Qual era a bebida preferida dos americanos durante a Lei Seca? Poderá pensar que era gin amador ou cerveja caseira. Mas não.
“A Lei Seca transformou o batido de gelado de chocolate com água gaseificada na bebida nacional”, declarou um fabricante de gelados de Wichita, no estado do Kansas, em 1922. Recordando décadas de produção de gelado, ele disse ao The Wichita Beacon que a proibição de bebidas alcoólicas no país deu um enorme impulso ao seu negócio, transformando o gelado de iguaria ocasional num hábito de consumo.
Não foi o único. À medida que os agentes governamentais destruíam barris de bebidas alcoólicas e os fabricantes ilegais desapareciam na clandestinidade, os EUA viraram-se para outra substância adictiva: gelado.
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Um grupo de homens e mulheres come gelado na década de 1930. Por essa altura, o gelado já se tornara uma obsessão nacional nos EUA graças a uma proibição do álcool que obrigou os americanos a socializarem junto a dispensadores de refrigerante em vez de bares.
O ‘herdeiro legal do álcool’?
O gelado já existia há bastante tempo quando a Lei Seca foi promulgada. Embora as suas origens sejam desconhecidas, o aparecimento da primeira gelataria dos EUA coincidiu aproximadamente com o nascimento do próprio país.
Numa época em que não existia refrigeração fiável, o gelado foi inicialmente considerado um luxo das pessoas ricas. Contudo, os avanços na refrigeração conduziram à criação da primeira fábrica comercial de gelado em 1851 e, mais tarde, à abertura de gelatarias cada vez mais extravagantes nos centros urbanos. No tempo da Primeira Guerra Mundial, o gelado tornou-se mais disponível do que nunca graças à disseminação da electricidade, à produção de alimentos em massa e ao crescimento urbano.
No entanto, ninguém previra o súbito aumento do interesse pelo gelado causado pela Lei Seca. Embora vários estados já se tivessem tornado “secos” ao proibir o álcool, a aprovação da 18ª Emenda em 1919 fez com que todo o país se tornasse abstémio. Resultado de décadas de campanhas empreendidas por reformadores que afirmavam que a bebida conduzia a crime, violência doméstica e outros males sociais, a proibição criminalizou o fabrico, venda ou transporte de “bebidas inebriantes” – e desencadeou especulação sobre qual seria a próxima substância adictiva escolhida pelos consumidores americanos.
“Parece existir a ideia generalizada de que a indústria dos doces é a herdeira legal do álcool”, escreveu um observador no Los Angeles Times em 1927. No entanto, embora a venda de doces tenha aumentado durante a Proibição, foi o gelado que se transformou numa loucura nacional.
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As gelatarias e balcões como este tornaram-se omnipresentes na década de 1920 quando a proibição do álcool reforçou a procura pela guloseima gelada.
A loucura americana pelo gelado
“A América está louca por gelado”, disse o secretário da National Association of Ice Cream Supply Men a um repórter em 1922. Só nesse ano, os americanos consumiram uns incríveis 1.230 milhões de litros de gelado. As pessoas afluíam aos balcões das mercearias locais para beber batidos de gelado, levavam para casa pacotes com a guloseima láctea e guardavam-nos nos seus novos frigoríficos eléctricos e levavam gelado para piqueniques e festas.
A procura por gelado era tão alta que as cervejeiras com grandes capacidades de refrigeração começaram a produzir gelado em vez de cerveja. A Anheuser-Busch vendeu batidos de gelado com água gaseificada com o slogan “coma um prato de gelado todos os dias”. A Yuengling produziu gelado pré-embalado com uma pega incorporada: um design que poupava aos vendedores de gelado o trabalho extenuante de transferirem grandes quantidades de gelado dos barris de fábrica para recipientes mais pequenos. Em 1928, a marca produzia alegadamente 1,9 milhões de litros de gelado por ano.
Outras cervejeiras começaram a produzir malte – um subproduto da fermentação dos cereais e ingrediente essencial para as gelatarias. O negócio corria tão bem que, em 1919, o Saturday Evening Post proclamou que “quando um mestre cervejeiro começa a produzir gelado, encontra uma área na qual se pode distinguir”.
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Sim, isto é uma gelataria com a forma de um cone de gelado. Fotografada em 1928, a loja pertencia a uma pequena cadeia de vendedores de gelado sediada na Califórnia.
Ironicamente, os mesmos reformadores da moral que pediram o fim do álcool nos EUA também se tinham manifestado contra as gelatarias em finais do século XIX e inícios do XX – advertindo que “a escravatura branca, o assédio sexual e a prostituição poderiam resultar de uma visita a um extravagante palácio de gelado”. No entanto, quando a Proibição foi promulgada, os reformadores já tinham adoptado outras causas, permitindo que as gelatarias florescessem.
E eis que as gelatarias se tornaram cada vez maiores e mais comuns e até desenvolveram o seu próprio calão para os refrigerantes, referindo-se à água gaseificada como “água de arrotos” e ao extracto de leite maltado como “maltes”. Para estes espirituosos vendedores, um batido de chocolate com malte e ovos era um “torce, aperta e fá-lo rir” (twist it, choke it, and make it cackle) e uma mulher atraente à espera de um gelado era um “oitenta e sete e meio” (eighty-seven and a half).
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Esta banca de gelados fotografada em 1927 no sul da Califórnia tinha a forma de uma gigantesca embalagem de leite.
Bares e barcas de gelado
O surto conduziu a inovações na área dos gelados, desde a invenção do bar de gelados em 1900 à criação das carrinhas de gelados – cuja pioneira foi a Good Humor, em finais da década de 1920. O aumento do fabrico de gelados foi tão intenso que deu origem a novas leis, como uma lei promulgada na Pensilvânia em 1923 que proibia fraudes na rotulagem de gelado, aromas e coberturas contendo “substância[s] nociva[s] para a saúde” e a venda de gelado que tivesse sido armazenado juntamente com carne.
A Grande Depressão, que começou em 1929 e durou até 1939, abrandou ligeiramente a produção de gelado. (Também deu origem a um novo sabor, Rocky Road, cuja história contestada inclui, supostamente, um nome inspirado pela economia turbulenta da época.)
Por fim, a nação abandonou a sua tentativa de reprimir o consumo de álcool e a Proibição acabou definitivamente em 1933. A historiadora Anne Cooper Funderburg escreveu que, apesar dos receios de que o fim da proibição acabasse com o negócio dos gelados, o consumo até aumentou com o fim da Lei Seca. Os americanos tinham aprendido a adorar gelado e a proliferação de lojas de cadeias de gelado, vendedores de rua, gelatarias e embalagens para consumo doméstico fizeram com que fosse mais fácil do que nunca saborear a guloseima.
Contudo, o maior testemunho da influência da Proibição na popularidade do gelado poderá ter acontecido na Marinha dos EUA, que aprendeu a adorar gelado quando o álcool foi proibido a bordo dos navios em 1914. Em 1945, a marinha dos EUA criou uma barca de gelado no valor de um milhão de dólares, concebida para abastecer uma frota de navios de gelado mais pequenos, no teatro de guerra do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial. A distribuição de gelado era considerada um assunto da “mais alta prioridade” durante a guerra – prova de que o preparado doce e frio se tornara tão americano como a tarte de maçã.
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Esta mulher exibe a sua forma singular de beber um batido de gelado em Los Angeles, na Califórnia, em 1927. À medida que as gelatarias floresciam, o mesmo aconteceu com termos de gíria como “água de arrotos” e “maltes”.