Lascas de pedra, pedaços de carvão, sementes carbonizadas ou ossos conservados num sedimento muito diferente daquele que cobre a superfície actual indiciam grandes viagens. Com frequência, são tudo o que resta da manufactura de instrumentos de pedra lascada, de lareiras acesas para vencer os rigores de invernos intermináveis ou o que resta de caçadas bem-sucedidas na pré-história. Espólios como estes são transportados regularmente para o Laboratório de Arqueociências da DirecçãoGeral do Património Cultural onde diferentes investigadores tentam extrair deles informações imprevisíveis. O puzzle pode demorar anos a montar e requer a utilização de diferentes ferramentas de trabalho. Mas, sem ele, não haveria arqueologia como a conhecemos.
Os ossos que integram a osteoteca provêm da preparação de esqueletos de espécimes actuais rigorosamente identificados para haver uma certeza absoluta daquilo que serve de base ao correcto reconhecimento dos ossos arqueológicos. Depois de preparadas centenas de animais (actualmente, há mais de 3.200 na colecção) entre robalos e corvinas, sapos e salamandras, lagartos e tartarugas, águias, toutinegras, avestruzes, lobos, linces, veados, ovelhas, toupeiras, ratos-do-campo e... tantos outros, verifica-se que os seus ossos são tão diferentes que, para conhecê-los, são necessárias distintas especializações.
Alexandre Vaz
1. Lebre-ibérica. 2. Lobo-ibérico. 3. Garrano do Gerês. 4. Flamingo. 5. Grifo. 6. Veado. 7. Atum-rabilho. Corço. 9. Lince-ibérico. 10. Lontra.
Há arqueozoólogos que se dedicam à osteologia dos peixes, como Sónia Gabriel, enquanto outros preferem passar horas à lupa binocular a identificar dentes e ossos de roedores e de morcegos; outros ainda dedicaram anos a estudar as consequências da domesticação observadas nos ossos de bovídeos e ovinos, como Simon Davis, um dos responsáveis pela criação da osteoteca. Cada animal resulta de milhões de anos de evolução e os seus ossos reflectem sucessivas adaptações que ditaram o seu sucesso em gerar descendência.
Nem todos os restos ósseos que chegam à mesa de trabalho podem ser identificados. Por vezes, estão de tal maneira fragmentados ou corroídos pelo tempo que a sua identificação não é possível.
Porém, se forem articulações proximais ou distais dos ossos ou dentes isolados, tudo é mais simples porque as colecções-índice estão organizadas por elemento anatómico em grandes tabuleiros como se fossem um catálogo de peças semelhantes.
Mariana Nabais está há mais de uma hora obstinada com o coracóide de um pato. Os anatídeos são um grupo que engloba muitas espécies com ossos semelhantes. Por fim, após retirar algumas medidas com uma craveira, faz-se luz. A osteometria permite separar espécies idênticas e, quantos mais exemplares de cada espécie estiverem representados, melhor se pode despistar variações interespecíficas. Quarenta e cinco esqueletos de grifo e nove de abutre-negro permitem agora distinguir osteologicamente estas grandes aves necrófagas, inconfundíveis com penas, mas cujos ossos das asas e das patas são muito parecidos no laboratório.
Alexandre Vaz
A osteoteca, hoje localizada num anexo do Palácio da Ajuda, em Lisboa, foi criada no ano 2000. Carlos Pimenta, que aqui trabalha desde o início, reorganiza uma das três gavetas de fémures pertencentes a aves não-passeriformes.
O telefone toca. Estamos em Março de 2005. Do outro lado da linha, Nuno Santos, então veterinário do Instituto da Conservação da Natureza e da Floresta, informa que tem dois lobos congelados, necropsiados dias antes – o Julião, envenenado, e a Peneda, que caíra num laço.
Dois dias depois, de luvas calçadas, batas vestidas, facas e bisturis em riste, ouvimos Marta Moreno comentar: “É sempre triste preparar animais que, apesar de protegidos por lei, continuam a ser mortos furtivamente.” Os seus esqueletos integram hoje a maior colecção de lobos-ibéricos da Península Ibérica. As histórias dos espécimes desta colecção começaram com frequência com um episódio trágico.
A paisagem protegida do Litoral de Esposende teve em tempos quatro arcas congeladoras repletas de aves mortas. O seu director contactou a osteoteca para saber se haveria interesse em preparar algumas antes de serem incineradas. O crude derramado pelo Prestige, afundado na costa da Galiza em Novembro de 2002, deixara um rasto mortífero na avifauna marinha e algumas espécies ali mortas não existiam na colecção de Lisboa. A sua junção ao acervo não apagou a catástrofe, mas o valor destes espécimes para a ciência foi um derradeiro contributo para conhecer melhor o mundo em que vivemos.
Espécies há muito extintas no nosso território deixaram marcas da sua presença em jazidas arqueológicas. Há cerca de cinco mil anos, o povoado calcolítico do Penedo do Lexim, perto de Lisboa, era sobrevoado por quebra-ossos e, na alcáçova do castelo de Santarém, no período islâmico, foi identificado um pelicano-crespo. Para casos como estes de difícil comparação, existem na osteoteca exemplares osteológicos trocados com instituições internacionais. Foi cedido um esqueleto de castor por uma instituição norte-americana e ossos de urso pelo Museu Finlandês de História Natural e de hiena pela Universidade Hebraica de Jerusalém. Continuam, porém, a existir lacunas na colecção para os grandes felinos do Plistocénico que ocuparam este território e que há muito se extinguiram, como o leão ou o leopardo.
Embora a osteoteca tenha sido criada para permitir a identificação taxonómica dos ossos recolhidos em intervenções arqueológicas, as colecções de referência têm sido utilizadas com outros fins, pois cumprem funções pedagógicas. Servem de apoio a estudos de impacte ambiental, como a aferição da mortalidade provocada pelas linhas eléctricas nas aves em zonas sensíveis para a conservação da natureza e são fonte de inspiração para fotógrafos e ilustradores.
Este projecto começou no dia 2 de Janeiro de 2000 no Instituto Português de Arqueologia que viria a extinguir-se anos depois. Arrancou com o novo milénio, abrindo uma janela que de então para cá tem motivado jovens estudantes a embrenharem-se no fascinante mundo dos ossos. Este património raramente figura nas vitrinas dos museus, quase sempre ocupadas com objectos feitos pela mão do homem, mas contribui para um mais correcto entendimento do meio natural que envolveu cada sítio arqueológico.
Muitos anos passaram. A “velha guarda” vai saindo por limite de idade, mas uma colecção osteológica nunca está concluída. Algumas espécies permanecem ausentes e várias ordens de peixes, aves e mamíferos estão precariamente representadas. Também as raças autóctones de bovídeos e caprídeos carecem de mais exemplares de referência. A Península Ibérica tem uma história fantástica e uma biodiversidade única. São alicerces robustos para fazermos do seu conhecimento a ponte entre o passado e o futuro que, inevitavelmente, passará por todos nós.
Artigo publicado originalmente na edição de Maio de 2023 da revista National Geographic (nº 266).