Durante a sua história milenar, o Egipto usou o seu poderoso exército tanto para defender as suas fronteiras como para as ampliar.

Em Janeiro de 2014, identificou-se o túmulo de um faraó até então desconhecido: Senebkay. Quando os investigadores analisaram os seus restos mortais, descobriram cerca de 18 feridas que chegavam ao osso, ao que parece infligidas por machados chamados “bico de pato”. No seu crânio, existiam três lesões e as restantes encontravam-se na parte inferior do seu corpo. Talvez combatesse no seu carro quando o atacaram ou poderá ter sido derrubado e abatido no solo. Senebkay viveu no segundo milénio antes de Cristo, durante o denominado Segundo Período Intermediário, quando o delta do Nilo estava ocupado e governado por um povo asiático, os hicsos. É possível que outro faraó posterior, Senakhtenré Taá (Taá II), também tivesse morrido a lutar contra eles, tal como sugerem as profundas feridas que a sua cabeça mumificada apresentava.

O faraó, líder militar

Os restos mortais de Senebkay e de Senakhtenré Taá (Taá II) são expoentes dramáticos da liderança militar dos soberanos do Egipto. As inscrições propagandísticas mostram que os faraós comandavam as suas tropas em fases de expansão territorial ou em caso de crises internas graves, como a época destes dois faraós, mortos violentamente.

exercito Egipto

Os guerreiros do Faraó. Soldados egípcios marcham com as suas armas e escudos, acompanhando o faraó Ramsés III. Relevo do templo deste soberano em Medinet Habu. Fotografia de ALAMY / ACI.

Poderosos monarcas posteriores, entre os quais se destacaram Tutmés III, o seu filho Amen-hotep II, Seti I e Ramsés II, deixaram informações sobre as suas campanhas e êxitos militares. Os relevos dos templos e das estelas apresentam-nos a matar chefes inimigos com maças e espadas curvas ou a disparar flechas em cima dos seus velozes carros de guerra. Por aquela altura, o Egipto já mudara.

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O faraó Amon-hotep III com a coroa azul kheprech.

Os faraós de Tebas tinham afastado os hicsos e recuperado o delta, e estes monarcas governavam um território enorme e unificado. Já se iniciara o chamado Império Novo, a verdadeira época imperial do Egipto, e aqueles quatro faraós beligerantes eram os líderes de um exército profissional, que se transformou no eixo vertebral do expansionismo egípcio. Portanto não é de estranhar que – dado o seu papel como chefes militares – os membros da casa real recebessem formação de combate desde a infância. Assim o demonstra um relevo do túmulo do funcionário Mini, onde este figura a ensinar o uso do arco a Amen-Hotep II. Os príncipes herdeiros podiam dirigir grandes unidades, tal com o primogénito de Ramsés II, Amen-herkhopechef, que liderou uma das colunas que atacaram o território de Edom, a sul do mar Morto.

De amadores a profissionais

Como era o exército no Império Novo? Alguns textos da XII dinastia, anterior ao domínio hicso no delta, contêm dados sobre o sistema de recrutamento, que naqueles tempos era de carácter provincial. Num desses textos, um escriba militar destaca que viajou até à cidade de Abido para escolher recrutas e noutro assinala-se que tinha sido eleito um jovem em cada cem para formar uma companhia.

Os recrutas eram destacados para a unidade da sua cidade e, quando era necessário mobilizar tropas, agrupavam-se as unidades de distintas cidades ou províncias. Estas milícias provinciais juntavam-se aos mercenários núbios ou líbios.

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Guerreiro Núbio. Este mosaico representa um líder núbio preso. É proveniente do templo funerário de Ramsés III em Medinet Habu. XX dinastia. Museu de Belas-Artes, Boston. Fotografia de Bridgeman / ACI.

Esta realidade alterou-se durante as dinastias do Império Novo. Sessenta anos depois da expulsão dos hicsos, as vitórias de Tutmés III na Síria e Palestina transformaram o Egipto num império com uma influência notável. A sua estrutura política assentava em forças armadas que tinham delegado os recrutamentos provinciais e que eram administradas de forma centralizada através de duas regiões militares, com capitais em Mênfis e Tebas.

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O exército do Império Novo tinha três secções: a infantaria, a frota e os carros de guerra, veículos que os hicsos tinham introduzido no Egipto. A unidade básica de infantaria era constituída por 200 a 250 homens e era dirigida por um porta-estandarte. Os carros de guerra estavam organizados em esquadrões de 50 veículos, liderados por um comandante. Em relação à frota, não existiam navios de guerra propriamente ditos: as embarcações destinavam-se a outras tarefas, como o transporte de homens, de carros, de cavalos e de provisões.

Soldados e oficiais

Os soldados eram profissionais egípcios e núbios cujas famílias viviam em colónias militares e cuja coragem era estimulada por inúmeros incentivos. Além do saque, podiam receber títulos honoríficos, promoções militares, escravos, terras e o“ouro dos corajosos”: armas e jóias que o faraó oferecia aos militares que mais se destacavam.

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O carro de guerra. Tutankhamon investe contra os seus inimigos. Cena de um cofre do faraó. Museu Egípcio, Cairo. Fotografia de Araldo de Luca.

Desde o fim da VI dinastia (com a qual terminou o Império Antigo, a primeira grande época do poder faraónico), existia uma ampla hierarquia de cargos de infantaria e da frota fluvial, embora os oficiais tanto dirigissem expedições comerciais como bélicas: os faraós delegavam a sua organização em homens da sua confiança.

Porém, durante o Império Novo, os faraós já dispunham de um exército profissional não só em relação aos combatentes, mas também relativamente ao seu comando. Os generais provinham dos círculos mais privilegiados da sociedade, mas a sua função era administrativa: dirigiam os corpos de escribas militares. Já os porta-estandartes e os comandantes, que eram homens de acção, alcançavam os respectivos postos através de méritos de guerra ou de anos de serviço. Os soldados, a base do exército, eram formados tradicionalmente por egípcios e por núbios, com alguns líbios à mistura. Em meados da XVIII dinastia (a de Tutmés III e Amen-hotep II), juntaram-se os soldados asiáticos e, durante a XIX dinastia (a de Ramsés II), alguns destes militares vindos do Próximo Oriente ocuparam cargos muito importantes, tal como o general Urhiya. Os chardanes, com provável origem europeia, foram incorporados no exército egípcio depois de Ramsés II os ter derrotado numa batalha naval. Daí em diante, serviriam fielmente o soberano, fazendo parte até da sua guarda pessoal.

guerras no egipto

O mundo à data do império novo. Depois da expulsão dos Hicsos do Egipto em 1530 a.C., Ahmés tornou-se o primeiro faraó da XVIII dinastia e do Império Novo. Ahmés realizou igualmente incursões na Núbia para ampliar as fronteiras do território. Anos mais tarde, Tutmés I atacou também a Núbia à procura de ouro e gado e Tutmés III chegou à terceira catarata em busca de ouro, marfim e outras riquezas. Este faraó levou a cabo inúmeras campanhas para combater o reino de Mitanni, o grande inimigo do Egipto durante esta época: na sua luta pelo controlo dos principados sírios, os egípcios saíram vencedores. Na XIX dinastia, os hititas substituiriam os mitanos como principais inimigos do Egipto. Cartografia: Eosgis.com.

As armas

O armamento das tropas faraónicas também foi mudando ao longo do Egipto imperial. Desde o Império Novo, os soldados combatiam com lanças, machados e punhais que tinham lâminas de bronze; lançavam flechas com ponta de sílex ou madeira endurecida, pedras e dardos, e defendiam-se com escudos de madeira forrados com pele de bovino. Alguns tinham distintas marcas simbólicas, como plumas ou uma faixa na cabeça e faixas cruzadas no peito.

O treino era importante e, nos relevos dos templos e nas pinturas dos túmulos, podem observar-se exercícios com arco e flechas, combate com bastões ou confrontos sem armas.

No início da XVIII dinastia, estas armas de longa tradição foram substituídas por armamento mais moderno.

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Adaga de bronze. Adaga egípcia com lâmina de bronze e punho de ouro. O bronze era o principal material usado no Egipto para o fabrico de armamento. Museu do Louvre, Paris.

O exército conseguira dos hicsos os carros de guerra puxados por dois cavalos, bem como o arco composto, fabricado com distintos materiais (chifre ou madeira) que lhe conferiam uma tensão e uma potência de tiro assombrosas. Os carros, que alcançaram enorme importância, transportavam caixas repletas de objectos bélicos: o Papiro Koller, da XIX dinastia, menciona as armas atribuídas a um carro: espadas, dardos, arcos e 80 flechas.

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Preparados para a luta. Um grupo de homens exercita-se na luta corpo a corpo. Alguns usam longos bastões. Relevo da mastaba de Nefer e Kahay em Sakara. V dinastia. Fotografia de Bridgeman / ACI.

Os hicsos também tinham trazido uma avançada tecnologia para manuseamento do bronze que melhorava a elaboração de armamento e que favoreceu a adopção de novas armas com este metal, como adagas e espadas curtas fundidas numa única peça de bronze. No reinado de Tutmés III, existem dados sobre cacetes cónicos e cotas com placas de bronze (além das de couro endurecido). Algumas destas dispendiosas peças, originárias de países asiáticos, chegaram ao Egipto como saque de guerra ou como tributo.

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A difícil vida de um soldado. Papiros datados da XIX dinastia, como o Chester Beatty ou o Lansing, recolhem textos satíricos que descrevem a dureza da vida militar. Os soldados de infantaria, alistados em crianças, eram esbofeteados repetidamente sem trégua para enrijecerem. Sofriam castigos incontáveis: faziam longas caminhadas com poucas provisões e bebiam água suja, tinham vigias intermináveis e arriscavam a vida em combate. Se sobreviviam e conseguiam formar-se, regressavam a casa esfomeados, doentes e pobres. Por seu lado, os soldados dos carros de guerra tinham de cuidar dos cavalos que lhes eram atribuídos e pagavam com os seus recursos os veículos e a manutenção dos mesmos. Muitos arruinavam-se com esta aventura. Na imagem, oficial de alto cargo perfeitamente apetrechado com arco, flechas, couraça e sandálias. Gravura do século XIX. Fotografia de Alamy / ACI.

Durante a XVIII dinastia, chegou também ao Egipto um novo, raro e dispendioso armamento proveniente da Ásia e forjado com ferro. Uma carta de um rei de Mitanni menciona dardos com ponta de ferro entre os presentes enviados a Amen-hotep III, com quem o Egipto chegou ao cume da sua glória. Precisamente no palácio deste rei de Mitanni em Malkata, em Tebas Oeste, encontrou-se uma ponta elaborada com este metal e placas de bronze pertencentes a uma cota. Seriam objectos caros, seguramente trazidos da Ásia, e revelam a enorme influência do Próximo Oriente no Egipto.

Táctica e estratégia

No campo de batalha, as ordens eram directamente transmitidas através de tambores e trombetas, segundo pode ser constatado nos relevos do Templo de Hatchepsut em Deir el-Bahari. Os soldados que seguiam a pé dividiam-se em infantaria pesada, armados com lanças, machados e escudo, e a infantaria ligeira, que protegia as anteriores com as suas flechas. Os carros fustigavam o inimigo antes e depois da batalha.

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Tratamento: a verdade e o mito. Os túmulos de Amenemheb e Pensukher, oficiais de Tutmés III, contêm pinturas que mostram a divisão de alimentos entre as tropas. Os soldados de infantaria estão em fila e cada um tem um saco para receber os víveres, enquanto os escribas tomam notas sob o olhar atento dos oficiais. Os soldados dos carros de guerra apresentam-se com os seus cavalos para receberem as provisões e a forragem dos animais. Uma inscrição do túmulo de Pensukher contém a lista de produtos recebidos pelos membros das forças armadas, sendo os mais destacados o pão, os legumes, a carne de vaca e o vinho. Esta inscrição contrasta com as sátiras mordazes sobre a vida militar, escritas por alguns funcionários. Fotografia de AKG / Album.

O exército egípcio era um dos mais avançados da época e a sua capacidade estratégica fica patente, por exemplo, na campanha de Tutmés III, lançada no ano 22 do reinado (por volta de 1457 a.C.), contra os príncipes rebeldes do Norte da Síria, cuja resistência se centrava na fortaleza de Meguido. Umas horas depois de atravessar inesperadamente a estreita passagem de Aruna, o exército do faraó dividiu-se em três unidades que avançaram à luz da meia-lua sobre Meguido.

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Templo de Deir El-Bahari. No templo funerário da rainha Hatchepsut (em cima), vários relevos representam cenas de desfiles militares e soldados embarcados. Fotografia de Alamy / ACI.

O escriba Tianuni, que realizou um memorável relato da campanha, descreve o faraó de pé em cima do seu carro dourado, com aspecto temível, semelhante ao dos deuses guerreiros Hórus e Montu, com o seu braço fortalecido por Amon. Os inimigos fugiram para Meguido no primeiro embate e, num momento ridículo e de falta de dignidade, os seus chefes foram içados para o topo dos muros da fortaleza através de cordas improvisadas com as suas próprias roupas, já que a cidade fechara as portas com receio de que os egípcios entrassem. Meguido foi cercada com torres de madeira e acabou por se render ao fim de sete meses. Muito mais do que a exaltação do rei, o relato de Tianuni destaca a maquinaria militar perfeitamente oleada, capaz de se deslocar mais de 360 quilómetros para entrar em batalha e manter um cerco durante mais de meio ano. Foi este prodígio logístico que deu ao Império Novo egípcio uma superioridade sem precedentes sobre os seus inimigos na Idade do Bronze.

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