Uma crescente diáspora Uyghur encontrou refúgio e uma nova ligação à sua cultura nos bairros de Istambul

Istambul, Turquia

Crianças reunidas no pátio em betão da sua escola ao início da manhã formam linhas ordeiras junto ao poste da bandeira, onde dois rapazes mais velhos estão ocupados a desenredar tecido e corda. Um vento quente de Agosto sopra entre as salas de aula e os dormitórios, em direção a uma mesquita com uma cúpula de chumbo, blocos residenciais e o brilho distante do mar de Marmara. A bandeira desenrola se à medida que os rapazes os rapazes a içam, revelando uma estrela branca e um crescente contra um fundo azul-celeste que representa aquilo que as crianças conhecem como o Turquestão Oriental – a região chinesa de Xinjiang – bem como os Uyghur, o seu povo, que aqui vive. Desfraldá-la em Xinjiang é estritamente proibido.

Hebibullah Küsen, o devoto director da escola, com a sua barbicha, inicia um discurso através de um altifalante, recordando as crianças que aprenderam a sua língua materna juntamente com ciência religião e literatura Uyghur. Também fala sobre a bandeira: como a estrela e o crescente simbolizam o Islão e o azul a sua identidade étnica.

“Um dia, içaremos esta bandeira na nossa terra natal”, diz Küseni. “Estão prontos para isso?”

“Sim!”, respondem as crianças em uníssono, colocando a mão direita sobre o peito enquanto o hino do Turquestão Oriental, a “Marcha da Salvação” toca. Também isso seria ilegal em Xinjiang. Em seguida, os alunos juntam-se numa sala de reuniões onde um palco alcatifado, com cortinados lilases no fundo e um arco de flores brancas foi montado e decorado diante de filas de cadeiras de plástico.

A ocasião é uma graduação de um curso de Verão, mas além de receberem certificados, estas crianças recitam poemas sobre locais que não podem visitar, cantam canções que ali são proibidas e dançam danças tradicionais. Envergando túnicas castanhas, alguns fazem rodas no palco enquanto os seus colegas de turma batem palmas ao ritmo da música. Alguns pais presentes no público seguram os seus telemóveis captando cenas de normalidade feliz com algo subjacente: porque para os exilados Uyghur quase todas as formas de expressão cultural representam um desafio.

Preservando a identidade Uyghur

Takamasa Shayda deixa-se ficar após a cerimónia para fotografar os seus dois filhos, com 13 e 10 anos, e a sua filha de 6 anos sob o arco de flores. Shayda, originária da capital regional de Xinjiang, Ürümqi, mudou-se para Saitama, no Japão, com o seu marido em 2008. Não lhe tem sido possível voltar a casa, pois as autoridades chinesas iniciaram uma campanha de repressão contra os Uyghur e outras minorias em 2017. Os filhos tinham começado a perder a sua própria língua em Saitama e, quando ela falava Uyghur com eles, só lhe respondiam em japonês. Então, ela e o marido decidiram mandá-los para a escola em Istambul durante as férias de Verão.

As crianças Shayda juntaram-se a alunos que viviam sobretudo no local, incluindo alguns que ficaram órfãos depois de os seus pais serem detidos pelas autoridades chinesas em Xinjiang. Outros viajaram para lá vindos da Alemanha, de França e do Canadá. Os dois filhos de Shayda aprenderam a falar e a escrever em Uyghur e um deles recitou um poema durante a cerimónia. “Estou quase a chorar agora”, disse, descrevendo quão importante as últimas semanas tinham sido para ela. “Passei muito tempo no estrangeiro e eu e todos os Uyghur sentimos muitas saudades do nosso país.”

Os Uyghur são étnica e linguisticamente túrquicos e predominantemente muçulmanos. Compõem um dos maiores grupos minoritários da China e têm enfrentado várias formas de perseguição ao longo de décadas. As repetidas tentativas do presidente chinês Xi Jinping de forçar uma assimilação incluíram proibições contra a maioria das formas de expressão cultural e religiosa e a detenção de mais de um milhão de pessoas em prisões e acampamentos de reeducação, esterilização de mulheres e transporte de crianças para colégios internos.

Uma minúscula proporção de Uyghur que já estavam fora do país, ou tinham conseguido escapar a tempo, encontraram refúgio no estrangeiro. A maior população residente fora da Ásia central, estimada em cerca de 50.000, encontra-se na Turquia. Há números mais pequenos, mas crescentes, na América do Norte, na Europa e na Austrália.

Com um processo de eliminação a desenrolar-se na China, que o governo dos Estados Unidos da América e grupos de direitos humanos descreveram como genocídio, estes exilados tiveram de preservar o que conseguiram da sua cultura Uyghur fora da sua terra natal. No entanto, a cultura não é um conjunto fossilizado de costumes: é uma coisa viva e em permanente mudança, moldada pelas crenças, preferências e circunstâncias das pessoas que a praticam. E as ideias da cultura Uyghur já estão a mudar na diáspora, sendo expressas de forma diferente em diferentes geografias, incluindo de formas que membros da comunidade dizem que não seriam vistas em Xinjiang.

Uma comunidade unida pela literatura

Muitos dos Uyghur de Istambul instalaram-se em Zeytinburnu, um bairro de classe operária com edifícios altos em betão e uma longa história de emigração. Ali abriram restaurantes talhos, mercearias e lojas de roupas que vendem seda Etles de padrões brilhantes, barretes doppa, e almofadas enfeitadas que outrora encheram os bazares de Xinjiang.

A livraria de Abduljelil Turan encontra-se numa rua sossegada. A parte da frente da loja abre-se para uma panóplia de prateleiras que conduzem até ao escritório forrado com papel de parede de motivos florais e sofás de pele desgastada e livros empilhados sobre todas as superfícies disponíveis. Turan, um sociável homem de 64 anos que escreve, imprime, digitaliza e distribui literatura Uyghur desde a década de 1990 costuma encontrar-se por aqui. Tendo crescido durante a Revolução Cultural das décadas de 1960 e 1970, viu a polícia queimar livros confiscados nas ruas. Agora, teme que esses acontecimentos possam repetir-se. “O papel principal da loja é a preservação”, afirma. “Porque se as políticas da China continuarem assim, alguns destes livros vão desaparecer no Turquestão Oriental”.

Turan guarda uma série de títulos em idioma Uyghur – romances, traduções de autores desde Henry Kissinger a Jean-Paul Sartre e livros infantis com gatos, ursinhos e carros voadores nas capas que espera que contribuam para a preservação da sua língua materna. Envia-os para todo o mundo. Há uma grande caixa de cartão no seu escritório, pronta para ser despachada para o Instituto Uyghur Europeu em Paris.

A literatura e a poesia, explica, têm sido particularmente importantes para os Uyghur, talvez porque a palavra escrita permitiu a expressão indirecta de verdades e opiniões que, de outra forma, seriam inaceitáveis pelas autoridades chinesas. Os livros mais populares de Turan são epopeias históricas. Num país onde a divergência dos relatos históricos definidos pelo Estado é proibida, os autores Uyghur disfarçaram acontecimentos reais como romances fictícios, afirma. No entanto, quando as depressões começaram em 2017, isso não foi suficiente para salvá-los. Os intelectuais Uyghur foram os primeiros a ser capturados. Turan navega por entre as prateleiras, sobre nomes e rostos de pessoas desaparecidas. Este escritor desapareceu, diz, este poeta foi preso, este partiu para o exílio. Abre uma enciclopédia sobre a história Uyghur numa página aleatória e aponta para uma entrada sobre um estudioso que morreu num campo de detenção em 2017.

Memet Tohti Atawulla, de 32 anos, académico e professor Uyghur de literatura e activista, residente em Istambul, descreve um dia em que se sentou para comer em Ürümqi com um romancista Uyghur de renome entretanto aprisionado. “Tentamos escrever tudo o que deve ser escrito, mas de formas diferentes, com nomes diferentes”, disse-lhe o romancista. “Se vocês, as gerações mais jovens, substituírem os nomes, tornar-se-ão história pura.”

Usando a música para realçar o sofrimento

Também a música Uyghur está agora inerentemente interligada à política e à resistência. Uma das canções que as crianças da escola cantam foi gravada pelo guitarrista A. Kiliç que toca frequentemente com a sua mulher, H. Yenilmez. Kiliç tocou em tempos no circuito dos clubes nocturnos de Beijing, integrando um grupo especializado em música popular flamenca, ao estilo dos Gipsy Kings, na década de 1990.

Vendo-se retido na Turquia aquando da repressão, Kiliç começou a incorporar instrumentalizações Uyghur nas suas composições para realçar o sofrimento do seu povo. Uma das peças inclui versos atribuídos ao poeta Abduqadir Jalalidin, alegadamente escritas enquanto este esteve detido. As palavras do poeta circularam em 2020 pela boca de outros presos, que as decoraram antes de serem libertados, mas o paradeiro de Abduqadir Jalalidin permanece desconhecido.

“A minha vida é tudo aquilo que peço. Não tenho nenhuma outra sede”, diz um verso. “Estes pensamentos silenciosos atormentam, não tenho como ter esperança.”

Kiliç e Yenilmez optaram por não usar o seu número completo nem revelarem os seus rostos quando começaram a divulgar música, em parte porque, mesmo na Turquia, os Uyghur não estão a salvo do aparato de segurança chinês. Os exilados descrevem assédios constantes através das redes sociais ou de aplicações de troca de mensagens, incluindo tentativas de coagi-los a espiarem outros membros da diáspora e ameaças a parentes que permanecem na sua terra natal. Os Uyghur de Istambul estão também preocupados com as relações cada vez mais amigáveis entre Ankara e Beijing a polícia turca já deteve vários Uyghur, reprimindo alguma atividade política e desencadeando mudanças de pessoas para a Europa.

Apesar da grande população residente na Turquia, a cultura Uyghur do local está ameaçada por uma forma mais mundana de assimilação. Os pais queixam-se frequentemente de que os seus filhos querem adoptar tudo, desde o idioma turco à gastronomia. As mesmas dificuldades enfrentadas por novos imigrantes em todo o mundo tornam-se existenciais quando a identidade corre perigo nas suas terras natais.

O papel da religião

A vida na Turquia já está a ter um impacto mais subtil. Os Uyghur do país, sobretudo as gerações mais velhas, praticam com frequência uma versão mais conservadora do Islão do que do que faziam na China. As mulheres usam niqabs, os homens têm barbas longas e há separação de géneros em eventos sociais. Em Sefaköy, um bairro não muito distante de Zeytinburnu, existe uma mesquita espaçosa numa cave, onde o imã Mahmoud Mohammed diz que se reúnem regularmente 150 a 200 pessoas.

Para Mohammed, o Islão é sinónimo da identidade Uyghur e essencial para a sua sobrevivência na China. “Ao longo da história Uyghur, a religião sempre foi um escudo que protegeu a identidade”, afirma. “Aqueles que têm crenças religiosas fortes sempre tiveram uma identidade étnica forte.”

Dilnur Reyhan, académico responsável pelo Instituto Uyghur Europeu, em Paris, diz não reconhecer essas práticas islâmicas mais conservadoras de Xinjiang. Ela crê que resultam parcialmente do facto de as autoridades turcas financiarem e incentivarem grupos islâmicos Uyghur.

A diferença de recursos e diferentes tipos de organizações pode ser enorme. A algumas ruas de distância da mesquita Sefaköy existe um centro de juventude que pretende incutir uma noção de identidade moderna nos jovens Uyghur através da arte aulas de boxe, programas de aconselhamento e preparação para os exames da universidade. Funciona num edifício parcialmente remodelado que foi em tempos um salão de beleza.

Reyhan, entretanto, diz ter-se esforçado para encontrar um local permanente para o seu instituto, onde se ensina música tradicional, dança e outras disciplinas a um crescente número de Uyghur residentes em França. Numa tarde de setembro, uma multidão segurando bandeiras azuis e tabuletas reuniu-se numa verdejante avenida parisiense para protestar e promover a consciencialização acerca do problema em Xinjiang, fazendo discursos e entoando palavras de ordem.

Reyhan participou na manifestação juntamente com um grupo de outros Uyghur recentemente chegados de Istambul. Em seguida, sentaram-se juntos e discutiram as razões pelas quais se haviam mudado. Em parte, fora por já não se sentirem seguros na Turquia, concordaram, e em parte também por não se sentirem em casa.

Um jornalista de 29 anos com o cabelo encaracolado e uma tatuagem dos estrumpfes – que escreve sobre o pseudónimo de Umun Ihsan para preservar o seu anonimato – fez eco das palavras de Reyhan. A comunidade Uyghur da Turquia é mais religiosa. Em França é mais secular, por isso as expressões são diferentes.”

Reyhan diz que ainda se considera culturalmente muçulmana e acha difícil traçar uma distinção clara entre a cultura Uyghur e o Islão. Também acredita que a fé salvou vidas entre exilados desesperados, afastados dos seus entes queridos, contribuindo para sustentar a esperança de que um dia poderão regressar a casa.

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