Arthur Wellesley, 1.º duque de Wellington, tentava perscrutar, do alto do seu posto de comando, o que decorria na vereda da serra do Bussaco, nessa madrugada envolvida por nevoeiro. O seu quartel-general situava-se na aldeia da Lameira de Santa Eufémia, mas Wellesley abandonou-a para se dirigir para um sítio mais próximo do local que “escolhera” para a batalha. A noite anterior ao confronto foi mal dormida no Convento de Santa Cruz, consumida talvez a pensar nos planos de defesa face à incursão das tropas napoleónicas.
Eram aproximadamente 6 horas da manhã do dia 27 de Setembro de 1810 quando o exército francês iniciou a subida da serra. Em posição privilegiada, as forças anglo-portuguesas aguardaram. No moinho de Sula, posto de comando do general Craufurd, tudo estava em ordem. Soou, por fim, o primeiro tiro de uma espingarda francesa. A resposta foi célere. O duque de Wellington assistiu ao esforço titânico dos soldados franceses trepando a serra quase despida de vegetação. A artilharia francesa, incapaz de vencer a força da gravidade, não pôde actuar, embora dispusesse em teoria de maior poder de fogo.
O coberto vegetal mudou muito desde 1810. Na gravura de Thomas Sutherland, a orografia foi claramente exagerada, mas mantém-se a ideia de uma serra despida, hoje desmentida pela visão do Palácio Nacional do Bussaco enquadrado pela vegetação.
Wellesley olhou para trás, conferindo o estradão de retirada que mandara construir caso o desfecho não corresse de feição. Olhou novamente para a vereda e ouviu o estampido dos canhões, as balas que silvavam em todas as direcções e as explosões que escavavam buracos na terra. Escutou, também, os gritos dos soldados – quer de incentivo, quer de dor por terem já sido atingidos por balas, estilhaços ou trespassados pelas baionetas. Os sons de sofrimento quase abafavam o troar das armas.
No terreno, e devido ao posicionamento numa cota superior, os comandados de Wellington começaram a ganhar vantagem. Uma investida francesa chega a ganhar posição num dos cumes da serra, mas, sem apoio e coordenação, é varrida da posição arduamente ganha. Nesse instante, talvez o general britânico tivesse começado a intuir que os pratos da balança se inclinavam decisivamente a seu favor. Escassas duas horas e meia depois, a batalha terminava com a retirada das tropas francesas do campo de batalha. No alto da serra, portugueses e ingleses rejubilaram, soltando gritos de triunfo entre os corpos caídos que juncavam o terreno. Mas Wellington mostrou-se comedido: a vitória fora importante, mas a expulsão das tropas francesas estava longe de ser conseguida.
No pólo do Bussaco do Museu Militar, o sargento-chefe Lopes explica minuciosamente todos os movimentos de soldados durante os dias atribulados do Outono de 1810.
Travado no Bussaco, o exército francês continuou a marcha, mobilizado em relação ao objectivo final de atingir Lisboa. Percebendo a inutilidade de atacar uma posição onde o adversário gozava de superioridade táctica, Massena ordenou o rápido contorno da serra do Bussaco por Boialvo, em direcção a Avelãs de Caminho, tomando aí a estrada real que ligava o Porto a Lisboa.
Napoleão Bonaparte, autoproclamado imperador, estava plenamente convencido da superioridade do seu exército. Como grande potência dominante da Europa, impôs o Bloqueio Continental, de modo a impedir a atracagem de navios britânicos em portos europeus, prevendo assim asfixiar a economia dos seus históricos rivais. Na Primeira Invasão, comandada por Junot, o contingente francês não encontrou resistência e chegou com facilidade a Lisboa, embora a família real ainda tivesse tido tempo de fugir para o Brasil. A segunda tentativa, pouco depois, liderada por Soult, foi rechaçada no Norte e, para resolver definitivamente a questão ibérica, Napoleão apostou numa terceira invasão sob comando de um dos seus militares mais prestigiados, André Massena, que nunca conhecera a derrota.
Em 1810, Napoleão controlava já a Espanha e Portugal estava à mercê da sua ambição. Não tardou por isso que a força militar francesa marchasse em força para o território nacional. Depois de conquistar Ciudad Rodrigo, Massena ultrapassou a resistência de Almeida e entrou no coração do território nacional, acompanhando o curso do Mondego.
Uma lápide assinala o local de onde Wellesley instalou o seu posto de observação, controlando os movimentos das suas tropas e rechaçando os franceses serra abaixo.
Por esta altura, já o exército português estava mais bem preparado e organizado, embora carente de armamento e disciplina. Esse papel foi desempenhado pelo duque de Wellington, dado que as forças britânicas já estavam instaladas em Portugal desde a Primeira Invasão, após terem desembarcado nas imediações da Figueira da Foz.
A derradeira tentativa de conquista de Portugal acabou por ruir como um castelo de cartas. Percebendo que seria impossível ultrapassar as Linhas de Torres Vedras e, após travar combates em Alhandra e Sobral de Monte Agraço, Massena ordenou a retirada, regressando à região centro. Esteve longe de ser uma fuga caótica ou desenfreada. O coronel Luís Albuquerque, director do Museu Militar de Lisboa e especialista do período das Invasões Francesas, argumenta aliás que se tratou de um conjunto de manobras muito bem executadas que permitiram aos franceses poupar vidas e reservar-se para combates decisivos que teriam lugar mais tarde.
“Dos cerca de 70 mil soldados franceses que entraram em Portugal, sobreviveram perto de 50 mil, que viriam a sair pela fronteira do Sabugal em 1811, pelo que as baixas não foram esmagadoras” , comenta Luís Albuquerque. Foi nesse processo que mais se sentiu a atitude predatória do exército francês ao longo do trajecto, deixando marcas visíveis no património e entre a população durante as passagens pelas regiões de Pombal, Condeixa e Coimbra. Apesar de já terem decorrido mais de dois séculos, a memória desses eventos traum��ticos ainda é palpável em várias cidades e vilas.
A zona centro de Portugal foi a que mais sentiu os efeitos da Terceira Invasão, particularmente nos concelhos da Mealhada e de Mortágua, onde se viveram os acontecimentos decisivos da batalha do Bussaco. No pólo do Bussaco do Museu Militar, o confronto torna-se palpável. Armas e fardas da época transportam-nos para o início do século XIX e diversas maquetas em relevo reproduzem à escala as peripécias da batalha e os movimentos dos antagonistas. Toda a região contígua constitui um roteiro desses dias em que a independência portuguesa esteve em risco: a Capela de Santo António (onde se encontra a imagem protectora do santo, primeiro capturada e depois resgatada pelos portugueses) é um desses ícones. O Convento Carmelita de Santa Cruz (onde Wellington pernoitou num quarto com duas portas de saída como salvaguarda em caso de ataque) funciona como portal do tempo para um mergulho no século XIX. E no espaço hoje gerido pela Fundação Mata do Bussaco não é difícil imaginar Wellington amarrando o cavalo a uma oliveira, como a tradição garante, antes de passar a noite decisiva no convento.
Ao contrário do que a cultura popular assegura, a retirada francesa foi ordeira e coordenada, não conduzindo a perdas drásticas de homens. A gravura representa as tropas anglo-lusas a atravessarem o vale do Mondego num baixio ainda hoje existente, perto de Penacova.
No edifício da Câmara Municipal da Mealhada, o presidente Rui Marqueiro gosta de lembrar que os ícones de maior demanda turística são as Termas do Luso e a Mata do Bussaco, justamente classificada como Monumento Nacional. Mas essa mesma mata funciona como disfarce. Cobre o solo e esconde uma orografia que, em 1810, era bastante mais evidente. Nestas colinas e cumeadas, travaram-se combates corpo a corpo pelo controlo de cada posição: “O Roteiro das Invasões Francesas, que está a ser preparado na região, terá de acompanhar a entrada das tropas francesas em direcção à serra do Bussaco, mas aqui estamos na região da… terra queimada, o território que foi destruído para não deixar nada útil ao inimigo.” É curioso notar que, no contexto da batalha, Wellington está mais associado ao Bussaco e a Penacova, ao passo que Massena está ligado à Mealhada e Mortágua.
Além da beleza cénica, Penacova desempenhou um papel vital na Terceira Invasão Francesa. Foi ali que ocorreram os primeiros ataques e, no saldo final, foi também ali que se registaram mais baixas. Diogo Carvalheira, do Gabinete de Turismo da Câmara Municipal, justifica: “Esta foi a batalha mais importante das três invasões. No primeiro ataque, houve combates corpo a corpo. 4.500 franceses e 1.500 portugueses perderam aqui a vida ou foram feridos.”
Não surpreende, por isso, que tenha sido no local onde a batalha foi mais acesamente disputada que Wellington instalou o seu posto de comando, com uma visão periférica dos combates.
A travessia do Mondego, perto de Penacova, onde os pescadores de rio perseguem trutas e bogas, talvez desconhecendo que, há 210 anos, o local onde pescam foi cenário de movimentações militares em território nacional.
O rio Mondego não foi propriamente um lugar inultrapassável na travessia do exército de Massena. Há troços de águas baixas que permitiam a homens e armamento transpor facilmente as margens. Sabe-se que os franceses transpuseram o Mondego para chegar a Coimbra e, na retirada, marcharam a sul do rio. Transversal às localidades abrangidas pela batalha do Bussaco, Penacova também promove um conjunto de percursos pedestres, os designados “Caminhos da Batalha do Bussaco”, conforme atesta Diogo Carvalheira: “É um passeio muito interessante, sobretudo os percursos nocturnos de travessia do Mondego, que conferem a esse momento histórico uma aura mágica.” Está aliás em curso um projecto da Comunidade Intermunicipal da Região de Coimbra para sinalizar os principais pontos de interesse do Roteiro Temático das Invasões Francesas, que inclui o reforço dos locais de visitação já existentes e a implementação de soluções tecnológicas de realidade aumentada e realidade virtual. Estes projectos desenvolvem-se em paralelo com outros de dimensões territoriais mais alargadas, quer a nível nacional, quer transfronteiriço, com a chancela da Federação Europeia das Cidades Napoleónicas e do Itinerário Cultural do Conselho da Europa.
Numa das entradas de Mortágua, percebe-se imediatamente que se trata de uma localidade integrada no Roteiro das Invasões: um mural de arte de rua representa uma cena da batalha do Bussaco, precisamente na estrada por onde passaram as tropas napoleónicas. Com efeito, em Mortágua e arredores os acontecimentos da Terceira Invasão Francesa foram vividos de forma dramática pela população, que assistiu ao avanço dos comandados de Massena a caminho do Bussaco e aos seus movimentos posteriores de retirada final.
José Júlio Norte, presidente da Câmara Municipal de Mortágua, refere algumas das páginas da história da vila nessa época: “Na batalha do Bussaco, o sangue correu para Mortágua, pois foi na vertente virada para Mortágua e Penacova que decorreram os combates.” O vereador Paulo Oliveira acrescenta que “a população também sofreu bastante, viu as suas casas destruídas, familiares a morrer e mulheres violadas durante uma semana inteira”. Também por isso concentram-se no território alguns elementos emblemáticos da batalha: o obelisco comemorativo e os moinhos de Sula e de Moura (posto de comando de Massena).
Desesperados por chegarem primeiro a Lisboa, os aliados abandonaram Coimbra, levando tudo o que pudesse ter utilidade para os franceses. Mesmo assim, a cidade foi saqueada e várias colecções da Universidade de Coimbra foram transportadas para Paris.
Um dos grandes problemas do exército francês era a alimentação do efectivo. Em dezenas de ocasiões, rapinavam ovelhas e gado e apropriavam-se de culturas agrícolas. Mas havia também que dar de beber à sede. Só mais tarde perceberam as consequências – os mortaguenses tinham envenenado os poços. A solução de recurso passou por cozinhar os alimentos com vinho, combatendo assim o efeito do veneno. É um dos mais curiosos efeitos de longa duração das Invasões Francesas, pois a tradição perdurou no tempo. A lampantana, a partir da qual derivou a chanfana, é ainda o prato tradicional da região de Mortágua, acompanhado por um reserva especial de vinho do Dão também rotulado de Lampantana. De certa forma, a cada garfada de lampantana, recupera-se uma página da história atribulada da invasão de 1810.
Condeixa-a-Novafoi também um ponto quente da Guerra Peninsular e o Roteiro das Invasões Francesas teria de passar por aqui. O Grupo de Recriação Histórica de Condeixa tem levado a cabo eventos alusivos às invasões, este ano adiados pela pandemia. Garantida, porém, está uma reconstituição da batalha do Bussaco, transmitida pela Internet para todo o mundo. O exército francês estava na fase de recuo depois de ter sido travado nas Linhas de Torres Vedras. Ao passarem por Condeixa, os homens de Massena destruíram tudo o que conseguiram. O antigo Palácio dos Figueiredos, actual Paços do Concelho, é um dos exemplos vivos: foi incendiado pelos franceses, tal como a igreja e algumas casas e houve um número considerável de vítimas civis. Em contrapartida, o belo Palácio dos Lemos escapou incólume ao vandalismo, por ter sido aquele que Massena escolheu para pernoitar. Foi também em Casal Novo, no concelho de Condeixa, que Massena terá percebido que não conseguiria aguentar as posições em solo português. Condeixa não foi palco de batalha, foi um campo de combate. No dia 14 de Março de 1811, uma fracção do exército francês comandada por Ney e perseguida pelas tropas de Wellington, não teve outra solução senão defrontá-las. Em redor da aldeia de Casal Novo, a refrega de doze horas foi feroz, registando-se baixas em ambas as partes. Muitos soldados franceses feridos foram recolhidos para tratamento e outros desertaram. Condeixa ainda preserva apelidos afrancesados. É, afinal, uma das muitas ressonâncias culturais de um acontecimento que marcou a região de Coimbra.