Uma espantosa “cápsula do tempo” de um dos maiores desastres vulcânicos da história humana pode fornecer-nos provas convincentes do evento cataclísmico – e talvez os primeiros restos mortais das dezenas de milhares de pessoas que, provavelmente, nele pereceram. Entretanto, as primeiras evidências de um maremoto ocorrido na época medieval na região fornecem dados raros que podem ajudar-nos a perceber melhor o verdadeiro poder destrutivo dos maremotos que enfrentaremos no futuro.

Num artigo publicado em finais de 2021 na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, uma equipa internacional de investigadores apresentou evidências de um maremoto destrutivo que se seguiu à erupção de Tera (actual Santorini), uma ilha vulcânica no Mar Egeu, há cerca de 3.600 anos.

Estima-se que a erupção “super colossal” de Tera, categorizada como grau 7 no índice de explosividade vulcânica (em 8) tenha sido uma das mais destrutivas da história humana – alguns investigadores comparam-na com a detonação de milhões de bombas atómicas semelhantes à de Hiroshima.

Muitos estudiosos crêem que a memória colectiva traumática do acontecimento da Idade do Bronze, ocorrido em cerca de 1600 a.C., pode ser apreciada na alegoria de Platão sobre a cidade afundada da Atlântida, redigida mais de mil anos mais tarde, e que o impacto do acontecimento poderá ter ecoado nas Dez Pragas bíblicas. Akrotiri, uma cidade enterrada nas cinzas por Tera, é uma atracção turística popular frequentemente comparada com Pompeia.

Embora não existam relatos sobre a erupção e o subsequente maremoto, os investigadores modernos tentaram definir o seu alcance, bem como o impacto que teve na vida no Mediterrâneo na altura – sobretudo para os Minóicos, uma abastada potência marítima sediada na ilha vizinha de Creta, que entrou em declínio por volta da mesma altura, no século XV a.C.

Sítio da Idade do Bronze de Çeşme-Bağlararası, na Turquia, em 2015.
VASIF ŞAHOĞLU, UNIVERSIDADE DE ANKARA

Beverly Goodman-Tchernov, membro da equipa de investigação e Exploradora da National Geographic, inspecciona uma camada de cinzas no sítio da Idade do Bronze de Çeşme-Bağlararası, na Turquia, em 2015.

Desenterrando um maremoto

O artigo sobre Tera descreve a investigação no sítio arqueológico de Çesme-Bağlararası, situado na popular cidade costeira turca de Çesme, banhada pelo Mar Egeu, mais de 160 quilómetros a nor-noroeste de Santorini.

Desde 2009 que o arqueólogo Vasıf Şahoğlu, da Universidade de Ancara, na Turquia, dirige escavações naquilo que parece ter sido um próspero povoado costeiro ocupado de forma quase contínua desde meados do terceiro milénio até ao século XIII a.C. No entanto, ao contrário dos edifícios e estradas bem preservados de fases anteriores do sítio, os esforços de Şahoğlu concentraram-se numa área onde ele rapidamente encontrou o caos: paredes desabadas, camadas de cinzas, fragmentos de cerâmica e osso e conchas marinhas. Şahoğlu contactou colegas de várias especialidades que o ajudaram a compreender aquela confusão, incluindo Beverly Goodman-Tchernov, professora de geociências marinhas da Universidade de Haifa, em Israel, e Exploradora da National Geographic, que se interessa particularmente pela identificação de maremotos em registos arqueológicos e geológicos.

As assinaturas de maremotos do passado podem ser difíceis de identificar – evidências como edifícios em ruínas e incêndios também podem ter sido causadas por terramotos, cheias ou tempestades. Além disso, essas evidências podem desvanecer-se rapidamente com o passar do tempo, sobretudo em ambientes mais áridos, como é o caso da costa do Mar Egeu. Embora os impactos da erupção de Tera possam ser observados em locais muito distantes, como as plataformas de gelo da Gronelândia e os pinheiros da Califórnia, só foram identificados seis sítios físicos com evidências do maremoto causado por Tera, que atingiu todo o Mar Egeu, até à data e nenhum com a complexidade encontrada em Çesme-Bağlararası.

“Os maremotos são eventos predominantemente erosivos… não são eventos deposicionais, daí a nossa excitação quando os encontramos!”, diz Floyd McCoy, professor de geologia e oceanografia da Universidade do Hawai, Windward College. McCoy, Explorador da National Geographic que estudou a erupção de Tera e o maremoto, mas não participou no novo projecto, diz que esta investigação é “um grande contributo, não só para a investigação sobre depósitos de maremotos, mas sobre o seu significado e interpretação, sobretudo no que está relacionado com a erupção de Tera [da Idade do Bronze].”

Os investigadores estão a criar “listas de verificação” cada vez mais sofisticadas para procurar maremotos históricos, que também podem incluir assinaturas físicas e químicas de animais marinhos trazidos até Tera pelas ondas e padrões específicos dos depósitos de rocha e sedimentos. Em Çeşme-Bağlararası, por exemplo, foram encontrados aglomerados de marisco vindo do oceano encaixados nas paredes de edifícios desabados.

“É raro sentir-me realmente confiante sobre a interpretação de maremotos, sobretudo num ambiente árido, porque não temos muito com que trabalhar”, diz Jessica Pilarczyk, professora assistente de geociência e investigadora integrada de desastres naturais na universidade Simon Fraser University, no Canadá, que não participou no estudo de Çesme-Bağlararası. “Mas parece ser esse o caso e temos belíssimas evidências que eles conseguiram recolher e processar”.

Um fresco do palácio minóico de Knossos, em Creta
FOTOGRAFIA VIA PRISMATIC PICTURES / BRIDGEMAN IMAGES

Um fresco do palácio minóico de Knossos, em Creta. Os monóicos eram uma poderosa cultura marítima no Mediterrâneo da Idade do Bronze e a erupção de Tera prejudicou as suas rotas comerciais e infra-estruturas.

 

Tera — um desastre sem vítimas?

Um dos aspectos mais intrigantes da erupção de Tera é a ausência de vítimas: estima-se que mais de 35.000 pessoas tenham morrido no maremoto desencadeado pelo erupção do Krakatoa e foram propostos números semelhantes para o Egeu na Idade do Bronze.

Até agora, porém, conhecia-se apenas uma possível vítima de Tera: um homem enterrado por detritos em Santorini, que foi descoberto no decorrer de investigações realizadas no final do século XIX.

As teorias sobre a ausência de vítimas variam: pequenas erupções anteriores podem ter levado as pessoas a evacuarem a área antes da erupção cataclísmica; as vítimas podem ter sido incineradas por gases super-quentes ou morrido sobretudo no mar; ou podem ter sido enterradas em sepulturas em massa que ainda não foram identificadas. “Como é que um dos piores desastres naturais da história não tem vítimas?”, pergunta Şahoğlu. Goodman-Tchernov suspeita que, tal como os investigadores foram incapazes de reconhecer depósitos de maremotos no passado, também poderão ter descoberto vítimas do desastre de Tera e não ter estabelecido a ligação.

Em Çesme-Bağlararası, porém, os investigadores dizem ter praticamente a certeza de que encontraram uma vítima do evento: foram descobertos vestígios do esqueleto de um jovem abastado com sinais de traumatismo craniano, deitado de barriga para baixo, no meio dos destroços do depósito do maremoto.

Ondas de terror

Os investigadores determinaram que quatro vagas de sedimentos atingiram Çesme-Bağlararası ao longo de alguns dias ou semanas. McCoy, que crê ter havido quatro fases na erupção de Tera, achou isto particularmente interessante. Há muito que os investigadores se interrogavam qual das fases desencadeara aquilo que eles pensavam ter sido um único maremoto.

À medida que as águas recuavam entre as vagas de sedimentos, os sobreviventes parecem ter aproveitado a oportunidade para mergulhar no caos em busca de vítimas. Há um buraco escavado directamente acima do corpo do jovem: quem o escavou, porém, parou menos de meio metro antes de conseguir encontrá-lo.

Esta evidência de tentativa de resgate das vítimas do maremoto sugere uma preocupação com um enterro apropriado após o desastre, possivelmente em sepulturas em massa, com vista a reduzir as doenças no rescaldo.

Situando Akrotiri no tempo

Tradicionalmente, a erupção de Tera tem sido circunscrita a um período temporal conhecido como Tardo Minoico I A, associado à 18ª dinastia do Egipto, no século XVI a.C. No entanto, as datações de radiocarbono da madeira encontrada nas camadas de cinzas de Akrotiri datam de meados/final do século XVII a.C. – uma discrepância superior a um século. Isto causa dificuldades aos investigadores que tentam correlacionar as cronologias relativas das diferentes culturas que viveram na região do Mediterrâneo naquela altura e a forma como interagiram antes e após o desastre.

Segundo os investigadores, a erupção não pode ter ocorrido antes da data mais antiga obtida nos depósitos do maremoto em Çesme-Bağlararası — um grão de centeio encontrado junto aos restos mortais do jovem, cuja datação por radiocarbono é do ano 1612 a.C. A datação por radiocarbono de outros materiais está actualmente em curso.

Evidências raras

Evidências de um maremoto mais recente ocorrido na região oriental do Mediterrâneo – cerca de 2.300 anos após o evento de Tera – foram apresentadas na revista Geosciences. Goodman-Tchernov e o seu colega C.J. Everhardt, da Universidade de Haifa, descreveram a forma como um terramoto na falha continental do Mar Morto desencadeou ondas destrutivas que danificaram o antigo porto de Caesarea Maritima, na actual costa de Israel em 749 d.C.

As evidências foram encontradas num armazém portuário destruído durante o evento: a assinatura característica e caótica de um maremoto foi preservada pela actividade construtiva posterior no local.

Menos de uma dezena de sítios arqueológicos costeiros em todo o mundo têm depósitos de maremoto identificados, fazendo com que este estudo seja único, diz Goodman-Tchernov. “Só dispomos de cerca de um século de registos instrumentais sobre maremotos e talvez 20 a 30 anos de dados de satélite sofisticados, por isso, de muitas formas, não sabemos tudo o que acontece durante um maremoto.”

A geocientista acrescenta que a crescente perda de zonas-tampão naturais na orla costeira, juntamente com o aumento das pessoas que vivem junto à costa, está a tornar-nos mais vulneráveis. “Um maremoto ocorrido há cem anos vai ser muito menos perigoso do que um maremoto que aconteça hoje.”