A gruta Divje Babe, na Eslovénia, é um lugar improvável para procurar as origens da música. O nome significa literalmente “mulheres selvagens”, uma alusão às bruxas que, na tradição local, viviam aqui, a meia encosta, cerca de 230 metros acima do rio Idrijca. Os arqueólogos, porém, não andam em busca de bruxas. Desde 1978 que se escava aqui uma página relevante da história da evolução humana. Entre várias camadas de ocupação, destaca-se uma, a Camada 8, datada de 50.000 a 35.000 anos, com vestígios evidentes do Homo neanderthalensis, a espécie que rivalizou com a nossa no período crítico em que se definiria o caminho para os nossos antepassados dominarem o mundo.

Em 1995, a equipa de escavação dirigida pelo arqueólogo Ivan Turk descobriu um estranho fémur de urso-das-cavernas, na Camada 8 – a dos neandertais. O osso fragmentado de um animal jovem registava quatro orifícios alinhados. Com cepticismo louvável, Turk foi o primeiro a colocar a hipótese de os orifícios serem meras marcas produzidas por carnívoros. Existiam outras peças similares em jazidas com a mesma cronologia e nenhuma fora valorizada até então.

Música

No século VII a.C., Assurbanípal mandou fazer uma série de baixos-relevos num palácio assírio de Nínive para relatar a sua vitória sobre o antigo reino de Elam e a entronização de Ummanigash, filho do rei elamita Urtak, que governou este reino durante um curto ano. Este fragmento é uma das mais antigas representações artísticas em que figuram músicos. Fotografia de Nimatallah/ Dea/ Age Fotostock.

Com método, a equipa eslovena tentou replicar os furos noutros ossos ou fazê-los corresponder a mordidas de animais. Nada encaixou. Surgiu então outra hipótese no horizonte: e se as marcas tivessem sido produzidas por hominídeos com o objectivo de criar uma flauta? A hipótese era arriscada e controversa – como mais tarde se viu. Implicava que os neandertais também dispunham de conhecimento simbólico e de pensamento criativo. A ser validado, este seria o instrumento musical mais antigo de sempre… e não pertencia à nossa espécie.

Nos fóruns de arqueologia, o tema desencadeou uma tempestade. Os artigos e a equipa foram atacados. Cajus Diedrich atribuiu as marcas da “flauta” à acção de hienas, cuja dentição se adequaria, embora ainda não se conheçam vestígios destes animais na região. Outros autores sugeriram que o próprio urso-das-cavernas poderia ser responsável. Em 2014, dois anos antes de morrer, o músico macedónio Ljuben Dimkaroski ajudou a complicar este caldeirão fervilhante. Estudou a flauta de Divje Babe, criou uma réplica a que chamou TIDLDIBAB (preferindo não usar o termo “flauta”) e confirmou que era possível extrair três oitavas e meia do instrumento e tocar nele qualquer música contemporânea. O vídeo está na Internet e soa como um vulgar teste de um aluno de música do primeiro ano.

O debate não terminou. O próprio Turk, que teve o fair-play de nos enviar os seus artigos e os artigos que rebatem a sua hipótese, é pragmático: “Não quero impor uma ou outra interpretação”, diz. “Ninguém, incluindo eu, pode estar firmemente convencido de que tem razão.” Na verdade, nada é simples no debate sobre a música e o seu papel na evolução.

1. História e Música

O arqueólogo Steven Mithen, da Universidade de Reading, não está convencido de que a flauta eslovena seja a prova decisiva para confirmar que as origens da música estão embrenhadas nas profundezas da nossa evolução, mas não tem dúvidas de que estas vão surgir. “Sem música, o nosso passado pré-histórico é simplesmente demasiado silencioso para ser credível”, diz.

música

Nascemos programados para responder aos estímulos do timbre, do tom e do ritmo da voz humana, antes mesmo de começarmos a entender as palavras. Será isso um resquício dos tempos em que os nossos antepassados comunicavam entre si com sons musicais? Fotografia de Westend61 / Getty Images.

Em 1997, o linguista canadiano Steven Pinker desferiu um golpe profundo em todos os melómanos do planeta. No seu livro “How the Mind Works”, Pinker argumentou que a música não terá tido qualquer função na construção da mentalidade humana. “É muito diferente da linguagem” – escreveu. “É uma tecnologia, não uma adaptação.”

Das fileiras da antropologia, da etnologia musical e da linguística, ergueram-se várias vozes chocadas, apresentando indícios do papel central da musicalidade nas sociedades humanas, da sua transversalidade e da sua autonomia face à linguagem. No campo arqueológico, Mithen, especialista em pré-história e autointitulado “melómano lamentavelmente com pouco talento”, construiu uma resposta original – um modelo teórico no qual a música assume preponderância na evolução dos hominídeos modernos. Como se isso não bastasse para apimentar o debate, intitulou o seu livro “The Singing Neanderthals” [“Os Neandertais Cantores”].

Para um arqueólogo, a investigação sobre as origens da música pode ser frustrante. “O acto de cantar e dançar quase não deixa vestígios e não estou certo de que conseguíssemos sequer identificar os instrumentos criados pelos nossos antepassados”, diz. A flauta eslovena é só mais um exemplo. Pedras, conchas, “flautas” de osso ou marfim e instrumentos de percussão quase não deixam rasto. Mithen teve, por isso, de operar como um detective, procurando pistas indirectas. Uma delas é morfológica e está dispersa por centenas de museus de antropologia humana.

Música na idade média

Embora conheçamos instrumentos antigos, nunca saberemos bem como soava a música no passado. Isidoro de Sevilha lamentou no século VII que "a menos que a memória do homem os retenha, os sons perdem-se porque não podem ser escritos". A partir da Idade Média, quando as notas e o compasso eram fixados em pautas (como nesta cópia guardada na Biblioteca de Évora), passou a existir um registo escrito das composições. Fotografia de António Luís Campos.

Muitos dos nossos primeiros antepassados simplesmente não dispunham do aparato morfológico para emitir vocalizações elaboradas ou ouvir frequências amplas. A capacidade craniana das espécies anteriores ao género Homo não deixaria espaço para mais do que a luta diária da sobrevivência. Emitiriam sons, como os primatas actuais, talvez até uma cantoria colaborativa como os gibões modernos, mas dificilmente construiriam um sistema elaborado de comunicação musical. Há, porém, um momento definidor na nossa evolução: há cerca de dois milhões de anos, surge o Homo ergaster, uma espécie que se agrega em pequenos grupos para partilhar a caçada do dia e talvez para melhorar as suas hipóteses de sobrevivência. Nesses convívios colectivos – por vezes no solo, por vezes na copa das árvores –, Mithen acredita que, através de gestos e vocalizações, poderia ter nascido um tipo de comunicação diferente. “Não seria uma linguagem porque não tinha gramática nem sintaxe”, explica. Seria holística, na medida em que não poderia ser constituída por elementos segmentados. Seria manipulativa, pois influenciaria estados emocionais e comportamentos do próprio e dos outros. Talvez fosse multimodal (pois usaria som e movimento) e musical, no sentido em que replicaria o domínio do tempo, do ritmo e da melodia em tudo o que se transmitia. E seria mimética, pois usaria simbolismo sonoro, gestos e uma certa teatralidade. Com criatividade, Mithen chamou-lhe “sistema de comunicação Hmmmmm, algo que não existia nos primatas não-humanos, mas também bem diferente da linguagem humana posterior”.

Em busca de novos sons. É possível construir uma história sonora da humanidade através dos instrumentos musicais de cada época. Naturalmente, as fronteiras entre cada instrumento são ténues e pode afirmar-se que ao século XX corresponde a invenção da música electrónica gerada por computador.

A história da evolução humana é um longo caminho de adaptações não lineares. Há 2,3 milhões de anos, o Homo habilis, um dos nossos antepassados, desenvolveu maior capacidade bucal que, mais tarde, permitiu novas capacidades de vocalização. O Homo ergaster que se lhe seguiu, identificado a partir de vestígios fossilizados em África, melhorou o tracto respiratório, que diversificou a expressão oral. A postura bípede permitiu uma reconfiguração anatómica, melhorando a capacidade expressiva do rosto, o ritmo da marcha e as possibilidades de movimento corporal. A linguagem terá surgido em alguma etapa desta evolução, há cerca de 200.000 a 70.000 anos, mas a música, como expressão de comunicação entre indivíduos, pode ter seguido um caminho diferente.

“Nas sociedades de caçadores-recolectores, formavam-se grupos sociais”, explica Mithen. “Teriam de comunicar as suas emoções uns aos outros e de criar laços. E isso pode ser feito através de sons musicais. Dançando e cantando, construímos confiança e cooperação. Tornamo-nos membros de um grupo, tal como ainda acontece no coro da igreja ou nas bancadas de um estádio de futebol, quando cantamos para simbolizar a nossa pertença a um grupo.”

A evolução é uma árvore com muitos ramos e alguns já se conhecem desde o início do século XX. É o caso do Homo heidelbergensis, espécie antecessora dos humanos modernos e do neandertal, que iniciou o seu percurso há 500 mil anos. Durante algum tempo, a mandíbula descoberta perto da cidade alemã de Heidelberg e outros fósseis similares motivaram debates sobre a sua correspondência com fósseis anteriores encontrados em África e com os de espécies europeias que lhe sucederam. Em 2019, a Associação Americana de Antropologia Biológica chamou mesmo “mixórdia do meio” (“muddle in the middle”, na expressão original) a este artifício taxonómico de incluir uma vasta gama de fósseis indefinido s no Homo heidelbergensis , solicitando mais cuidado neste delicado processo de arrumação das provas morfológicas da nossa evolução.

Seja como for, parece evidente que existiu uma divergência posterior, como um enxerto, na árvore dos hominídeos – um ramo gerou o neandertal, com enorme capacidade craniana, forte compleição física, domínio de ferramentas complicadas, quase ausência de dimorfismo sexual mas sem aparente capacidade de pensamento simbólico; do outro, emergiu o Homo sapiens, inteligente, criativo, com capacidade de adaptação e que desenvolveu a capacidade de se exprimir por linguagem e pensamento artístico, bem plasmado no tecto da gruta de Altamira ou nas paredes de xisto do vale do Côa.

A proposta mais inovadora de Steven Mithen é a ideia de que talvez os neandertais desenvolvessem uma linguagem musical, ao passo que os humanos modernos começaram a desenvolver uma linguagem verbal. “Suponho que a linguagem neandertal imitasse sons da natureza”, diz. “Há línguas contemporâneas que ainda usam onomatopeias para descrever aspectos da natureza, como nomes de aves ou de rios. Deveria haver simbolismo sonoro, ou seja, o ritmo expressaria emoções. Seguramente que haveria gestualidade – provavelmente mais do que na nossa espécie. Penso na linguagem neandertal como uma pantomima para expressar e transmitir informação – útil e brilhante face aos dispositivos dos hominídeos anteriores, mas não tão eficiente como a dos nossos antepassados. Talvez isso tenha sido um factor decisivo para o desfecho da jornada humana.”

2. Ciência e Música

Em busca de outros indícios da inscrição da música no nosso instinto viajamos de Reading para Santiago de Compostela, final do caminho dos peregrinos jacobeus e cidade de trabalho do neurologista Manuel Arias Gómez. Divertido e com uma paixão contagiante por tudo o que seja galego – incluindo o pequeno cancioneiro galaico-português que chegou à actualidade –, Arias Gómez estuda o funcionamento do cérebro em associação com a música pelo motivo mais óbvio: ele próprio é músico. Tocou no grupo Milladoiro, de folk galego, e integra o Grupo de Música de Câmara da Universidade de Santiago. Já gravou cinco álbuns, incluindo a transposição para instrumentos modernos das enigmáticas cantigas de amigo de Martim Codax, um trovador medieval, talvez de origem galega.

música e terapia

Com apoio do Fundo de Emergência COVID-19 da National Geographic Society, a fotojornalista Ana Palacios documentou os microconcertos realizados em vários hospitais espanhóis pela Fundação Músicos para a Saúde. Neste caso, a harpista Stefany Ramón Jurenka interpreta uma peça musical durante o parto de Marta Santos no Hospital Quirónsalud de Valência. Fotografia de Ana Palacios.

“Do ponto de vista neurológico, a linguagem e a música têm muitas sobreposições”, explica Arias Gómez. “As áreas do cérebro activadas quando nos expressamos com respeito pelas regras linguísticas de gramática e sintaxe são semelhantes às que usamos quando cantamos, fazemos pausas e usamos ritmos.”

As neurociências partiram para esta corrida sensivelmente na mesma altura em que a arqueologia dava os primeiros passos – na segunda metade do século XIX. “A primeira informação que extraímos sobre o funcionamento do cérebro resultou da observação de pacientes, indivíduos que chegavam aos hospitais com incapacidades para falar por força de lesões, mas que mostravam inteligência normal e capacidade de compreender o que se lhes dizia.” Foi assim que Paul Broca identificou a área da afasia de Broca em 1861 ou que Carl Wernicke percebeu, em 1874, que outra área (hoje conhecida como área de Wernicke) estava associada à capacidade de compreender o que nos dizem, pois o paciente que estudou “falava como os políticos modernos”, brinca Arias Gómez. “Balbuciava muitas palavras, mas o que dizia não tinha nexo.”

como o cérebro processa a música

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Episódios similares permitiram identificar as áreas cerebrais associadas à memória, ao sentido de humor, ao respeito pelas regras e… à música. A literatura médica está repleta de casos de pacientes sem capacidade de se exprimirem depois de um AVC, mas que mantinham a aptidão musical ou, pelo contrário, de músicos experimentados que, depois de lesões, já não conseguiam lembrar-se das notas a tocar ou não conseguiam acompanhar o ritmo de uma orquestra.

As neurociências comprovam hoje que o hemisfério direito favorece o talento musical inato, sobretudo para a melodia e timbre, e o esquerdo permite articulação com o ritmo e, claro, o respeito pela estrutura formal da música. Validaram também que o acto de cantar e dançar liberta dopamina, o mesmo neurotransmissor associado a prazeres específicos como a alimentação ou a recompensa monetária.

Em meados da década de 1960, as tecnologias de imagem revolucionaram o campo das neurociências. “Permitiram-nos passar da observação de áreas do cérebro para a análise de redes neuronais concretas, que implicam nós (ou hubs). Sabemos hoje que as interferências nesses nós produzem reacções significativas”, diz Arias Gómez. “E estamos mais perto de elaborar um verdadeiro mapa do processamento da linguagem musical, que é bastante diferente da linguagem falada, embora existam pontos de contacto. Temos consciência de que o próprio cérebro é plástico – os músicos profissionais apresentam alterações notáveis na estrutura funcional do cerebelo, do corpo caloso, do córtex motor e do plano temporal.”

música e ciência

Charles Limb, cirurgião otorrinolaringologista e músico amador da Universidade da Califórnia, desenhou um piano especial que pode ser tocado dentro de um scanner de ressonância magnética. Com a colaboração de músicos de jazz, registou a actividade cerebral em várias sessões experimentais de improviso para descobrir o que acontece no cérebro dos músicos nesses momentos. Fotografia de Paolo Woods / NGM.

Em Fevereiro de 2020, dias antes de a Europa se confinar para se proteger da pandemia, uma notícia circulou o globo. A violinista Dagmar Turner fora operada a um tumor no cérebro no Hospital King’s College de Londres. A pedido da paciente, esta violinista amadora da ilha de Wight tocou durante o procedimento para garantir que as áreas cerebrais associadas ao movimento das mãos e à coordenação não seriam afectadas. Antes da intervenção, a equipa do cirurgião Keyoumars Ashkan mapeara cuidadosamente os circuitos envolvidos enquanto Dagmar tocava violino.

A operação foi bem-sucedida. Cercada de plásticos e de um exército de cirurgiões de bata azul, Dagmar interpretou excertos de várias peças musicais, incluindo da conhecida canção Bésame mucho, da mexicana Consuelo Velázquez, de crânio literalmente aberto. Não foi uma interpretação musical virtuosa, mas Dagmar tinha a atenuante das circunstâncias. E mais importante: preservou a área cerebral essencial para prosseguir o seu passatempo preferido.

Música

Integrante da Orquestra Sinfónica da ilha de Wight, em Inglaterra, Dagmar Turne foi operada a um tumor cerebral no Hospital King's College de Londres. Durante a cirurgia, realizada pela equipa do cirurgião Keyoumars Ashkan, tocou violino para garantir que, enquanto extirpavam o tumor do lóbulo frontal direito, não se danificaria a área que controla o movimento da mão esquerda. Fotografia de Hospital King’s College/ Nhs Foundation Trust.

Manuel Arias Gómez faz questão de lembrar que a capacidade musical não é uma mera questão neurológica. “Inclui vertentes artísticas e culturais e tem forte componente genética”, diz. Envolve activação de vastas áreas do cérebro, uma sinfonia de cores que uma electroencefalografia (ou EEG) de um músico revela com expressividade. “Há pouco tempo, chegou ao meu consultório uma paciente com Alzheimer. Mostrava-se incapaz de recordar eventos recentes, mas, quando trauteei o fragmento de uma velha música galega, a senhora acompanhou e cantou-a até ao fim com genuíno prazer. A música e a memória da música têm esse poder, mas ainda só estamos a arranhar a superfície para perceber por que motivo a audição de uma música agradável nos dá tanto prazer ou que papel poderá a musicoterapia ter.”

3. Cultura e Música

Outro indício da inscrição da música no nosso património genético encontra-se nos mais pequenos recipientes da nossa cultura – os bebés humanos. Em Novembro do ano passado, retido no aeroporto catalão de El Prat enquanto aguardava por uma ligação aérea atrasada, pousei os olhos numa viajante internacional. Falava uma língua que não entendo, enquanto segurava um bebé irrequieto ao colo. Para o acalmar, baixou o tom do que dizia, ritmou mais as palavras e exagerou as vogais. Depois, entoou uma canção de embalar – as palavras escaparam-se-me, mas o acto de cantar para um bebé, conferindo-lhe segurança, parece inato a todas as culturas.

música

Em 1993, a revista "Nature" publicou um estudo que associava a audição de música clássica a melhores performances em testes de inteligência espacial: foi chamado o "efeito Mozart". Pesquisas subsequentes não confirmaram esses resultados, e essa hipótese ainda está em estudo. Pode não ser possível quantificar o prazer que um concerto nos causa, mas a música continua a exercer enorme fascínio na nossa cultura. Fotografia de Martin Barraud / Istock.

Steven Mithen pensou bastante sobre o tema. “Antes de desenvolverem linguagem, os bebés humanos vêm ao mundo com a capacidade musical instintiva de reagir aos ritmos, aos tempos e às melodias antes de perceberem o significado das palavras”, explica. “Reagem mais à entoação do que à expressão facial de quem canta ou fala para eles em ‘linguagem de bebé’. Talvez seja o resquício de um sistema de comunicação dos nossos antepassados – uma capacidade musical instintiva para a qual ainda estamos programados para reagir.”

Mas reagiremos da mesma forma a músicas com que não estamos familiarizados? Para responder a essa questão, o investigador alemão Thomas Fritz, do Instituto Max Planck para a Cognição Humana e para as Neurociências, dirigiu-se em 2005 às montanhas Mandara, no Norte dos Camarões. Numa região infestada de doenças e longe da civilização moderna, Thomas procurava um oásis – uma comunidade que nunca tivesse sido exposta a música ocidental, nem através dos coros religiosos, nem de um simples rádio. Encontrou-a em alguns povoados mafa.

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Thomas Fritz, do Instituto Max Planck, realizou experiências com a comunidade mafa, no Norte dos Camarões, onde o contacto com a música ocidental era quase nulo. Estudou as reacções emocionais a obras clássicas, demonstrando que existem aspectos inatos na música comuns a todos. Fotografia de Hildiko Hetesi.

“O povoado mafa que visitei era muito rural, tradicional e quase sem recursos – um rádio seria um tesouro”, diz. “Na região, vi apenas dois rádios e ambos pertenciam a chefes de aldeias.”

Com paciência extrema, sensibilidade e… oferta de cerveja, Fritz conseguiu integrar-se nesta cultura e montar curiosas experiências. O objectivo era grandioso: “Encontrar uma cultura que nunca tivesse escutado música ocidental e perceber se o apelo universal da música é apreciado de forma inata”, diz este investigador que é também, nas horas vagas, músico e criador dos seus próprios sons electrónicos.

Fritz pediu aos aldeãos para escutarem trechos de melodias curtas que já tinha utilizado numa experiência anterior com pacientes pós-AVC para testar se mantinham capacidade de identificar emoções musicais, ritmos e tons. Com um sistema fácil de cartões, nos quais reproduzia uma face feliz, outra triste e outra assustada, tocou-lhes excertos de Beethoven, Wagner, Rachmaninoff. Para quem ouvia sons daquela natureza pela primeira vez, foi certamente uma experiência radical. “Mas a maioria das pessoas identificou as emoções ‘certas’ para cada excerto de música. A experiência sugeriu que, mesmo nunca tendo escutado música ocidental, existe uma capacidade inata para lhe atribuir emoções que partilhamos em todas as culturas.”

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A música desempenha um papel social entre os bayaka na República Centro-Africana. Vocal e polifónica, requer a participação de todo o grupo. Talvez os primeiros hominídeos se expressassem em sessões colectivas na savana, antes mesmo de desenvolverem a linguagem falada. Fotografia de Timothy Allen / Getty Images.

Numa segunda experiência, Fritz estudou a consonância. Imagine um excerto wagneriano que termina abruptamente com notas fora de tom ou duas escalas abaixo do esperado. O nosso ouvido reage de imediato com desconforto, mas será que o dos mafa também reagiria face a um excerto de uma composição com regras diferentes das da sua música? “Comprovou-se que o ser humano prefere sons consonantes aos dissonantes e isso tanto sucede numa música ocidental com os mafa, como sucede connosco se escutarmos um trecho de música mafa”, conclui o investigador.

Thomas Fritz trouxe dos Camarões várias flautas mafa. Embora esta cultura não disponha de uma palavra para “música”, utiliza-a nos rituais mais importantes, espaçados no tempo e associados sempre à fertilidade das colheitas. As flautas são peculiares. São instrumentos de uma nota só e exigem do tocador a capacidade pulmonar de alguém que se predispõe a apagar um incêndio só com o sopro.

Num evento organizado no Sul da Áustria com músicos amigos, Fritz pediu-lhes que tocassem os instrumentos mafa. Queria provar o poder universal da música, transcendente a cada cultura. O som produzido é… indescritível, mas não é só ruído. Para um ouvido europeu, parece uma ou duas notas produzidas pela sirene de uma ambulância. “Para um mafa, além do riso que lhe despertaria ver tanta gente exótica a tocar mal o seu instrumento, evocaria experiências importantes”, explica Fritz. A música depende do ouvinte e do contexto. “E, no caso dos mafa, valoriza-se porque tocam juntos durante horas nesses rituais, atingem a euforia, um transe, através da repetição dos sons das suas flautas.”

Ainda nos Camarões, Thomas Fritz conduziu uma última experiência. Tocou dezenas de trechos de obras clássicas aos mafa, pedindo-lhes para os associarem a significados possíveis. “Notei um aspecto curioso”, conta. “Podia introduzir ‘árvore’, ‘chuva’, ‘rio’ ou ‘sol’ nos cartões, mas sempre que colocava ‘boi’, era esse o significado que escolhiam para qualquer música. É o animal mais importante da sua cultura, a sua razão de viver. Ficou bastante claro para mim que a cultura é muito poderosa a sobrepor-se ao instinto inscrito no código genético humano”, diz.

Regressamos ao gabinete de Steven Mithen, em Reading. Nas prateleiras, vêem-se réplicas de crânios de hominídeos, talvez como lembrete do que nos separa e do que nos une aos nossos antepassados. A teoria do autor britânico foi bem recebida na academia pela sua capacidade de articular argumentos da arqueologia, com outros da linguística, da psicologia, da musicologia e das neurociências.

Mithen não perde a esperança de que algures, numa escavação presente ou passada, seja descoberta “uma flauta muito antiga esculpida a partir de um osso de ave, uma figura esculpida alegórica à música ou um crânio bem preservado de um mamute usado como tambor”, brinca. “Acho que existem. Talvez já estejam na cave de algum museu sem que nos apercebamos da sua importância.”

Em 1871, em “A Descendência do Homem”, Charles Darwin intuiu correctamente que a ubiquidade da música em todas as culturas humanas e o desenvolvimento espontâneo de capacidades musicais em cada bebé teriam de corresponder a uma vantagem evolutiva, pois a vocalização musical provavelmente antecedeu o desenvolvimento da linguagem. Propôs que talvez facilitassem a corte entre machos e fêmeas, o que é facilmente comprovado numa sala de tango na Argentina ou numa discoteca em Lisboa. Seriam igualmente providenciais para estreitar os laços entre a mãe e o seu bebé, conferindo um cordão umbilical simbólico de conforto entre ambos. E são também, seja entre os mafa dos Camarões ou um grupo de mineiros cantando à medida que caminha para as entranhas da terra, a cola social que gera cooperação e unidade em grupos de humanos.

Nunca saberemos ao certo como soava a música egípcia, assíria, grega ou romana – muito menos a dos nossos antepassados pré-históricos, refugiados em grutas, cantando para passar o tempo. As pautas e as notações musicais são um produto do século X, o que implica que toda a música criada antes disso pela nossa espécie nos chegue como um vago eco – um ruído quase indistinto das profundezas do tempo, mas estranhamente familiar.