Com o Verão, a temperatura aumenta e as noites convidam a sair de casa, estar na rua, receber a brisa que ajuda a arrefecer os poros. Cidades, vilas e aldeias oferecem vários programas de diversão e, nos últimos anos, um dos que tem crescido em popularidade e número de oferta é o do cinema ao ar livre.

Qualquer cinéfilo a quem os algoritmos das redes sociais sinalizou como alvo de uma boa dose de cinema vê passar no seu feed oportunidades de poder assistir, em comunhão, a um cinema sem ser no escurinho da sala fechada. Durante a escrita deste artigo, passaram por este ecrã opções em Lisboa, Coimbra ou Porto.

Aliás, por todo o país, especialmente nos meses de Julho, Agosto e Setembro, a magia comunal do cinema ao ar livre tem sido recuperada ou estimulada, sobretudo por câmaras municipais, juntas de freguesia, cineclubes, organizadores de festivais ou associações culturais ou sociais. Estas sessões  – a maioria de entrada livre  – podem acontecer nos mais variados cenários: no adro da igreja da Paróquia de Santa Luzia, em Angra do Heroísmo, no anfiteatro da Casa da Cultura de Santa Cruz, na Madeira, em eiras, como em Ancas, no Parque do Arnado, em Ponte de Lima, na esplanada da Cinemateca Portuguesa ou na Quinta das Conchas, em Lisboa, no cemitério antigo de Cacela Velha ou na Praceta Casablanca, em Vila Real de Santo António.

Há umas semanas, ao assistir ao filme “Grease” (que, nem de propósito, tem um número musical num drive-in) na Invicta, num ciclo que o Cinema Batalha apresentou na praça em frente, os lugares sentados estavam esgotados e havia outros tantos espectadores de pé, aguentando duas horas de filme, trauteando “Summer Nights” e “You’re The One that I Want”. Estamos em 2023, mais de 100 anos depois da invenção do cinema ao ar livre. 

CineClub Bairrada MOUVA
Cortesia de Daniela Vidal

Sedeado em Ancas, Anadia, o CineClub Bairrada aposta no cinema ambulante e ao ar livre como uma das suas principais estratégias de fazer chegar documentários, clássicos e cinema de autor a comunidades rurais, privilegiando espaços públicos como adros de igreja, eiras ou jardins. Nesta fotografia, vemos o documentário "O Senhor Óscar das Bicicletas" a ser projectado num mercado local na freguesia da Palhaça (Aveiro). 

Um adro de igreja, um jardim, um cemitério, uma praceta, uma praia fluvial ou uma esplanada. São vários os cenários que acolhem estas sessões nocturnas. 

As origens do cinema ao ar livre

O Cinema, como o entendemos hoje tecnologicamente, surgiu em 1895, pelas mãos dos irmãos Auguste e Louis Lumière. E, apesar de as primeiras projecções terem sido feitas em sala, poucos anos depois já havia sessões ao relento. Em Atenas, por exemplo, ainda funciona o Aegli, nos jardins do Zappeion, junto ao Parlamento, desde 1903: hoje, com mesas e empregados a servir às mesas, é um dos lugares mais amados pelos atenienses. Em feiras de atracções nos EUA, por sua vez, havia também sessões ambulantes desde pelo menos 1907. Os visitantes eram convidados a observar “fotografias em movimento” em ecrãs que circulavam de feira em feira.

O cinema Sun Pictures, no centro de Broome, Austrália, foi construído em 1913 e reclama ser o cinema ao ar livre mais antigo do mundo.
SHUTTERSTOCK

O cinema Sun Pictures, no centro de Broome, Austrália, foi construído em 1913 e reclama ser o cinema ao ar livre mais antigo do mundo.

No entanto, aquela que é considerada a mais antiga sala de cinema ao livre construída especificamente para essa função abriu em 1916 em Broome, na Austrália. Ainda hoje funciona e chama-se Sun Pictures. Começou como uma loja no bairro chinês no local, que vendia roupa e produtos orientais, mas os Yamtsaki, uma família de comerciantes, nutria um amor tão grande pelas artes que os levou a construir um estabelecimentos de espectáculos onde mostrava peças de teatro Noh, popular principalmente no Japão. Em 1913, um empresário adquiriu o edifício comercial, que reabriria três anos depois como espaço da Sétima Arte. O primeiro filme projectado foi “Kissing cup”, um drama britânico sobre corridas de cavalos. O espaço ficava junto ao mar e, como tal, inundações eram frequentes. Uma piada recorrente era a de que se podia assistir a um filme e voltar para casa com um peixe para jantar.

CINEMA E AUTOMÓVEIS

Não demorou muito até que alguém se lembrasse de introduzir um outro elemento à fórmula: o carro. Já em 1915 havia uma sala a céu aberto em Las Cruces, Novo México, com um auditório de lugares sentados e um espaço lateral com lugares de estacionamento. Outras experiências aconteceram durante a década de 1920, mas por dificuldades logísticas, ver filmes a partir do carro não era uma actividade comum. Só em 1933, um vendedor de produtos para automóvel chamado Richard Hollingshead patenteou a ideia de um projecto de espaço construído propositadamente para que o público assistisse a filmes a partir do seu automóvel: um drive-in cinema.

Drive-in cinema Madrid
Shutterstock / Marta Fernandez Jimenez

O Autocine é um cinema ao ar livre que exibe filmes populares, com a linha do horizonte de Madrid ao pôr-do-sol. Dispõe de um restaurante e de "food trucks". Esta imagem foi registada no dia 17 de Abril de 2021, em plena pandemia de COVID-19. 

Contava Hollingshead – e há sempre algo de lenda nestas histórias de origem – que a sua anafada mãe tinha enorme dificuldade em instala-se nos lugares sentados de uma sala de cinema regular. Hollingshead, empático, decidiu criar um espaço exclusivo para a senhora: no seu quintal, usando um projector Kodak no capô do seu veículo, dois lençóis e duas árvores, tentou resolver o problema. Foi com o tempo testando diferentes adaptações: os níveis de som, com ou sem janelas abertas; a colocação de rampas defronte dos carros, para impedir que a vista dos espectadores ficasse bloqueada com os veículos à frente; e claro, o espaço necessário entre cada carro. Quando ficou satisfeito com a ideia, propôs-se a patenteá-la em Camden, New Jersey, em 1932, sendo que a aprovação só surgiu no ano seguinte.

Em 1933, Richard Hollingshead patenteou a ideia de um projecto de espaço construído propositadamente para que o público assistisse a filmes a partir do seu automóvel. Um drive-in cinema.

O primeiro drive-in da história surgiu então em Pennauekn, New Jersey, em 1933, com a comédia “Wives Beware”. Hollingshead arranjou um chamativo slogan “Toda a família pode vir, independentemente do quão ruidosas são as crianças”. Não deve ter sido muito chamativo, já que a empresa deu prejuízo. O empreendedor, no entanto, vendeu o conceito a um empresário de Union, no mesmo estado, que construiu aí uma infra-estrutura semelhante, e eis que o drive-in se começou a popularizar. A patente foi levantada em 1949 e, em 1958, no auge desta moda, havia 4.063 nos EUA, quando o uso de colunas de som em carros também era já generalizado.

Estabelecido em 1947 no estado de Ohio, o mítico drive-in cinema "Blue Sky"
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Estabelecido em 1947 em Wadsworth, no estado de Ohio, o mítico drive-in cinema "Blue Sky" continua operacional, com "Barbie" e "Blue Beetle" em exibição neste momento. Neste registo fotográfico de Fevereiro de 2020, vemo-lo "fora de estação". 

Porque é que os drive-ins se tornaram populares?

Eram uma forma fácil de entretenimento para toda a família quando esta saía. A família instalava-se toda no carro, era possível trazer bebés sem incomodar os restantes espectadores e também fumar durante a projecção do filme. As décadas de 1950 e de 1960 marcaram também um crescimento drástico do uso do carro nos EUA, criando uma ligação umbilical entre donos e viaturas. Um carro era sinal de liberdade e, no contexto do cinema ao ar livre, ter um carro era como ter uma casa própria e privacidade que seria impossível conseguir de outra maneira. Além disso, acabavam por ficar mais baratos para o espectador e para os donos do projector, que tinham menos custos de manutenção. Havia outro aspecto mais… prático neste passatempo: era muito menos formal do que ir a um cinema. Não era necessário trocar de roupa ou fazer grandes planos. Bastava entrar no carro – se tivessem filhos e fosse de noite, estes até podiam ter pijama vestido – e simplesmente ir ver um filme.

CINEMA, ENTRE OUTRAS ACTIVIDADES

Os proprietários dos drive-in, na sua época áurea, foram também inteligentes o suficiente para conhecer os gostos e hábitos das suas audiências. Transformaram o gesto de ir ao cinema de carro num programa mais geral, num estilo de vida. No espaço do drive-in, havia máquinas que vendiam fraldas e aquecedores de biberões. Para os mais interessados na diversão e menos nos filmes, alguns dos estabelecimentos ofereciam espaços de mini-golf, piscinas e até a possibilidade de ficar em motéis cujas janelas estavam viradas para o ecrã e permitiam ver o filme confortavelmente deitados numa cama. Eram também usados estratagemas para atrair espectadores que iam desde concursos com prémios como viagens de balão ou de avioneta, a presença de actores para apresentar os filmes ou até a actuação de bandas musicais antes de começarem as sessões.

Um dos maiores espaços deste género, o Johnny All-Weather Drive-in, em Copiague, Nova Iorque, era tão grande que tinha o seus próprio restaurante e um serviço de trolley que transportava os espectadores de regresso aos seus carros. Compreende-se: gabava-se de poder receber 2.500 pessoas por noite e também uma tenda para os que preferiam ver filmes num ambiente mais climatizado.

Os jovens, em particular, apreciavam a experiência porque lhes dava privacidade para encontros mais escaldantes, consumo de álcool e drogas e serem livres de todas as maneiras que o espaço familiar não lhes permitia. É uma situação que podemos ver, por exemplo, no filme “Grease”, referido ao início. Também por este motivo o drive-in foi ganhando reputação de lugar imoral, mas também parte integrante da cultura popular dos EUA durante este período e até posteriormente.

Bucareste, Roménia, 2 Agosto de 2018. Espectadores à espera e a assistir no parque público Herastrau ao início do filme no ecrã de projeção do cinema ao ar livre.
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Bucareste, Roménia, 2 de Agosto de 2018. No parque público Herastrau, é projectado um filme numa sessão pública de cinema ao ar livre.

 

O CINEMA AO AR LIVRE, HOJE

O declínio do drive-in cinema acompanhou a mudança na maneira de ver filmes, do videoclube ao streaming, passando pelo Cinema 4DX 3D. A generalização das cassetes de vídeo tirou a necessidade premente de um escape de entretenimento que envolvesse toda a família e obrigasse a sair de casa. Muitos dos negócios eram também familiares e quando os donos morriam, os seus descendentes desinteressavam-se de lhes dar continuidade. Além disso, a necessidade de grandes investimentos para aumentar ou manter os drive-ins levou a que muitos fechassem, simplesmente porque ou se tornavam ultrapassados ou depois do investimento o lucro não era recuperado.

drive-in cinema voltou à ribalta com a pandemia de covid-19.

Alemanha, 30 de Maio de 2020.  No porto de Brake, drive in

Alemanha, 30 de Maio de 2020.  No porto de Brake, 26 quilómetros a montante do delta do Weser, durante a pandemia de COVID-19, foi montado um drive-in, com os filmes a serem exibidos num ecrã insuflável gigante. 

Muitos dos espaços que antes albergavam este género de entretenimento, alguns cujo uso levou inclusive à origem de pequenas vilas, tornaram-se locais de feiras ao ar livre, igrejas ou centros comerciais. Actualmente, existem à volta de 400 cinemas do género nos EUA. Em 2021, em plena pandemia, a rede MUVI abria em Riade, na Arábia Saudita, o primeiro drive-in cinema desde o levantamento da proibição da exibição de filmes no país. Na estreia, podia, acomodar, com a devida distância social assegurada, até 150 veículos. 

A projecção de filmes ao ar livre continua a ser muito popular noutros locais, como na Europa – existem, neste momento, em Frankfurt, Madrid e Roma, ou até na Ásia, onde estas estruturas estão a ter um rápido crescimento nos últimos anos. Em Portugal, no continente e ilhas, como referimos no início do artigo há sessões de cinema ao ar livre pelo menos até Setembro, a marcar o final do Verão.