6h24 da manhã, 14 de Julho de 1917: Submersão rápida perante um arrastão de pesca para não sermos detectados.”
“7h05 da manhã: Emergimos, já era quase dia. (…)
“8h da manhã: Mudamos rumo para 0º, ficamos a oito milhas náuticas do cabo Espichel, ambos os motores em marcha lenta.
“11h30 da manhã: 1.ª mina deitada à água.”
“Nesse dia, a guerra chegou-nos à porta de casa”
O diário de guerra do UC 54 é seco e lacónico. Ali figuram as anotações meticulosas do capitão--tenente Heinrich XXXVIII, príncipe de Reuß zu Köstritz, o aristocrata que comanda o submarino neste terceiro ano da Grande Guerra. Desde 9 de Março de 1916 que Portugal entrou no conflito, com pesados custos militares e uma despesa social e económica aterradora. Nada, porém, causará mais pânico do que o incidente desencadeado pelo UC 54 nesta manhã de Julho. Entre as 11h30 e as 12h01, o engenho alemão deita à água seis minas, identificando cuidadosamente a sua posição. Poitadas em fundos de 37 metros, estão activas e submersas quatro metros abaixo da superfície, oscilando pendularmente, prontas a cumprir o seu terrível destino mal um navio nelas embata. Resta esperar.
Passam 12 dias até ao dia 26. O Roberto Ivens, um arrastão de pesca convertido em caça-minas, integra as missões de rocega na barra do Tejo em busca dos perigosos engenhos explosivos. O primeiro grumete timoneiro-sinaleiro Tiago Gil é um dos 22 tripulantes da embarcação comandada pelo primeiro-tenente Raul Cascais. Como sinaleiro, Gil lida de perto com o comandante, pois cabe-lhe um lugar na ponte de comando. Conheceram-se nas campanhas africanas do Sul de Angola em 1915 e reencontram-se no Roberto Ivens. Raul Cascais pergunta aos que lhe estão próximos se se despediram da família – é uma pergunta habitual, bem indicativa do risco a que todos os dias a tripulação se sujeita. Gil larga o leme e dirige-se para a proa, perto do guincho, onde conversa com alguns camaradas.
De súbito, pelas 16 horas, a popa do navio colide com uma das minas e explode. “A explosão partiu o navio a meio, atirando a grande altura metade dele, feita em pedaços”, lembrou nove anos depois Tiago Gil nas páginas de “O Século”. O Roberto Ivens navegava em conserva, acompanhado do patrulha Bérrio. Tomada como resultado de um torpedo, a explosão gera pânico. O Bérrio ziguezagueia e dispara a eito. O caça-minas adorna perigosamente. Gil só tem tempo para trepar ao castelo do navio e dali mergulhar para a água. O Roberto Ivens naufraga em menos de um minuto, envolto pelo fumo da explosão e dos químicos da mina. Sete sobreviventes são recolhidos pela baleeira do Bérrio. “Nesse dia, a guerra chegou-nos à porta de casa”, resume o historiador Paulo Costa, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa (IHC/UNL).
Fontes: Paulo Costa e Alexandre Monteiro (IHC/UNL)
A investigação deste episódio não teve propriamente um momento Eureka. Foi, pelo contrário, uma construção paciente, tijolo a tijolo...
A investigação deste episódio não teve propriamente um momento Eureka. Foi, pelo contrário, uma construção paciente, tijolo a tijolo, seguindo minúsculos indícios esquecidos pelo tempo em arquivos dispersos. Como Hansel e Gretel, o historiador Paulo Costa e o arqueólogo Alexandre Monteiro seguiram o trilho das migalhas, juntando dados improváveis e duvidando das versões oficiais. Foi por isso que, numa manhã de Fevereiro deste ano, a bordo do navio Andrómeda do Instituto Hidrográfico da Marinha, não festejaram a confirmação da localização do destroço. Na verdade, ambos já adivinhavam que ele lá estaria.
A narrativa do Roberto Ivens era conhecida. Trata-se de um dos dois casos de navios de guerra portugueses afundados durante o conflito de 1914--1918 (o outro foi o Augusto de Castilho, afundado em combate entre os Açores e a Madeira) e a sua posição foi descrita, em relatos de jornais da época e nos relatórios do comandante do Bérrio, como um naufrágio 12 milhas a sul de Cascais e 8 a sul do Bugio, área de profundidades superiores a 120 metros e ainda distante da barra do Tejo.
No início da década passada, muito antes de sonhar que o Roberto Ivens seria o tema de investigação do seu projecto de mestrado, Paulo Costa tomou conhecimento de que um grupo de amigos mergulhara num ponto a sul do farol do Bugio, conhecido informalmente por pescadores e mergulhadores como local do naufrágio da traineira de pesca Maria Eduarda na década de 1960. “Ficaram desiludidos”, conta. “Tinham grandes expectativas, mas o navio estava partido e restava apenas a proa. Lembro-me de ficar intrigado, mas não pensei muito nisso.” Em 2004, novo grupo de mergulho visitou o destroço e publicou fotografias. A suspeita de Paulo Costa aumentou: as imagens mostravam um navio de ferro e uma caldeira. O Maria Eduarda fora uma embarcação de madeira, com um motor a diesel. “Não podia ser o mesmo navio”, diz. Como um genealogista, reconstituiu a história do berço do navio.
Os planos do navio, encontrados pelo historiador Paulo Costa no arquivo da construtora naval Cochrane & Sons, foram providenciais para conhecer a configuração do Roberto Ivens. Cortesia Paulo Costa (IHC)
O Roberto Ivens fora construído em 1906 num estaleiro naval inglês, por encomenda de um armador famoso da época. Construído em aço com o tabuado do convés em madeira de pinho, começou por se chamar Lord Nunburnholme, antes de ser comprado por uma sociedade de pescas do Porto em 1914, ganhando aí o nome de Lordelo. Com a entrada de Portugal na Grande Guerra, a Marinha requisitou-o ao proprietário de origens germânicas e deu-lhe o nome de Roberto Ivens. Ao encomendar em 2013 os planos do navio a um arquivo britânico, Paulo Costa dispunha do primeiro elemento decisivo – a configuração da embarcação que procurava.
As descrições de época invariavelmente localizam o naufrágio muito a sul de Cascais.
Seguiu-se novo passo. Os documentos sobre este naufrágio foram produzidos em 1919, dois anos depois do incidente, no âmbito da Comissão de Perdas que compilou informação para o pedido de indemnização formulado na Conferência de Paz de Versalhes. Portugal perdera 81 navios mercantes e dois navios de guerra durante o conflito. As descrições de época invariavelmente localizam o naufrágio muito a sul de Cascais. “No entanto, algumas pontas soltas permitiam antecipar que a história fora deformada: os relatos dão conta de que os sete sobreviventes foram apanhados na zona do Alpeidão, em frente de Carcavelos, meia hora depois do incidente”, diz Paulo Costa. “Não havia qualquer hipótese de terem nadado 13 quilómetros desde o ponto indicado pela Marinha até às imediações do Bugio em 30 minutos.” A conclusão? “A localização parece ter sido propositadamente distorcida”, diz Paulo Costa. “Aqui só podemos especular: talvez a indicação de uma localização mais longínqua contribuísse para não gerar pânico. Era bem diferente admitir que um submarino alemão navegara à vista de Lisboa sem ser detectado…”
A localização correcta do destroço foi alvo de dúvidas durante 99 anos. As fontes da época remetiam o incidente para uma zona mais longínqua da capital, porventura para evitar mais pânico. Na verdade, o Roberto Ivens explodiu a escassa distância do farol do Bugio.
Numa guerra, anota-se tudo e Paulo Costa e Alexandre Monteiro concentraram-se nos registos militares alemães. Cada comandante anotava os seus passos no diário de guerra e existe um arquivo considerável de manuscritos sobre a classe de submarinos com capacidade para colocar minas, os UC. Migalha a migalha, Paulo Costa foi encomendando digitalizações dos diários de guerra de vários submarinos. Ao oitavo documento, sorriu. No final do diário do UC 54, estava um mapa da costa atlântica portuguesa e do estuário do Tejo.
O comandante Heinrich XXXVIII, cujo nome provém de uma tradição familiar de nomear os filhos varões com esse nome próprio e a numeração correspondente à ordem de nascimento, descrevera ali o local onde colocara seis minas em Julho de 1917: assinalou as coordenadas e desenhou até um croquis, onde figura o Bugio, São Julião e a Caparica. “A cronologia batia certo e o local fazia mais sentido”, diz Paulo Costa. “Além disso, estas minas só podiam ser colocadas a profundidades máximas de 50 metros, o que desqualificava o sítio indicado pelas fontes de 1919.” Existia a hipótese de o cabo que ligava a mina à poita do fundo ter partido e esta ter seguido à deriva até ao oceano, mas “a posição indicada para as seis minas era perfeitamente coincidente com a nossa interpretação”, acrescenta Alexandre Monteiro.
Um destroço constitui com frequência um refúgio apreciado pela vida marinha, que o coloniza. Durante décadas, o local do naufrágio foi frequentado por pescadores e mergulhadores, embora a tradição popular o ligasse ao naufrágio do Maria Eduarda, uma traineira de pesca afundada na década de 1960.
É com essa expectativa que a equipa se encontra a bordo do Andrómeda numa terça-feira fria de Fevereiro. Na véspera, a equipa do Instituto Hidrográfico realizou exames de sonar de varrimento lateral, identificando os quatro poços de acesso ao porão do destroço, a caldeira e o guincho, coincidentes com a planta do navio. Deitando à água o “peixe”, a alcunha que os técnicos dão ao torpedo rebocado pelo navio oceanográfico que transporta o dispositivo de sonar, o aparelho faz uma leitura lateral, como a luz de um candeeiro incidindo sobre o fundo. Chega a captar pneus e botas desde que suficientemente elevadas face à superfície. Não foi difícil detectar, entre redes de pesca e bóias, o perfil do destroço. O Andrómeda proporcionou igualmente uma leitura do magnetómetro, que capta para memória futura a assinatura magnética do navio. A lancha Atlanta completou a recolha com um varrimento multifeixe. Um ROV foi também lançado à água, com sucesso limitado devido às correntes, aos sedimentos do rio e às redes presas nos destroços.
As imagens do sonar de varrimento lateral revelam a proa sobrevivente e confirmam a ausência de popa, destruída pela explosão.
“Ainda faltam medições in situ”, lembra Alexandre Monteiro. “O local é de difícil acesso, mas vamos comparar as medições do segundo convés com as que temos nos planos de construção do navio e queremos confirmar as medidas da caldeira. Não podemos esquecer que se trata de uma sepultura de guerra, que exige sensibilidade. Não é impossível que lá permaneçam vestígios orgânicos dos tripulantes, até porque os jornais da época asseguram que nenhum corpo deu à costa.” Com ironia, Paulo Costa sublinha que “só haveria certezas absolutas de que se trata do ‘nosso’ navio se encontrássemos algo como o sextante do comandante, mas a identificação é muito sólida”.
Por uma coincidência feliz, a historiadora Fernanda Rollo lançou em 2012 as bases do projecto de investigação “Portugal 1914” no IHC/UNL sobre a participação nacional na Grande Guerra e reencontra agora, nas funções de secretária de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, a materialização desse esforço numa descoberta científica única. “Resulta de um esforço de investigação considerável, de nível internacional, que contribui para melhorar o conhecimento sobre esse conflito”, diz. Fruto da cooperação com a Comissão Cultural da Marinha, com o Ministério da Defesa e com o Instituto Hidrográfico, a equipa de historiadores dispôs de meios consideráveis para a segunda etapa do processo: a confirmação do local do destroço, já antecipado pela investigação documental.
Esta será a única fotografia disponível do navio. Dos 22 tripulantes, pertencentes à Marinha de Guerra e aos serviços auxiliares da defesa marítima, sobreviveram apenas sete. Na “Ilustração Portuguesa”, escreveu-se: “Não se esquecerá tão cedo a perda de tantas vidas pelos processos mais traiçoeiros e infames da guerra moderna.”
“A participação portuguesa na guerra foi um momento de ruptura, que teria impactes terríveis tanto numa monarquia parlamentar como num regime republicano”, lembra Fernanda Rollo. “A guerra está a ser reanalisada pela academia porque gerou uma conjuntura internacional demasiado forte para um país que, para viver, precisava de importar os bens alimentares mais básicos, que dependia dos fretes da Marinha britânica e que sofria uma crise social dramática.” A historiadora acredita que o conflito constituiu um factor poderoso de desgaste, aumentando a instabilidade e abrindo espaço para a experiência autoritária do sidonismo em 1918, antecâmara da ditadura militar de 1926. “É esse simbolismo que deve ser assinalado com esta descoberta, quase coincidente com o centenário da participação portuguesa na guerra: foi esta guerra que provocou uma viragem profunda para um futuro de que ainda sentimos os impactes. Foi o início da contemporaneidade. Temos de a estudar melhor.”
Cortesia família de Maria Gargaté Afonso. Fontes: Paulo Costa e Alexandre Monteiro (IHC/UNL)
Viramos a página e caminhamos para o Saldanha, em Lisboa. Maria Gargaté Afonso, de 71 anos, e o irmão José Moreira recebem Alexandre Monteiro e a equipa da National Geographic como velhos amigos. Sabem há algumas semanas que a equipa do IHC localizou o destroço onde faleceu o avô, o primeiro-tenente Raul Cascais, mas não mostram sinais de emoção. As memórias familiares são fragmentadas. A viúva de Raul Cascais ficou com seis filhos a seu cargo quando o marido morreu no Tejo. “Passou por muitas dificuldades”, lembra Maria Gargaté. “A família valeu-lhe porque a pensão de sangue foi ridícula.” Foi através deste documento – e do debate que a atribuição do mesmo gerou na Câmara dos Deputados em 1920 – que Alexandre Monteiro detectou os netos do comandante, quase todos formados em instituições escolares militares.
“Fico contente pelo fim desta história. Só posso imaginar as dificuldades que a minha avó Berta passou para criar os filhos”, diz a neta.
“A minha mãe tinha 5 anos quando o pai morreu”, acrescenta José Moreira. “Não tinha grandes memórias disso, mas não gostava de falar do tema. De vez em quando, abria a gaveta e arejava a farda dele.” Os familiares do comandante do Roberto Ivens vêem, uma a uma, as peças processuais que permitiram identificar o local do destroço. Entreolham-se quando analisam a fotografia do comandante alemão do submarino, mas passam em frente. “Fico contente pelo fim desta história. Só posso imaginar as dificuldades que a minha avó Berta passou para criar os filhos”, diz a neta.
A família guarda um espólio de fotografias e documentos, entre os quais está a exposição que Tiago Gil, o grumete que sobreviveu ao desastre, fez em 1953 ao presidente da Sociedade Histórica da Independência de Portugal. Já inválido, Gil sugeria que, no local do sinistro, os navios da Divisão Naval lançassem flores em homenagem às vítimas de 1917. Quase um século depois, a carta naval já identifica claramente o local da tragédia. A história está finalmente encerrada.
Primeiro-tenente Raul Cascais, comandante do Roberto Ivens.
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