O futuro de Bidibidi é debatido ao mais alto nível no governo local e na comunidade internacional. O objectivo é criar uma cidade habitável a partir de um campo de refugiados, uma cidade que possa subsistir mesmo que, um dia, muitos desses refugiados regressem ao seu país.

Sob uma nesga de sombra projectada por um candeeiro de rua alimentado a luz solar, David Kwaje introduz dados estatísticos no seu smartphone. Protegido da dureza do sol, avista no topo de uma colina a sequência de armazéns pintados de branco onde os moradores recolhem rações alimentares e, mais adiante, dois grandes depósitos de água que abastecem as torneiras instaladas à beira da estrada. Recipientes amarelos brilham por todo o lado.

Durante a semana, Kwaje caminhou por estradas de terra batida, identificando cada empresa, igreja, escola, centro de saúde, torneira e ponto de electricidade num mapa digital. Quando ele e outros cartógrafos concluírem o seu trabalho, terão criado um guia de acesso aberto de uma área com uma dimensão duas vezes superior à de Paris.

Eis Bidibidi. Com 250 mil residentes, na região setentrional do Uganda, é o segundo maior campo de refugiados do mundo, a seguir ao dos rohingya, no Bangladesh.

Kwaje, de 26 anos, chegou aqui há dois anos. À sua volta, foi arrasada uma floresta. Foram rasgados 400 quilómetros de estradas entre o capim e os rios, abrindo espaço para uma torrente de refugiados que fugiram da guerra, travada um pouco mais a norte. Ele e a família construíram um aglomerado de casas de adobe num lote de terreno. Casou-se e teve um filho.  Agora, trabalha para a organização sem fins lucrativos Humanitarian OpenStreetMap Team e está a documentar a transformação de Bidibidi – de campo de refugiados temporário numa cidade permanente.

Com um único auricular no ouvido, David atravessa a rua, dirigindo-se a uma das cinco escolas secundárias de Bidibidi. Alto, magro como um feijão-verde e conversador, possui uma energia incansável. O dia foi longo e, enquanto David atravessa o pátio juncado de pedras, é acometido pela apatia induzida pelo calor. Acaba por avistar depois um jovem de camisa cinzenta. “Foi meu professor no Sudão do Sul!”

Em passo apressado dirige-se ao homem e abraça-o. Senta o corpo desengonçado numa cadeira, puxa do telefone e bombardeia Soko Khamis, seu antigo professor do ensino secundário e actual director académico da escola de Bidibidi, com uma série de perguntas, estalando os dedos de cada vez que faz uma: Quando abriu esta escola? (Fevereiro de 2017.) É uma construção provisória? (Sim.) Que desafios enfrenta? (As casas de banho estão a desmoronar-se. Os alunos têm fome. Há falta de livros.)

“Quando vai regressar à nossa escola?”, indaga.

“Ah”, suspira Soko. “Lá, ainda há guerra.”

Uma experiência fantástica está actualmente em curso no Uganda. Há uma paisagem industrial no horizonte, composta por torres de abastecimento de água e torres de sinal de telemóvel, erguendo-se sobre robustas cabanas de adobe e pequenos lotes de agricultura familiar. Escolas e centros de saúde são construídos em tijolo e revestidos a betão. Há janelas de vidro e água potável nas torneiras. Pequenos painéis solares alimentam os candeeiros de rua, bem como os rádios das barbearias, os televisores onde se assiste aos jogos de futebol nos salões comunitários e os telemóveis cujos cabos de alimentação serpenteiam em estações de carregamento nas lojas.

Em campos de refugiados de todo o mundo, os seres humanos vivem amontoados em tendas, abrigos improvisados ou habitações metálicas. Os seus movimentos são restritos, havendo regulamentos que os impossibilitam de trabalhar fora dos campos e de saírem deles. 

No Uganda, ao abrigo de uma das políticas públicas mais progressistas do planeta, os refugiados da guerra civil no Sudão do Sul podem viver, cultivar a terra e trabalhar em liberdade.
O futuro de Bidibidi é debatido ao mais alto nível no governo local e na comunidade internacional. O objectivo é criar uma cidade habitável a partir de um campo de refugiados, uma cidade que possa subsistir mesmo que, um dia, muitos desses refugiados regressem ao seu país. 

A Fundação Internacional Women’s Media concedeu apoio para a reportagem de Nina Strochlic sobre o Uganda.

Se pensarmos que Veneza foi fundada no século V por refugiados que escapavam à guerra e que os campos palestinianos fundados há 50 anos são agora indestrinçáveis dos outros bairros nas cidades do Médio Oriente, parece legítimo imaginar que uma crise de refugiados possa dar origem a uma cidade definitiva e talvez até bonita. A maior parte dos campos em todo o mundo ainda são construídos como locais provisórios. A rapidez e a sobrevivência ganham prioridade sobre tudo o resto e os grupos de ajuda humanitária, os países anfitriões e os próprios refugiados têm esperança de regressar a casa em breve. A realidade é diferente: os refugiados permanecem no exílio, em média, durante dez anos. Num momento em que existe um número recorde de pessoas deslocadas, a manutenção de campos provisórios custa centenas de milhões de euros por ano e mantém suspensas as vidas de milhões de pessoas. 


 

uganda

Expulsos do Sudão do Sul pela guerra, os refugiados tentam aproveitar o pouco que têm no campo. De telemóveis de barro a caminhões de brinquedo de papelão, as crianças criam o seu próprio entretenimento engenhosamente com os materiais disponíveis.

Em Dezembro de 2013, dois anos depois da independência do Sudão do Sul, um conflito entre facções rivais deu origem a uma guerra civil. Um acordo de paz permitiu criar tréguas nos combates, mas em Julho de 2016 o acordo desfez-se. Uma vaga de homicídios indiscriminados assolou o país e dezenas de milhares de habitantes fugiram para o Uganda. Bidibidi abriu em Agosto e, quase de imediato, afluíram ao campo seis mil pessoas por dia. 

Um mês mais tarde, os 193 Estados membros da ONU comprometeram-se a assegurar uma integração mais completa dos refugiados nas suas sociedades. Treze países, entre os quais o Uganda, desenvolvem projectos-piloto. No caso do Uganda, esta situação foi apenas a confirmação de algo já em prática: os refugiados já podem viver e trabalhar há uma década no país. Em 2017, o Uganda lançou também uma iniciativa para encorajar o desenvolvimento em zonas de acolhimento de refugiados. 

O governo transformou a maioria das escolas e centros de saúde de Bidibidi em estruturas definitivas e instalou um sistema de abastecimento de água. Ao contrário de muitos campos de refugiados, isolados e vedados, Bidibidi integra-se harmoniosamente e quase não tem barreiras. Quando os refugiados regressarem ao seu país, os ugandeses utilizarão as novas escolas, os novos centros de saúde e o novo sistema de água canalizada. 

“Talvez não disponhamos de infra-estruturas de dimensão importante, como as outras cidades, mas acho que as pessoas que conheceram Nova Iorque dois anos depois da sua fundação não a achariam muito melhor do que Bidibidi”, afirma Robert Baryamwesiga, o funcionário público ugandês que fundou o campo e continua a ser responsável pela sua supervisão. “Se nos for dado esse tempo, também conseguiremos criar uma cidade muito grande.”

É quarta-feira, são quatro da tarde e está a começar uma reunião no Ministério dos Assuntos Inúteis. Com uma bonita camisa xadrez com botões no colarinho, Henry Anguyo preside à reunião sentado numa cadeira de plástico, junto de uma barraca vizinha à estrada. Duas dezenas de membros encontram-se sentados em cadeiras e no chão. 

Há uma cidade a formar-se em redor e, à semelhança dos moradores de qualquer outro sítio, esta comunidade quer fazer-se ouvir. O ministério é uma espécie de clube cívico fundado por refugiados frustrados, desejosos de melhorar as suas condições. Muitos habitantes sentem-se ignorados pela burocracia do campo e não têm dinheiro para comprar produtos de primeira necessidade, como sabão e sapatos. O ministério tem procurado resolver problemas como o desemprego, as avarias nas torneiras de abastecimento de água e o esforço exigido às mulheres grávidas durante as distribuições mensais das quotas de alimentos racionados. O grupo tem esperança de, um dia, acumular conquistas suficientes para mudar o nome do ministério para “Assuntos Úteis”.

Henry era professor no Sudão do Sul e a sua paciência é útil quando as queixas se amontoam. Escuta com atenção durante algum tempo, com um sorriso sereno, antes de interromper: “Bom, então quais são as soluções?” 

Desde o início que os trabalhadores de ajuda humanitária consideraram existir potencial de longo prazo em Bidibidi. Miji Park, que pôs em prática programas para a organização Mercy Corps, sentiu-se impressionada pela rapidez com que um mercado surgiu na área de recepção. “Pareceu-me evidente que haveria um enorme crescimento económico”, diz.

No entanto, em Bidibidi, um técnico de medicina pode dar por si a vender papaias e maracujás, enquanto uma enfermeira ganha a vida a vender brincos feitos a partir de fragmentos de garrafas revestidos com pedaços de tecido. Os habitantes de Bidibibi vivem num limbo de subsistência. Se a economia não receber um impulso, acabarão por regressar ao Sudão do Sul ou abandonar o campo em busca de outro local onde existir trabalho. 

A estabilidade de longa duração implica alterar o paradigma do campo de refugiados, passando da ajuda humanitária à economia privada. Um centro de reflexão estratégica sediado na Califórnia está a pressionar os governos dos países de acolhimento de refugiados para que construam zonas capazes de atrair investimento estrangeiro. “Se criarem um enquadramento jurídico em que a actividade económica seja permitida e as pessoas beneficiem de estabilidade legal elementar, é possível desencadear dinamismo e gerar prosperidade”, afirma o fundador Michael Castle Miller. “Não só para os refugiados, mas para todo o país.”

Modelos concebidos por várias organizações humanitárias mostram a maneira como o desenvolvimento económico pode chegar a Bidibidi: zonas de wi-fi, mini-redes eléctricas, instalações produtivas de grande escala. Por enquanto, os negócios são de pequena escala e as empresas privadas ainda ponderam como aproveitar a força de trabalho ociosa que existe em Bidibidi. 

Há uma cidade a formar-se em redor e, à semelhança dos moradoresde outros lugares, eles querem fazer-se ouvir.

Numa oficina coberta com um oleado, dois refugiados amassam uma mistura pastosa, transformando-a em pequenos bolos e põem-nos a secar numa estufa. Todas as manhãs, trabalhadores com batas transportam uma carga de bolos até às casas vizinhas. Em pequenas cozinhas instaladas em palhotas, os clientes acendem um forno especial e introduzem briquetes, uma solução amiga do ambiente para diminuir a procura de lenha que alimenta os fogões de cozinha. 

Pamela Komuhendo enumera os desafios enfrentados pela Raising Gabdho, a empresa de briquetes que fundou há três anos, em Campala. Bidibidi apresenta outro obstáculo: as infra-estruturas são escassas para alicerçar novos negócios. Apesar disso, a Raising Gabdho decidiu construir uma fábrica e uma pequena central solar capaz de contribuir para o lançamento de 40 a 50 novas empresas. “Muitos pensam em fixar-se aqui”, diz Pamela. “Mesmo se a paz voltar ao Sudão do Sul, permanecerão aqui se estiverem a ganhar dinheiro.”

Numa rua agitada do mercado, onde as pessoas vêm cortar o cabelo, beber cerveja morna ou assistir a um jogo de futebol, Patrick Aleko aplica logótipos de igrejas e nomes de equipas em camisolas com um ferro de engomar na sua loja de design gráfico alimentada a energia solar. Tinha um negócio semelhante no Sudão do Sul. Quando construiu um edifício de betão, os vizinhos fizeram troça. Imaginavam que regressariam um ano depois ao Sudão do Sul. Agora, já rasgam os seus oleados e compram tijolos também. “Vou ser a última pessoa a sair daqui”, diz. “Despedir-me-ei de Bidibidi quando não encontrar mais clientes.”

O que acontecerá ao campo, interroga-se ele, se o Sudão do Sul alcançar a paz? Será que o governo ugandês conseguirá manter aquilo que foi construído ou deixará que milhões de euros em infra-estruturas apodreçam na floresta? Ele acha que sabe a resposta. “Bidibidi vai transformar-se num modelo”, exclama. “Deixem que se transforme numa cidade permanente.” 

COMO AJUDAR?

Veja a lista das organizações que trabalham com refugiados em Bidibidi, em ngm.com/apr2019.