Quando os portugueses entraram em contacto com a China, no início do século XVI, identificaram imediatamente uma classe de pessoas com autoridade sobre as restantes. Chamaram-lhes mandarins, devido a uma confusão entre o verbo mandar e uma série de palavras com um som parecido que, na Ásia, designam alguém com poder. Era com este termo que se referiam aos funcionários e magistrados que administravam o país em nome do imperador. O elevado número destes funcionários públicos e o seu poder surpreenderam os visitantes ocidentais, bem como o facto de os mandarins, longe de simples funcionários, serem letrados e eruditos ou, pelo menos, aspirarem a sê-lo. Muitos especialistas, preferem por isso falar em “letrados”.
No entanto, aquilo que mais admiração despertava era o método de selecção dos mandarins. Em contraste com a Europa, onde os cargos públicos dependiam do capricho do monarca, eram comprados ou transmitidos de pai para filho, na China existia um sistema de exames (keju) que permitia que todos concorressem em pé de igualdade e fossem escolhidos aqueles com mais capacidades. Em 1733, um observador europeu referia-se com inveja a um país onde “o mérito genuíno é a única qualificação para um posto”. Era um sistema muito antigo que remontava ao século VIII e alcançou o auge nas dinastias Ming (1368-1644) e Qing (1644-1911).
na ESCOLA a partir dOS QUATRO ANOS
Na China, ocupar um cargo público assegurava ao candidato e à sua família as mais altas vantagens e honras. Daí que muitos iniciassem a sua preparação na mais tenra idade. A educação de um aspirante a mandarim começava aos quatro anos, quando os rapazes começavam a estudar a difícil escrita chinesa, essencial para ocupar um cargo administrativo. Algumas raparigas também eram escolarizadas, mas sem qualquer esperança de ocupar cargos públicos. Além disso, apenas as famílias com alguns rendimentos podiam contratar um professor privado ou enviar os filhos para a escola.
A educação de um aspirante a mandarim começava aos quatro anos, quando os rapazes começavam a estudar a difícil escrita chinesa.
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Três gerações de mandarins da dinastia Qing. Pintura do século XIX.
Aos 8 anos, os alunos já recitavam passagens escolhidas da literatura chinesa: os chamados Cinco Clássicos e os Quatro Livros, de entre os quais se destacam as Analectas, de Confúcio. No total, tinham de decorar 431.000 caracteres. Escritos em verso para facilitar a memorização, eram ensinados de vinte a várias centenas por dia. O grau de motivação era alto, pois sabia-se que uma das provas obrigatórias dos exames imperiais era recitar e escrever algumas destas passagens completas, sem um único erro.
Uma corrida DE OBSTÁCULOS
A partir dos 15 anos, os alunos abandonavam a sua antiga escola para se dedicarem à sequência de exames que poderia levá-los ao topo. Existiam diversas academias em todo o país para preparar os candidatos para os exames: no tempo da dinastia Qing chegou a haver 7.000.
Nestas escolas, os alunos prosseguiam os seus estudos dos clássicos chineses e preparavam-se especialmente para a prova principal dos exames: a“composição em oito partes”, composta pela exposição de uma passagem das Analectas, de Confúcio segundo uma estrutura previamente fixada e imutável. Os críticos do sistema afirmavam que esta prova favorecia o formalismo e a mera repetição. Nas academias chinesas, como nas escolas de hoje, só se estudava “aquilo que sai no exame”.
A partir dos 15 anos, os alunos abandonavam a sua antiga escola para se dedicarem à sequência de exames que poderia levá-los ao topo
A dois em cada três anos era efectuada uma primeira selecção de alunos a nível distrital e, em seguida, na capital da prefeitura, onde se obtinha o grau de bacharel (tongsheng). Na mesma prefeitura, era organizado um exame trienal, que conferia o grau de licenciado (shengyuan ou xiucai). Estes exames não permitiam o acesso à administração pública, mas outorgavam privilégios honoríficos: os licenciados usavam uma túnica azul e um chapéu especial e não podiam ser condenados a castigos corporais pela justiça. Além disso, os que não fossem bem-sucedidos nas fases seguintes poderiam dedicar-se ao ensino, que lhe estava reservado.
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Insígnia bordada de um mandarim de sexto grau com uma garça. Dinastia Qing.
A etapa seguinte era a dos exames provinciais, realizados a cada três anos. Eram provas particularmente exigentes. Decorriam em recintos amuralhados, nos quais se distribuía um grande número de celas individuais, alinhadas umas atrás das outras, onde cada aluno fazia o seu exame.
As celas continham três tábuas móveis que o candidato usava como assento, mesa e estante. Não havia portas – apenas uma cortina. Por vezes, nem sequer havia tecto e algumas provas eram realizadas em pleno Outono… Os aspirantes deveriam ficar ali fechados três dias e duas noites sob a vigilância rigorosa dos guardas, que podiam revistá-los em qualquer altura. Tinham de dormir acocorados e não podiam levar consigo nada para além de comida e um bacio.
A “VOntade de um DRAgão”
Havia apenas uma maneira de passar: entregando um exame impecável, tanto na forma como no conteúdo. Segundo um famoso ditado, “para passar num exame é preciso ter a vontade de um dragão, a força de uma mula, a insensibilidade de um caruncho e a resistência de um camelo”. Os que conseguiam, recebiam o título de juren, graduado provincial. Estes felizardos comemoravam com os examinadores num banquete e eram recebidos triunfalmente nas suas terras natais. Não era caso para menos: o seu futuro como funcionários estava garantido.
Segundo um famoso ditado, “para passar num exame é preciso ter a vontade de um dragão, a força de uma mula, a insensibilidade de um caruncho e a resistência de um camelo”
A consagração do mandarim ocorria em Pequim. A cada três anos, era ali realizado um exame metropolitano, segundo o mesmo modelo que o provincial, ao qual se sucedia o Exame do Palácio, na presença do próprio imperador. Em contraste com o rigor das provas anteriores, aqui tudo era confortável e luxuoso. Os candidatos eram recebidos pelos funcionários imperiais, que lhes serviam chá e comida, nunca carregavam a sua própria bagagem e dispunham de todo o papel que desejassem. Os aprovados recebiam o título de doutor, jinshi, e passavam a integrar a elite dos altos funcionários do Império.
APROvADO AOS Oitenta AnOS
A fama de imparcialidade e rigor do sistema de exames chinês não é imerecida. Para evitar favoritismos da parte dos correctores, era feita uma cópia anónima do exame numa caligrafia diferente da do candidato e cada um era corrigido três vezes por pessoas diferentes. Não obstante, era habitual subornar os correctores, bem como apresentar recomendações, recorrer ao tráfico de influências ou até comprar o cargo. Os candidatos usavam todo o tipo de truques: falsificações, troca de provas, sinais e até cábulas minúsculas cosidas à roupa, das quais se conservam exemplares.
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Retrato do mandarim Jiang Shunfu. Século XV. Museu de Nanquim.
O sistema de exames imperiais era muito selectivo. Dos 10.000 ou 12.000 candidatos que se apresentavam a cada uma das provas provinciais, apenas 300 eram aprovados. Cerca de 15.000 aspirantes candidatavam-se aos exames imperiais, nos quais raramente eram aprovados mais de 200. Além disso, apenas um em cada 3.000 aspirantes alcançava o objectivo final. Alguns candidatavam-se uma vez após outra, razão pela qual era frequente os jovens aspirantes fazerem o exame lado a lado com candidatos com 40 ou 50 anos. Contava-se a história proverbial de um poeta, Liang Hao, que foi aprovado nos exames imperiais aos 82 anos, e um romancista do século XVIII menciona um homem de 50 anos que fez o exame vinte vezes até conseguir passar.
Cerca de 15.000 aspirantes candidatavam-se aos exames imperiais, nos quais raramente eram aprovados mais de 200. Além disso, apenas um em cada 3.000 aspirantes alcançava o objectivo final.
Muitos candidatos fracassavam. Alguns tornavam-se professores, mas outros tinham dificuldades em encontrar um trabalho alternativo com o tipo de formação que tinham recebido. Em "Os Mandarins", um romance de Wu Jingzi que retrata o mundo dos letrados em decadência do século XVIII, um humilde afinador de instrumentos musicais de 57 anos relata a sua vida: “fui aprovado no exame distrital aos 20 anos, mas, infelizmente, estudar tanto incapacitou-me para qualquer outro trabalho e fiquei cada vez mais pobre”.
Os suicídios não eram raros. A frustração também podia conduzir à rebeldia, como no caso do líder da revolta Taiping, em 1850, que resultou, por cinco vezes, na suspensão dos exames imperiais. O descontentamento e as críticas contra o tipo de formação propiciado pelo sistema de exames imperiais fizeram com que o governo chinês os abolisse definitivamente em 1905.