como detectives, cujo trabalho é ‘interrogar’ os fragmentos, pegar nas provas e descobrir informações através dos meios que estão ao nosso alcance. E nem sempre é a tecnologia que nos dá a resposta. Recentemente, andámos à volta de uma peça dias a fio e foi num momento de inspiração que descobrimos a ‘chave’ para o padrão, que depois se repetia.”
O estado de conservação dos tecidos com que se deparou não era encorajador, com muita sujidade, orgânica e inorgânica, deformações, fibras frágeis e quebradiças e alteração cromática. Além disso, a equipa foi confrontada com uma degradação heterogénea da lâmina, com desgaste das superfícies douradas, falta de ouro e lacunas. Com o objectivo de reverter estas falhas, munidas de pequenas pinças e luvas, as técnicas vão, cuidadosamente, retirando as folhas de papel sem acidez que protegem os tecidos, revelando têxteis de cores esbatidas, acastanhados, visualmente pouco apelativos. No entanto, o entusiasmo com que as explicações chegam é contagiante. Tanto quanto os pormenores dos tecidos. Olhados de perto e com atenção, ganham vida com as decorações de cruzes suásticas, rostos, motivos zoomórficos e vegetalistas, tendo para tal de passar por um processo de planificação, fundamental para reduzir deformações, sendo conseguida com recurso a pesos de vidro, alfinetes entomológicos ou até com um humidificador ultra-sónico.
À medida que os fragmentos dispersos se tornam mais perceptíveis, há um trabalho de paciência e método que consiste em relacioná-los com vestes ou acessórios observados no interior do túmulo. Com recurso aos testemunhos do cónego Macedo, aos relatórios redigidos e às fotos e gravações vídeo realizadas aquando da abertura do túmulo, a equipa tem conseguido completar lentamente o puzzle de peças dispersas e dificilmente correlacionáveis com que iniciou o projecto.
Isso não seria possível sem o auxílio das soluções tecnologicamente avançadas proporcionadas pelo Laboratório HERCULES. Sediado num edifício histórico do centro urbano de Évora, cidade classificada como Património Mundial pela UNESCO, dispõe de equipamento científico de topo, contando com um grupo multidisciplinar de investigadores que permite dar resposta às questões levantadas ao longo deste projecto.
À entrada, sob um tecto abobadado de tijolo burro, de bata branca, a química Cristina Dias indica o caminho. Numa sala interior, em cima da mesa, pequenas fibras coloridas encontram-se lado a lado, junto a pequenos frascos com líquidos multicolores.
Especialista em corantes e produtos naturais, Cristina Dias explica que tem estudado “a nível microscópico as amostras de fragmentos que chegam do túmulo de Dom Gonçalo Pereira. Muitos tecidos perderam já a cor e estão bastante deteriorados, pelo que não sabemos, a olho nu, como seriam. As análises laboratoriais têm permitido aos conservadores obter uma ideia aproximada de como seriam os tecidos originais”. Os corantes utilizados para dar cor às fibras antigas eram em grande parte naturais, e alguns continuam a ser utilizados nos nossos dias. Em jeito de curiosidade, Cristina Dias explica: “Já reparou que, até há relativamente pouco tempo, todos os iogurtes de morango tinham uma tonalidade azulada? O motivo era o corante utilizado, as antocianinas. Nos tecidos da Sé de Braga, foram encontradas antraquinonas, substâncias que sugerem a utilização de outro corante natural, vermelho, a garança.”
Entretanto, da sala ao lado, chega uma voz suave mas assertiva. O geólogo José Mirão olha-nos por cima dos óculos negros, em jeito de alerta para o exame de microscópio electrónico de varrimento prestes a suceder. Com uma capacidade de ampliação até 300 mil vezes e capaz de analisar objectos com dimensões de 30 centímetros de diâmetro por 15 de altura, é a jóia da coroa do Laboratório. Aqui, as amostras de tecidos são escrutinadas para identificar a constituição química e microestrutural das fibras e dos componentes nelas existentes, contribuindo com mais algumas peças do quebra-cabeças que é a descoberta do que seriam aquelas vestes. As imagens de corte de uma lâmina de cabedal recoberta de ouro com 60 nanómetros (nm) de espessura impressionam pela miniaturização conseguida há seis séculos. Rodeados de tanto equipamento avançado, é com alguma surpresa que nos explicam que afinal a nanotecnologia não é novidade. Através de processos manuais, conseguiam-se então espessuras da folha de ouro na ordem dos 60 a 100nm, quando hoje, mecanicamente, as folhas produzidas têm espessuras superiores.
Nos laboratórios José de Figueiredo e HERCULES, com o objectivo de reconstituir virtualmente um dos fragmentos mais importantes desta colecção (o punho de uma alva), são recolhidas fotografias convencionais e é realizada fotografia de fluorescência de UV, microscopia óptica, microscopia electrónica de varrimento e cromatografia líquida com espectrometria de massa para a identificação do padrão, da lâmina e dos corantes, conseguindo-se, no final, com a sobreposição informática do padrão identificado, um resultado que estará perto do tecido tal como ele originalmente seria.
Com a nova perspectiva que esta informação recente traz, as conservadoras Paula Monteiro e Madalena Serro regressam a Braga, procurando, no Tesouro-Museu da Sé, soluções para alargar a exposição dos paramentos de Dom Gonçalo Pereira. Sempre com um espírito inquisitivo, perscrutam as luvas do arcebispo com um minúsculo microscópio portátil, revelando no ecrã de um computador portátil, em segundos, pormenores impressionantes, até então praticamente invisíveis. O grau de realismo dos bordados é tal que nos sentimos intimidados pelo olhar carregado de uma figura de não mais de cinco centímetros de altura! Noutro cenário, talvez fosse apropriado o ditado: “Velhos são os trapos!” Mas, com mais de 650 anos, estes trapos são tudo menos velhos!