Na milenar história da China, seria difícil encontrar uma figura tão determinante como a de Confúcio. Desde a dinastia Han (206 a.C.-220 d.C.), o seu pensamento foi a base do Estado chinês. Constituiu também a religião oficial da China, embora o confucionismo não seja em si mesmo uma religião, mas sim uma ética humanística. A sua figura e a sua obra apenas começaram a ser contestadas a partir do início do século XX, quando a intelectualidade chinesa, no seu propósito de transformar o país num Estado moderno ao estilo dos da Europa Ocidental, viu nesse pensamento uma arma através da qual conseguia garantir os privilégios das classes dominantes. A proclamação da República Popular da China e, sobretudo, a revolução cultural que se iniciou em 1966 para acabar com “o velho pensamento, a velha cultura, os velhos costumes e os velhos hábitos” conduziu a campanha contra Confúcio a um nível extremo. Em contrapartida, actualmente o mestre volta a ser uma personalidade novamente reivindicada, não tanto já como modelo político, mas como referência moral e espiritual.
Família da pequena nobreza
Confúcio chamava-se, na verdade, Kong Qiu. Confúcio não é senão o nome latinizado que os missionários jesuítas que chegaram à China no século XVI, deram a Kongzi, o “mestre kong”, ao entrarem em contacto com os seus ensinamentos. A primeira biografia que dele se conservou, as Memórias históricas, de Sima Qian, século I a.C., refere que era filho de Shu-liang He, um militar da pequena nobreza, oriundo do reino vizinho de Song, e de Zhengzai, uma jovem mulher da linhagem Yan. Segundo deixa entrever o referido biógrafo, o casal não era casado, pois, como se lê na sua obra, “He e a rapariga da família Yan fizeram amor num campo e conceberam Confúcio”. Seja como for, o futuro filósofo nasceu em 28 de Setembro de 551 a.C. Veio ao mundo em Qufu, capital do estado de Lu (no nordeste da China) para o qual a sua família paterna emigrara depois de um clã rival, o dos Hua, ter assassinado, cerca de cem anos antes, o chefe dos Kong, tomado à força a sua esposa e expulsado os restantes de Song.
O templo de Confúcio. Situado em Qufu, a sua cidade natal, o Templo de Confúcio foi venerado desde praticamente o momento da sua morte. A partir da dinastia Han, a sua visita por parte dos imperadores chineses tornou-se uma tradição.
A morte do pai quando Confúcio tinha apenas 3 anos deixou a família num aperto económico, sem quaisquer outros recursos para lá dos que a mãe conseguia obter. Ainda assim, o pequeno Kong Qiu recebeu uma educação cuidada que soube aproveitar ao máximo, consciente de que apenas a aplicação nos estudos e a observação do meio em que vivia lhe poderiam permitir deixar para trás a pobreza. Já nessa altura, deu mostras também do que seria uma das características distintivas do seu carácter, a piedade religiosa, pois o seu principal entretenimento era brincar com os copos e bandejas de que dispunha como se estivesse a oficiar uma cerimónia ritual. Fora isto, pouco mais se sabe sobre a infância de quem seria uma das personalidades mais decisivas da história da China.
Aos 19 anos, Confúcio casou com uma jovem chamada Qiguan, oriunda do reino de Song. Fruto dessa união nasceu um filho, Kong Li, que não sobreviveria ao pai, e duas filhas cujo nome não se conhece, uma das quais morreu logo após o nascimento. Pouco tempo depois, em 528 a.C., morreu a mãe. Segundo refere o primeiro biógrafo de Confúcio, este tê-la-á sepultado ao lado do pai, para o que, primeiro, teve de procurar o seu túmulo, cuja localização Zhengzai sempre se recusara a dar, seguramente por força das suas periclitantes relações.
Carreira na administração
Como filho de um nobre menor, um shi, Confúcio era obrigado a ganhar a vida por si próprio. Por outras palavras, teria de vingar apenas com base nas suas capacidades e conhecimentos e não em virtude do seu berço ou da sua linhagem.
O príncipe, pilar do bom governo confuciano
Mais do que uma religião, o confucionismo é um projecto ético e político, cujo objectivo final é estabelecer as directri- zes de uma boa conduta de vida. O resultado é uma socie- dade em harmonia com a ordem natural e o resto do cosmo.
Para Confúcio, a chave para essa sociedade não se encontra tanto na qualidade dos seus súbditos, mas sim na dos seus governantes e prínci- pes, pois, se estes forem virtuosos, aqueles necessariamente imitarão o seu comportamento. Em contrapartida, se o governo for despótico, con- tradirá a ordem natural e perderá a legitimidade. Trata-se, assim, de criar bons dirigentes. Para o mestre chinês, serão aqueles que amem o povo e lhe procurem dar os meios necessários para que possa viver com dignidade; que cultivem as virtudes pessoais (a tolerância, a benevolência, o res- peito pelos mais velhos e pelos antepassados…) e aspirarem a ser melhores em cada dia, tanto na vida pública como na privada, e que tenham como objectivo final a paz e a harmon a universal. Um príncipe assim será um bom governante pela simples razão de que a virtude pessoal produzirá boa gover- nação, que Confúcio define como aquela que se baseia a caridade, na justiça e no respeito pela hierarquia.
A sua escolha desde o início foi rejeitar a carreira militar seguida por toda a sua família paterna e optar por entrar na administração do estado de Lu. Os seus progressos nessa entidade foram lentos, mas relevantes: o seu primeiro destino foi o de responsável pelos celeiros estatais, os quais geriu de forma tão eficaz que começaram a gerar grandes lucros. A partir daí passou a ocupar vários cargos de cada vez maior responsabilidade, entre outros, a direcção dos pastos públicos, até alcançar, segundo os seus primeiros biógrafos, o de ministro das Obras Públicas e, mais tarde, o dos Assuntos Penais sob o mandato do duque Ding. No entanto, e dado que estes cargos estavam reservados à alta nobreza e não à baixa, à qual Confúcio pertencia, o mais provável é que este não tenha chegado a exercê-los, e terá tido de se conformar com posições mais subalternas.
A importância do método. Neste desenho sobre papel, realizado durante a dinastia Qin, Confúcio está rodeado pelos seus discípulos. O pensador chinês valorizava acima de tudo a reflexão. Com o objectivo de que os estudantes chegassem às suas próprias conclusões, formulava perguntas e fazia analogias em vez de dar longas lições. (Biblioteca Nacional, Paris).
Em qualquer caso, este foi um período particularmente activo na vida do mestre, que, à medida que ia conhecendo os meandros da administração, começou a dar forma a um ambicioso projecto de reforma política.
O seu objectivo era acabar com a situação de crise e instabilidade crónicas em que a China se encontrava mergulhada, com os principados de tipo feudal cada vez mais poderosos que discutiam a autoridade dos débeis imperadores da dinastia Zhou, embarcando em guerras entre si para engrandecer e enriquecer as suas linhagens ou por questões tão irrelevantes como ciúmes ou lutas de galos. Numa outra escala, a situação era a mesma que se vivia no ducado de Lu, dominado por três grandes famílias, os Meng, os Shu e os Ji, que rivalizavam entre si e usurpavam as prerrogativas e poderes do duque.
Confúcio, a solução era regressar à idade de ouro que para ele representava o duque de Zhou, irmão do rei Wu, o fundador, em meados do século XI a.C. da dinastia Zhou. Quando o rei morreu, o duque tornou-se regente do seu sobrinho Cheng. Como tal, agiu sempre com lealdade ao rei e ao seu povo, sem pensar nas suas próprias ambições pessoais. Para Confúcio, e não só para ele, foi o modelo do governante virtuoso, alguém que se deveria ter sempre presente. Tanto é que um dos seus ditos era: “Devo estar a decair! Há muito tempo que não sonho com o duque de Zhou.” Mas ele não queria que o seu exemplo ficasse como uma referência do passado histórico, mas esforçou-se sim por recuperar a mensagem de Zhou e aplicá-la à sua época.
Anos de peregrinação
Apesar de contar com o apreço do duque, as intrigas na corte, as rivalidades entre apoiantes das “três famílias” e as dos próprios funcionários de Lu impediram que Confúcio levasse a cabo o seu projecto de reforma. Como tal, e consciente do seu fracasso, em 497 a.C., demitiu-se dos seus cargos na administração. A gota de água que terá enchido o copo da sua paciência foi uma festa, com cantores e dançarinos, que levou o duque Ding e o seu conselheiro principal, Jihuanzi, a ausentarem-se da corte durante três dias, descuidando, assim, os assuntos de estado pelo mero prazer mundano. Um dos seus discípulos, Mencius, aponta, por seu turno, para motivações mais políticas: “Confúcio era o ministro dos Assuntos Penais do Estado de Lu, mas o soberano não adoptou as medidas propostas por ele nem tirou partido do seu talento. Confúcio, no entanto, participou num sacrifício oficial. Seguidamente, não lhe deram uma porção de carne do animal sacrificado. Deste modo, foi-se de imediato embora, e não teve sequer tempo de tirar o seu chapéu de cerimónias. Quem não compreendesse Confúcio pensava que estaria ressentido por não ter recebido a sua parte de carne. Mas quem o compreendia, sabia que ele tinha de se ir embora porque os que governaram Lu agiram contra os ritos”.
Confúcio tinha então 54 anos e, consciente da sua missão, dispôs-se a abandonar a sua Lu natal, para viajar pelos reinos vizinhos à procura de um príncipe que o quisesse escutar e ao qual pudesse convencer da necessidade de implementar o seu projecto político. Mais foi sempre em vão. Em algumas cortes, acabou até por ser expulso com maus modos por causa da sua forma directa e franca de responder aos soberanos habituados à bajulação. As suas eram respostas firmes e claras, apesar de, na maioria das vezes, provocarem o desconcerto naqueles que o escutavam. Foi o caso do príncipe que se vangloriava de ser tão bom governante, que era amado por todos os seus súbditos; isso, repreendeu o mestre, é a prova de exactamente o contrário, de ser um mau governante, pois o bom é aquele que se distingue por ser estimado pelas boas gentes e odiado pelas más.
A alegoria do vinagre. Confúcio inspirou muitas histórias. Uma, muito popular, reflectida nesta caixa tradicional japonesa, refere que o sábio Buda e Lao-Tse, depois de provarem o vinagre de um jarro, concluíram que as suas respectivas filosofias eram, na verdade, uma só, pois ambas procuravam a verdade. Outra versão, a taoista, sugere que apenas Lao-Tse achou o vinagre (a vida) saboroso, pois há que aceitar as coisas como elas são. Confúcio achou-o azedo.
Noutro desses pequenos estados, Song, do qual era oriunda a sua família, Confúcio foi inclusive vítima de uma tentativa de assassínio, perpetrada pelo ministro da Guerra, Huan Tui: este ordenou que cortassem uma árvore perto de onde o mestre e os seus discípulos realizavam um ritual, com o propósito de que, ao cair, os esmagasse. A causa deste atentado poderá ter sido o receio de essa poderosa figura da corte perder a sua privilegiada posição e influência perante a chegada do descendente de uma família que, cem anos antes, fora uma das mais importantes do estado de Song. Confúcio e os seus seguidores acabaram por escapar ilesos, mas apressaram-se a abandonar o ducado.
Mestre na arte de ensinar
Confúcio teve mais sorte como mestre, uma ocupação inovadora, um pouco estranha até, na China daquela época; claro que o mesmo não acontecia em ocupações práticas e ofícios, mas sim na arte de ensinar a reflectir por si mesmo e a extrair as próprias conclusões. Entregou-se a esta docência por completo e sem excluir ninguém dos seus ensinamentos em virtude da sua origem social ou recursos económicos, daí que se tenham ligado a ele tanto filhos de aristocratas e cavaleiros, como agricultores, camponeses, artesãos, soldados, comerciantes e até delinquentes. Como o próprio disse uma vez: “Nunca me recusei a ensinar ninguém que se aproximasse de mim de livre vontade, com uma porção de carne seca como donativo.” Talvez tudo tenha começado como uma forma de distracção entre uma viagem e outra, e para esquecer os dissabores das experiências na corte e, talvez também, no início, fosse uma forma de ganhar o pão durante essas peregrinações. A verdade é que, pouco a pouco, foram-se unindo a ele discípulos que o seguiam de uma corte para a outra, atentos a qualquer palavra que lhes dirigisse. No final, acabaram por formar uma estranha comitiva que, sem dúvida, deveria despertar a curiosidade dos habitantes de todos os lugares por onde passavam, pois Confúcio costumava deslocar-se no cimo de uma carruagem, a partir da qual cantava fazendo-se acompanhar por uma cítara. A curiosidade, no entanto, não se traduzia na altura em avanços no que dizia respeito ao seu projecto político, uma vez que nenhum governante veio a adoptar os princípios confucianos, mas sim, em contrapartida, num aumento dos seus discípulos, cada vez em maior número.
Os três ensinamentos
No pensamento chinês, “os três ensina- mentos” são o confucionismo, o taoismo e o budismo. Considera-se que as três filosofias formam um todo harmonioso por serem complementares na sua procura da verdade e da realização do ser humano. Nesta integração, coexistem os inúmeros contributos realizados por cada um: assim, por exemplo, as qualidades morais e o seu impacte sobre a ordem social do confucionismo; a aplicação na vida quotidiana da dualidade do yin e yang do taoismo, e o caminho para a transcendên- cia do budismo. Na imagem, desenho de Ding Yunpeng (1547-c. 1628) dedicado às três sabe- dorias orientais (Museu do Palácio, Pequim).
1. CONFÚCIO. Os seus ensinamentos foram impostos por um imperador Han, Wudi, como doutrina oficial do Estado no século II C.
2. ARHAT. O arhat é a pessoa que já alcançou a iluminação. O budismo abriu caminho na China no século I d.C.
3. LAO-TSE (LAOZI). Acredita-se que viveu entre os séculos VI e IV a.C. É-lhe atribuído o Tao Te King, base do taoismo.
O que fascinava os discípulos de Confúcio era, por um lado, a sua personalidade, calma, mas magnética, amigável e acessível, bem como os seus gostos simples. Por outro lado, os seus ensinamentos, precisamente aquilo que os ilustres cortesãos eram incapazes de compreender: uma filosofia política, baseada na ética, e válida para qualquer aspecto da vida. Uma filosofia que podia resumir-se da seguinte forma: “Bondade no pai, misericórdia filial no filho; gentileza no irmão mais velho, humildade e respeito no mais novo; comportamento justo no marido, obediência na esposa; consideração humana nos mais velhos, respeito nos mais novos; benevolência nos governantes, lealdade nos ministros e nos súbditos.” As palavras-chave deste sistema são “confiança” e “virtude”, pois sem elas nenhum governo pode subsistir, mesmo apoiando-se na força militar ou na prosperidade económica. Apenas esta confiança e virtude poderiam gerar uma sociedade justa, na qual nem sequer fariam falta as leis. Mas para alcançar tão exigente meta, seria necessário, em primeiro lugar, educar os membros dessa sociedade, do rei ao mais humilde dos seus súbditos. Ou seja, seria necessário levar o estudo a todos os estratos sociais, pois, como disse em certa ocasião: “Não é um prazer estudar e praticar o que aprendeste? Não é também maravilhoso quando os amigos nos visitam vindos de lugares distantes? Se alguém que não se incomoda quando as pessoas que o rodeiam não o compreendem, não é um sábio?”.
E foi isso que Confúcio se propôs fazer com os seus discípulos: formar o que ele chamava de junzi, uma palavra que originalmente significa “aristocrata”, mas à qual deu um novo significado, o de alguém que revela um comportamento exemplar e ama o bem comum acima das ambições pessoais. Todas as guerras, exércitos, glória militar, conquistas, feitos épicos, numa palavra, violência, ficavam excluídos dos seus ensinamentos. O mesmo acontecia com a religião, pois Confúcio não falava de deuses, mas sim de homens e mulheres.
Regresso a casa
Por fim, cansado daquela vida errante, no ano 484 a.C., Confúcio regressou à sua terra natal, Lu, onde foi acolhido com um respeito que nunca antes sentira. O duque Ding e o seu conselheiro, Jihuanzi, tinham morrido e o novo duque, Ai, tomou o mestre como seu “Ancião do Estado”. Apesar desse trato deferente que lhe dispensavam, a sua influência política era limitada, em virtude da incapacidade do duque para lidar com os conflitos internos do ducado e impor-se sobre as famílias nobres.
Em Lu, Confúcio dedicou-se ao estudo dos clássicos, à composição de livros canónicos e ao ensino. Possivelmente também a escrever, embora o mais provável seja que, tal como o filósofo grego Sócrates, nunca tenha escrito nada. As obras que lhe são atribuídas, como Conversações ou Analectas, são fruto dos seus discípulos, que, quando Confúcio morreu, compilaram e deram forma ao seu pensamento. Nessa obra, encontra-se um fragmento que pode ser visto como uma resumida autobiografia de Kong: “Aos 15 anos, o meu coração estava na aprendizagem; aos 30, mantive-me firme; aos 40, não tive mais dúvidas; aos 50, conheci a vontade do céu; aos 60, o meu ouvido era obediente; aos 70, podia seguir o desejo do meu coração sem ultrapassar os limites do que era correcto”. Deve ter sido nessa altura também que passou a ser considerado “o primeiro mestre” ou “o mestre anterior a todos os mestres.”
Cinco anos depois, em 479 a.C., Kong morreu.
O túmulo de Confúcio. Confúcio está sepultado em Qufu, a sua cidade natal, numa sepultura simples. Os ensinamentos de Confúcio tiveram grande sucesso depois da morte do mestre e, durante séculos, foram adoptados pelos líderes chineses na sua política de governo, estendendo também a sua influência à Coreia e ao Japão.
Foi enterrado nas margens do rio Si. O duque Ai pronunciou o seu elogio fúnebre e os governantes não tardaram a apreciar o potencial dos ensinamentos de Confúcio. Os seus discípulos conseguiram, assim, alcançar aquilo que ele não alcançara em vida: converterem-se em conselheiros dos governantes, destinados a reformar e a reger a China durante séculos.