Berço de uma das mais ricas culturas e com impactes mais duradouros na bacia mediterrânea, Roma é sinónimo de património. É nesta metrópole, tão charmosa quanto caótica, que numa sala surpreendentemente moderna de um velho edifício junto do rio Tibre, se encontra a talvez mais importante colecção de amostras de pintura mural do mundo.
Acolhe-a a sede do Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro de Bens (ICCROM), instituição criada no pós-guerra com o intuito de promover a colaboração internacional na área da conservação do património cultural, juntando, sob a égide científica, antigos inimigos. Entre várias áreas de actuação, o estudo de pintura mural foi desde sempre um dos que se destacou nesta casa. É por isso natural que a Colecção Mora, como é conhecida, se tenha aqui estabelecido.
Foi construída ao longo de décadas pelo casal Paolo e Laura Mora, conservadores-restauradores de pintura mural (entretanto já desaparecidos, ele em 1998, ela em 2015), autores da “bíblia” do ramo e personagens com uma história de vida digna de um livro de aventuras.
António Luís Campos
Este espólio inclui cerca de 1.300 amostras materiais recolhidas em pelo menos 35 países.
O DEVER DE CONSERVAR E INVESTIGAR
Apesar da sua importância, a colecção precisava ironicamente de trabalhos urgentes. O primeiro passo era proceder a um registo fotográfico e acondicionamento urgente da colecção. Em concurso internacional, o laboratório HERCULES da Universidade de Évora foi seleccionado para fotografar, documentar e acondicionar sistematicamente todas as amostras e produzir um catálogo digital da colecção para fins de conservação e investigação.
A colecção Mora foi construída ao longo de décadas por Paulo e Laura Mora, conservadores-restauradores de pintura mural.
Milene Gil, que coordenou o projecto, juntamente com António Candeias, Maria Mata Caravaca e Alison Heritage, explica a importância da colecção: “Este espólio materializa o trabalho de toda a vida dos Mora como consultores pelo ICCROM: são cerca de 1.300 amostras materiais recolhidas em pelo menos 35 países e, ainda que as pinturas murais constituam o núcleo principal da colecção, integra também têxteis, pedra, cerâmica, gesso, estuque, vidro e papel pintado”.
“Os Mora”, como são internacionalmente conhecidos, foram responsáveis não só pela conservação de algumas das mais notáveis obras de arte italianas, mas também de diversos e preciosos tesouros culturais da história universal.
O DEVER DE DIVULGAR
Inspirados pela necessidade de partilhar a sua riqueza de experiências e métodos com um público mais amplo, o seu maior legado foi seguramente a publicação, em 1977, da obra The Conservation of Wall Paintings, que serve até hoje como um recurso didáctico essencial para conservadores de pintura mural em todo o mundo.
Apesar de nenhum dos Mora se encontrar já entre nós, um dos seus discípulos ainda é vivo e mantém-se no activo: Gael de Guichén. Há mais de meio século ligado ao ICCROM, este engenheiro químico francês de 81 anos tornou-se, por mérito próprio, uma lenda, tendo dirigido os trabalhos de estudo e conservação de dois dos mais emblemáticos sítios arqueológicos da Europa: as grutas de Lascaux, em França (a sua morada oficial no cartão de identidade chegou mesmo a ser “Grutas de Lascaux”), e mais tarde de Altamira, em Espanha.
António Luís Campos
É em Roma, num velho edifício junto do rio Tibre, que se encontra a talvez mais importante colecção de amostras de pintura mural do mundo. Acolhe-a a sede do Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro de Bens (ICCROM).
Acabado de chegar de um congresso internacional na América do Sul, encontro-o num imenso edifício do centro de Roma, por cima do Museu Napoleónico. Alto e esguio, de cabelo alvo e roupa a condizer, impecavelmente branca com discretos apontamentos de cor bordados na camisa, abre a porta com um enorme sorriso, que se estende aos olhos azuis intensos. Educado mas assertivo, pede que nos descalcemos e regista todos os seus convidados com uma impressão digital e uma foto num livro que soma mais de seis mil convidados em 15 volumes (conta-nos que apenas uma pessoa se recusou a este ritual).
Ainda hoje corre de madrugada na Praça Navona. Carismático, Gael tem uma história de vida incrível e é um contador de histórias nato. Obsessivamente metódico, cedeu grande parte do seu arquivo com grande valor histórico ao ICCROM. Incumbida de receber e catalogar este acervo, fazendo jus ao carácter internacional da instituição, a responsável por tamanha confiança é espanhola.
“Esta colecção é única e extremamente valiosa por ter amostras materiais de alguns dos sítios arqueológicos com arte mural mais icónicos do mundo."
Sentindo-se em casa no intrincado labirinto de salas, corredores, escadas e vãos esconsos, Maria Mata é uma dedicada arquivista, tendo a seu cargo a organização do arquivo documental do ICCROM, em particular do espólio de Gael de Guichén e dos Mora. No seu gabinete e nas divisões contíguas, ainda se podem ver exemplos de pinturas entre as enormes prateleiras que vão até ao tecto, pois o actual arquivo foi em tempos uma sala de aulas. Após uma prolongada conversa com Maria sobre a orgânica de manutenção da Colecção Mora, Milene desce à “sua” sala, para finalizar os últimos pormenores antes de regressar definitivamente a Portugal. Rodeada do estúdio fotográfico portátil que utilizou desde 2018 para documentar individualmente as amostras, não esconde, na voz embargada, uma mescla de alívio pela sensação de missão cumprida com uma certa melancolia pela partida: “Esta colecção é única e extremamente valiosa por ter amostras materiais de alguns dos sítios arqueológicos com arte mural mais icónicos do mundo, e estava em sério risco de desaparecimento, devido a deficientes condições de acondicionamento, dispersão e catalogação incompleta.”
Agora este acervo está completamente disponível online, permitindo a investigadores de todo o mundo aceder à informação sem terem de se deslocar a Roma. É um recurso ímpar no mundo da conservação, sobretudo porque foi compilado num contexto histórico e científico únicos — seria hoje impossível colher muitas das amostras presentes na colecção, pela sua tipologia e tamanho, devido às restrições éticas hoje em dia impostas à amostragem, mas também porque muitos locais locais estão inacessíveis devido a longos conflitos.
António Luís Campos
Todos as amostras estão agora associadas a um código QR, permitindo conectar rapidamente a informação disponível na base de dados com os diferentes fragmentos.
O DEVER DE CONTINUAR
No último dia em Roma, sob um forte aguaceiro que se abateu sobre a velha capital imperial, Costanza Mora faz uma visita para conhecer a nova organização da colecção que foi o trabalho da vida dos seus pais. De discurso fluido e vívido, observa com atenção as dezenas de gavetas com amostras que lhe evocam recordações de infância...
Contrariando a vontade dos pais, Costanza seguiu-lhes as pisadas, tendo-se formado também como conservadora-restauradora. No meio da conversa, aventa a hipótese de que talvez esta colecção não esteja ainda completa, pois suspeita que, algures na casa da família, poderá haver ainda alguns tabuleiros de amostras esquecidos… Para Milene Gil, é como se acendesse uma nova faúlha no seu entusiasmo.