Uma gerente de escritório apercebe-se de que um serviço de streaming está a reproduzir a sua vida, usando um avatar de Salma Hayek, depois da actriz mexicana-americana ter vendido a sua imagem digital a Hollywood para ser utilizada em programas criados com inteligência artificial (IA). Eis o mote do primeiro episódio de cinco desta temporada.

Uma das várias estrelas do elenco, a par de Michael Cera e Aaron Paul, Hayek representa e é representada. A agência Reuters recorda, hoje, a propósito da estreia desta temporada, que a Writers Guild of America (WGA) entrou em greve no início de Maio, em parte devido à preocupação de que os estúdios começassem a utilizar a IA generativa, em vez de humanos, para escrever guiões

Cruzando ficção científica e distopia em formato antológico, "Black Mirror" estreou as suas duas primeiras temporadas na cadeia britânica Channel 4. Rapidamente aclamada quer pelo público quer pela crítica – chegando a merecer comparações com a série de culto dos anos 60 “A Quinta Dimensão” – é com a mudança para a Netflix, em 2015, que ganha o estatuto de fenómeno mundial.

 

Ao longo dos últimos 12 anos, muitas outras associações foram surgindo, desde fontes de inspiração para o argumento e cenários, à influência que teve na actualidade do entretenimento e da tecnologia. Deixamo-lo com seis momentos em que a carismática série de Charlie Brooker se cruza com o mundo real. 

(Nota: se não tiver visto os episódios anteriores da série, tenha em atenção que esta lista contém spoilers das primeiras cinco temporadas)


1. Espelho meu, espelho meu...

"Black Mirror ", em português "Espelho Preto" ou "Espelho Negro", faz referência ao reflexo que podemos ver nos nossos ecrãs: por um lado e em sentido literal, só quando estes estão desligados é que é possível esse reflexo, por outro, figurativamente, procuramos muitas vezes esse reflexo no conteúdo que consumimos. Charlie Brooker, o seu mentor, quis assim aludir à dependência tecnológica da sociedade dos dias de hoje.

2. Homenagem a obras clássicas da ficção científica

Os guionistas não só não escondem que foram influenciados por outros autores, como na quarta temporada brindaram os espectadores com várias alusões às suas fontes de inspiração: “USS Callister” é uma óbvia referência a "Star Trek", ainda que talvez não fique claro se é uma homenagem, uma sátira, ou ambas; “Metalhead” foi descrito por Steve O’Brien como "'O Exterminador Implacável' sem viagens no tempo", ou «O Predador sem bícepes»; “Black Museum” vai beber ao imaginário de Mary Shelley e “Crocodile” a Edgar Allan Poe.


3. Ponto de viragem na produção televisiva

Inicialmente as plataformas de streaming não tinham conteúdo novo, limitando-se a comprar direitos de transmissão de séries televisivas previamente emitidas em formato tradicional. Ao longo da década passada o panorama começa a dar ares de mudança nos Estados Unidos, com exemplos como o de 2013, quando a Netflix bate, entre outros, a gigante HBO na corrida por "House of Cards". Essa realidade chegaria a este lado do Atlântico dois anos depois, com a Channel 4 a perder "Black Mirror" para a plataforma norte-americana, um caminho de não-retorno na transfiguração da indústria do entretenimento doméstico.

4. Profecia ou Coincidência? 

Com a ascensão de figuras políticas populistas como Jair Bolsonaro, Donald Trump e Boris Johnson, conhecidas pelas suas personalidades não convencionais que dividem a opinião pública, houve quem se lembrasse de “The Waldo Moment” (2013). Nesse episódio, uma personagem de desenhos animados concorre a um cargo político, esbatendo a linha entre política e espetáculo. A campanha rompe os moldes tradicionais, numa mistura de discurso superficial, ideias pouco ortodoxas e meios audiovisuais para chamar a atenção dos eleitores. Apesar de ser dos episódios com uma recepção mais morna aquando da sua estreia, é muitas vezes citado como “assustadoramente premonitório” da chegada à política de personalidades mais polarizadas e polarizantes, incluindo perfis com poucas ligações à política tradicional, mas célebres no mundo do entretenimento. 

5. A arte a imitar a vida

Num futuro próximo, a validação nas redes sociais está intimamente ligada à gestão do dia-a-dia das personagens, com consequências práticas em todas as suas vertentes, incluindo saúde, dinheiro e bem-estar. Esta é a base do argumento de “Nosedive” (2016), um dos mais aclamados episódios da série. As críticas realçam o paralelismo com a emergência da cultura influencer e a crescente preocupação de uma fatia cada vez mais significativa da sociedade actual sobre a sua imagem pública e presença nas redes sociais. O sistema de crédito social chinês é aqui evocado.

6. A vida a imitar a arte

Em “Be Right Back” (2013), o marido de Martha morre num acidente de automóvel e esta, tentando minimizar a dor do luto, resolve utilizar um serviço de inteligência artificial (IA) que, numa primeira fase lhe permite conversar por mensagem com o marido falecido. Mais tarde, não satisfeita com a versão online, Martha acaba por fazer um upgrade ao produto: um andróide com a aparência física, voz, e até alguns traços da personalidade do marido. Ainda estamos longe da imitação física, mas o treino de IA para responder em texto imitando humanos já falecidos é real desde 2018 quando Eugenia Kuyda criou um chatbot para responder como um amigo que havia perdido. Um novo salto tecnológico parece estar perto: a Amazon anunciou o ano passado que a possibilidade de personalizar a voz da assistente digital Alexa para a de qualquer pessoa, incluindo pessoas já mortas, está para breve.