Frida Kahlo

Desde criança, Frida vivia num mundo de fantasia que nunca abandonou em adulta. Costumava brincar aí com a sua amiga imaginária. Na imagem, a pequena com uma das suas bonecas em 1913, com 6 anos. Fotografia: Alamy/Cordon Press

Sentada na terra do pátio, Cristina Kahlo observava a irmã de boca aberta. Conseguira colocar um gafanhoto verde de patas enormes num frasco de vidro e ensinava-o antes de voltar a soltá-lo, como as suas irmãs mais velhas a tinham aconselhado. Esta era uma das poucas lições dos adultos a que a pequena Frida prestava atenção: soltar os insectos que apanhava entre as plantas da Casa Azul de Coyoacán, o seu lar, para que voltassem a ser livres.

Frida não suportava viver fechada. À noite, quando se deitava entre os lençóis, esgotada depois de passar o dia a brincar, pensava na angústia que os escaravelhos, as formigas e as libelinhas, presos no frasco de vidro que partilhava com a sua inseparável irmã mais nova, deveriam sentir. Por isso, depois de Cristina os admirar, ela deixava-os ir com muito cuidado para que não magoassem uma pata ou as asas delicadas.

Enquanto as duas meninas se divertiam no pátio, as irmãs mais velhas Matilde e Adriana ajudavam a mãe nas tarefas domésticas. Embora os Kahlo gozassem de uma posição económica que lhes permitia ter pessoal doméstico, Matilde Calderón, a esposa de Guillermo Kahlo e mãe das meninas, queria inculcar-lhes a importância de saber cozinhar e de gerir uma casa da forma mais eficiente possível para que, quando se casassem, tivessem estas lições bem aprendidas. No México do início do século XX, as opções de futuro para as mulheres reduziam-se a encontrar um bom marido que lhes oferecesse a possibilidade de terem uma vida cómoda, uma casa confortável e um número aceitável de filhos. A ditadura de Porfírio Díaz chegava ao fim e os ventos da revolução começavam a infiltrar-se pelas brechas do longuíssimo mandato deste militar, que durou trinta anos.

Naquela época, as mulheres eram cidadãs de segunda, acompanhantes dos grandes homens poderosos do país, sem lugar próprio nem na política nem em nenhum outro âmbito relevante da sociedade. Por isso, Matilde queria que as suas quatro filhas aprendessem a ser donas de casa perfeitas, apesar de ainda se mostrar algo benevolente com as duas mais pequenas, Frida e Cristina, que conseguiam quase sempre escapulir-se. Do canto do jardim onde estava a brincar, Frida viu a porta principal abrir-se. Embora ainda não conseguisse distingui-lo, sabia que era o pai que regressava a casa após um duro dia de trabalho. Guillermo Kahlo chegara ao México somente treze anos antes vindo de Pforzheim, na Alemanha, e nesse período de tempo convertera-se no primeiro fotógrafo oficial do património cultural mexicano. Desde que começara a trabalhar, as encomendas governamentais não tinham deixado de entrar no seu estúdio e Guillermo poupara dinheiro suficiente para comprar um pequeno lote de terreno em Coyoacán, o bairro central da Cidade do México, onde construiria o lar da sua família. Em 1904, o casal inaugurou a Casa Azul, uma casa em forma de “u” na qual todos os aposentos davam para um pátio alegre e cheio de vegetação, que era o coração da moradia.

Frida Kahlo

Na Casa Azul, o feminino predominava. Em cima, Frida com as suas três irmãs em 1916: Matilde (em pé), Adriana (sentada ao centro) e Cristina (à esquerda).

Quando Frida chegou ao mundo em 6 de Julho de 1907, os Kahlo viviam há três anos nesta residência onde as mulheres reinavam. Matilde, a matriarca da família, cuidava de Maria Luísa, filha da primeira esposa de Guillermo, e de Matilde, Adriana, Frida e Cristina. Wilhelm Kahlo, que mudou o nome para Guillermo quando se estabeleceu no México, forjara um lar próspero e feliz apesar de ter começado sem um peso no bolso e de sofrer violentos ataques epilépticos. O futuro sorria aos Kahlo, tanto como a pequena Frida quando o seu pai atravessava o umbral da porta e se dirigia para ela com passos rápidos, pegando-lhe ao colo enquanto ela se agarrava ao seu pescoço. Era a sua filha favorita. Desde pequena, mostrava-se tão alerta e curiosa que se destacava entre as outras raparigas e Guillermo tinha uma predilecção por essa criatura de olhos escuros e brilhantes. “Frida é a mais inteligente das minhas filhas. É aquela que se parece mais comigo”, afirmaria algum tempo mais tarde.

Sem que a vissem, Matilde estava a observá-los da janela do salão. Frida era tão diferente das suas outras filhas… A sua rebeldia já lhe tinha dado muitas dores de cabeça, como quando se ria da homilia do padre a meio da missa dominical e tinha de tirá-la da igreja agarrando-lhe o braço com força para que não fugisse a correr. Mas Matilde sabia que, por detrás desses olhos cor de carvão, cintilava algo com uma força inusitada. O brilho da imaginação.

Para Frida, a fantasia era um modo de vida. Assim, adulterava sempre a sua data de nascimento e afirmava que viera ao mundo no mesmo ano em que rebentou a Revolução Mexicana: 1910. O México viu como os seus cidadãos se sublevavam numa revolução que mudou para sempre a sua história. Rebentaram vários levantamentos em diferentes partes do país, onde se formaram exércitos guerrilheiros que desafiaram os poderes estabelecidos. Dois desses movimentos eram liderados por heróis revolucionários tão conhecidos como Emiliano Zapata e Pancho Villa. Durante o Porfiriato, as classes menos favorecidas da sociedade (especialmente os jornaleiros das fábricas e os trabalhadores do campo) tinham visto as suas condições de vida piorarem ferozmente para que os estratos mais abastados gozassem de uma opulência sem precedentes. Por isso, o primeiro objectivo deste movimento nascido do povo foi retirar da presidência o militar que a ocupara durante trinta anos e colocar à frente do país um governo mais democrático, que se ocupasse da população até então explorada. Deste modo, após três décadas à cabeça da presidência do México, Porfírio Díaz foi derrubado e teve de exilar-se em França, pois a sua vida corria perigo.

Guillermo Kahlo não estava assim satisfeito com esta mudança política, pois o seu estúdio deixou de receber trabalho de um dia para o outro. Como fotógrafo do regime, o seu melhor cliente desaparecera e não só isso: os novos ocupantes do Palácio Nacional, a sede do governo do país, não tinham qualquer interesse em perpetuar o contrato com ele. Pouco tempo após o triunfo da revolução, os Kahlo passaram do dispêndio à poupança, de decorar a Casa Azul com móveis franceses sumptuosos a ter de vendê-los para pagar o sustento da família. Guillermo teve de hipotecar a casa e a sua situação económica e social mudou de forma drástica, afastando-o da prosperidade durante anos. De crenças religiosas profundas, Matilde era uma mulher eminentemente prática, pelo que depressa se habituou a esta mudança de estatuto. Além disso, tinha grande capacidade de poupança. Enquanto Matilde fazia malabarismos para enfrentar este novo horizonte económico e levar a família para a frente, Frida mantinha-se alheada de todas as mudanças. Com a sua fantasia, preferia conceber mundos maravilhosos cheios de aventuras ou amigos imaginários.

Frida Kahlo

Matilde em 1897.

Numa ocasião, a sua meia-irmã Maria Luísa, querendo provocá-la, disse-lhe que Guillermo e Matilde não eram os seus pais verdadeiros e que a tinham ido buscar a uma lixeira. Anos mais tarde, Frida recordaria como esta frase a impressionou tanto que inventou uma amiga imaginária com quem se podia isolar e esquecer a possibilidade de não ser filha natural dos seus pais. Brincava com ela no pátio, mas também no salão quando chovia lá fora e a mãe não a deixava sair. Frida era apenas uma criança e já encontrara na fantasia a forma de criar um mundo alheio a tudo o que não gostava: as reprimendas da mãe por não se comportar como uma senhorinha, as idas à igreja aos domingos, ver como os seus pais se angustiavam com a falta de dinheiro ou as brincadeiras maçadoras das suas irmãs.

Apesar de tudo, Frida era uma criança feliz. Bochechuda, com uma cabeleira comprida e espessa cortada acima dos ombros e uma franja direita que emoldurava o seu olhar traquina, nunca lhe faltava energia para subir a uma árvore ou para brincar durante horas com as irmãs e os amigos. Mexia-se com tamanha velocidade que os vizinhos brincavam dizendo que não corria, mas voava. Até que a vida lhe desferiu o primeiro golpe.

Um grito agudo atravessou o ar com a violência de um disparo. A pequena Frida Kahlo gritava de dor. Caíra no chão e não conseguia articular uma palavra, andar ou parar de chorar copiosamente. Com as suas pequenas mãos, agarrava a perna direita que permanecia imóvel, como se não lhe pertencesse. Não sabia o que estava a acontecer. Pela primeira vez na vida, enfrentava a dor cara a cara. Tinha apenas 6 anos.

Quando o médico informou os seus pais de que Frida tinha poliomielite, Guillermo e Matilde não podiam acreditar nas suas palavras. A sua pequena Frida, a menina cheia de energia que corria todo o dia pela Casa Azul, não poderia voltar a andar? O céu de repente ficou escuro como breu, ainda mais quando viram a filha deitada naquela cama de hospital, tão frágil e pequena.

Quando regressou a casa, os pais envidaram todos os esforços para que pudesse passar a longa convalescença no seu quarto. Nem a sua querida Cristina, a sua companheira favorita de brincadeiras, nem as suas irmãs mais velhas conseguiam fazê-la esquecer que não podia sair dali, que era uma prisioneira numa prisão de portas abertas.

Felizmente, a dor abrandava pouco a pouco e Frida ia descobrindo a sua salvação, a sua defesa face ao infortúnio quando este decidia encarniçar-se contra ela. Sempre que se aborrecia, brincava com uma nova amiga imaginária, uma companheira da sua idade que a distraía enquanto as irmãs estavam na escola. Frida recordaria esta fantasia da seguinte forma:

Na janela daquele que na altura era o meu quarto e que dava para a Rua de Allende, sobre um dos vidros mais baixos, eu soprava e com um dedo desenhava uma “porta”. Saía por essa “porta” na imaginação e, com grande alegria e urgência, atravessava todo o terreno que se via até chegar a uma leitaria que se chamava PINZÓN. Entrava pelo O de PINZÓN e descia intempestivamente até ao interior da terra, onde a minha amiga imaginária estava sempre à minha espera. Não me lembro da sua imagem nem da sua cor. Mas sei que era alegre, que ria muito. Sem ruído. Era ágil e dançava como se não tivesse peso nenhum.

A menina tinha criado outra Frida saudável, sem uma perna apunhalada pela dor ou presa a uma cama. Aprendera a viver na fantasia, que seria sempre uma parte importante dela. Frida começava a construir as suas asas.

Uma manhã, a menina decidiu não fugir pela porta que desenhava todos os dias com a sua respiração e tentou pôr-se de pé. Há semanas que estava deitada e estava decidida a não poupar esforços para se levantar. Pouco a pouco, deslizou até à beira da cama; primeiro, pousou a perna boa, a esquerda, um pouco trémula depois do longo período de repouso. Quando parecia que se segurava, tentou com a perna direita e não desanimou, nem mesmo quando um relâmpago de dor lhe percorreu o corpo todo ao apoiar o pé no chão.

Frida decidira que nesse dia se poria de pé e nada iria dissuadi-la, nem sequer a dor que sentia na perna quando a movia.

– Cuidado, minha filhinha!

Quando Matilde a viu de pé, não soube se deveria abraçá-la de alegria ou repreendê-la por tê-lo feito sozinha. Uma queda nesse momento da recuperação teria tido consequências fatais, mas, para seu espanto, Frida conseguira sair da cama e sustinha-se sobre os dois pés, um dos quais tão maltratado que parecia de uma daquelas bonecas de cartão das feiras.

– A sério que amanhã poderei andar? A Cris diz que não, mas ela não sabe nada…

– Amanhã tentamos, mas se não quer pregar mais sustos de morte à sua mamã, meta-se na cama.

Alguns meses mais tarde, começou a caminhar pouco a pouco, devagar, sempre segura por alguém e embora não fosse fácil voltar a pôr-se de pé, empenhava-se tanto que depressa conseguiu andar sozinha. A sua perna, a sua “pata” como preferia chamar-lhe, no entanto, nunca recuperou e ficou muito mais fraca e fina do que a esquerda.

pais de Frida Kahlo

A sua mãe Matilde e o seu pai Guillermo. Frida adorava os pais, de quem herdou a personalidade marcante e as suas inclinações artísticas.

Frida perguntava todos os dias à mãe quando poderia regressar à escola, mas não o fazia por ter saudades do que ali aprendia. A formação que as raparigas recebiam nessa altura era muito básica, uma vez que se pensava que as suas vidas estariam limitadas ao âmbito familiar, pelo que não era preciso educá-las intelectualmente em excesso. Aprendiam outro tipo de tarefas consideradas mais adequadas ao seu género. Apesar de as aulas não serem muito interessantes, a pequena tinha saudades das suas colegas de carteira, dos longos dias na rua, das brincadeiras em conjunto, das corridas nas praças. Quando a mãe a avisou que no dia seguinte voltaria à escola, Frida esqueceu os nove meses de clausura num abrir e fechar de olhos.

Com a ajuda das irmãs mais velhas, a menina tirou do armário a roupa que vestiria para voltar às aulas e colocou-a numa cadeira. Elas olhavam-na com ternura enquanto Frida preparava a sua pasta com cuidado para não se esquecer de nada, pois sabia que quando acordasse estaria demasiado nervosa. No dia seguinte, começaria novamente a sua vida, a sua antiga vida, a vida de que tanto gostava e cuja falta tanto sentira durante nove meses.

No entanto, quando entrou de novo na escola, as boas-vindas não foram como ela imaginava. Ao vê-la, alguns colegas correram para a saudar, mas a maioria preferiu troçar das botas ortopédicas que era obrigada a usar. “Coxa”, gritavam uns; “perna de pau!”, diziam outros. Para esconder a diferença, Frida chegava a calçar quatro meias que engordavam a sua barriga da perna, mas nem isso a salvava dos dedos que apontavam para ela. Também não eram suficientes os esforços físicos que fazia, como atravessar as ruas a pedalar a toda a velocidade na sua bicicleta, tão rápido que ninguém imaginava que tinha uma perna muito mais fraca do que a outra escondida por baixo das suas bombachas.

Frida devolvia os insultos com imprecações muito mais graves do que as que recebia; tanto assim era que os professores repreendiam-na quase todos os dias. Essa era a sua arma, a sua loquacidade contra a zombaria por um defeito físico que não tinha remédio.

A menina que anteriormente brincava com todos preferia agora ignorar o mundo inteiro. Não precisava deles para se divertir; aprendera essa lição durante os meses que tivera de passar na cama e colocá-la-ia em prática. Não a queriam no seu grupo? Frida retorquia que era ela que não queria brincar com eles. Entretinha-se de igual forma, sentada num canto soalheiro a desenhar no seu caderno as flores da trepadeira que subia pelo muro da escola ou a ler um romance infantil de que tanto gostava. Abstraía-se de tal forma que nem pensava naqueles que se riam dela. Alguns, para não se arriscarem a receber uma resposta ainda pior, nem sequer se atreviam a aproximar-se ou a interpelá-la.

Frida não era uma criança triste, mas solitária. Quando os outros lhe voltaram as costas, ela decidiu voltar-se também, mas para o seu interior. Estimulava a sua imaginação de tal maneira que não notava a falta de aceitação por parte dos colegas. Se ninguém queria navegar no seu barco pirata com ela, Frida sonhava com um enorme navio de madeira crepitante, com bandeira de caveira e velas negras, que semeava o pânico nos oceanos. Se nenhuma criança queria caçar escaravelhos mágicos, ela invocava a sua amiga imaginária e juntas procuravam o escaravelho com o abdómen mais brilhante.

Na sua imaginação, tinham começado a desfraldar-se as asas que a transportariam para longe de tudo aquilo de que não gostava. Nem a doença nem a rejeição conseguiam apagar a chama desta menina de olhos brilhantes, porque o seu olhar abarcava muito mais do que alguém podia imaginar.

Quando o pai entrou no quarto, Frida não conseguiu evitar um sobressalto. Já anoitecera e estava a aproveitar as horas que faltavam até se deitar para estudar. Estava tão concentrada que não ouvira os seus passos a aproximar-se, mas o susto passou-lhe de imediato quando viu que Guillermo sorria, pois isso no seu pai, que não era especialmente risonho, significava uma boa notícia: no próximo ano lectivo, estudaria na Escola Nacional Preparatória, a melhor de todo o México.

Para Frida, que acabava de completar 15 anos, a notícia era muito mais do que uma simples mudança: abriam-se novos caminhos à sua frente e, pela primeira vez, iria explorá-los sozinha. À semelhança do dia em que regressou à escola após a sua doença, a jovem escolheu a roupa para o primeiro dia de aulas com extremo cuidado: uma saia de pregas azul-marinho, um chapéu preto de palha com fitas longas que lhe caíam pelas costas e botas que dissimulavam a diferença de tamanho das suas pernas.

Quando entrou na escola vestida como uma estudante alemã, a presença desta nova aluna que queria claramente chamar a atenção não passou despercebida a ninguém. Nessa época, Frida era uma rapariga magra e baixita, com feições suaves que contrastavam com uns olhos negros enormes e escrutinadores. Os caracóis da sua cabeleira destruíam qualquer corte da moda, pelo que usava sempre o cabelo preso ou então solto e selvagem.

Quando desceu do eléctrico naquela manhã, após uma hora de trajecto entre Coyoacán e o centro do Distrito Federal do México, percorreu lentamente o caminho até à escola para gozar o momento: era a primeira vez que estava sozinha na cidade, sem os pais e sem as irmãs.

Era o seu primeiro momento de liberdade absoluta e a sua segunda oportunidade para fazer novos amigos, que não lhe recordassem constantemente as sequelas da doença que tivera.

E assim foi. Corria o ano de 1922 e a Escola Nacional Preparatória só começara a admitir alunas nas suas aulas dois anos antes. Um total de trinta e cinco raparigas estudava entre mais de dois mil jovens, pelo que era difícil que essas pioneiras passassem despercebidas. A escola ocupava o antigo Colégio de São Ildefonso, um imponente edifício colonial do século XVI que se convertera num dos mais relevantes do centro histórico do Distrito Federal, que nessa época era fustigado pelas manifestações não só estudantis, mas também de camponeses e operários. As forças revolucionárias tinham-se separado em duas facções: uma era encabeçada pelo presidente eleito, Álvaro Obregón, ao lado do governador Venustiano Carranza. Ambos estavam mais interessados nas exigências da burguesia do Norte do país do que no bem-estar das classes mais desfavorecidas. A outra, liderada por Emiliano Zapata, era muito mais radical e defendia os interesses dos camponeses. Quando os carrancistas venceram, o mal-estar dos zapatistas multiplicou-se, pois consideravam que os moderados traíam a Revolução.

Frida Kahlo

Na Escola Nacional Preparatória, Frida deu rédea solta à sua personalidade rebelde e carismática. Esta fotografia, tirada naquela altura, mostra a singularidade à qual sempre fazia jus. Frida posa vestida com um fato de homem ao lado da sua mãe e da irmã Cristina (ambas à sua esquerda) e de outros familiares em 1926.

No meio deste ambiente de mudanças quase tumultuoso, Frida sentia-se livre. Longe de casa, podia comportar-se como lhe apetecia, expressar as suas opiniões sem temer a censura religiosa da mãe ou as recriminações das irmãs, que eram muito mais contidas e tradicionais na sua forma de pensar. Herdeira do ateísmo do pai, via um horizonte político muito promissor para o país na Revolução, ao contrário da sua família que constatara como as suas finanças se desmoronavam desde o final do Porfiriato. Na Escola Nacional Preparatória, Frida pôde dar rédea solta à sua personalidade inquieta e rebelde, que sentiu reafirmar-se naquele ambiente estudantil. Estava tão segura de si que, pouco depois de começar o ano, decidiu dar outra volta ao seu aspecto e cortou o cabelo com um ar muito mais masculino, ao mesmo tempo que começou a vestir macacões azuis de trabalho como os utilizados pelos operários das fábricas. No primeiro dia em que se apresentou assim na escola, os cochichos percorreram os corredores à velocidade da luz.

Embora algumas mulheres tivessem começado a usar o cabelo muito mais curto do que as suas mães, que nunca se tinham atrevido a cortar as suas longas cabeleiras, não o faziam com um estilo tão masculino. E muito menos enfiadas num macacão de trabalho, como se fossem homens que ganhavam a jorna numa cadeia de montagem. O atrevimento de Frida ia muito para lá de uma simples forma de chamar a atenção: era uma declaração de intenções completa. Não queria submeter-se às convenções de género nem às modas da época. Queria ser única e que a reconhecessem dessa forma entre os demais. Era original e o seu valor não dependia de nada nem de ninguém que não fosse ela própria.

Certa manhã a caminho das aulas, enquanto devorava umas carnitas [carne de porco frita] que comprara numa barraca de rua, decidiu que não respeitaria uma das normas da escola que a aborrecia particularmente. Durante os intervalos, as alunas do centro tinham de ir para uma área reservada apenas às mulheres, uma ideia que agradara muito a Guillermo Kahlo, que proibira a filha de se relacionar com os colegas masculinos. Embora Frida tivesse ignorado a norma do pai desde o primeiro dia, respeitou a do centro durante várias semanas. Nesse dia, contudo, tudo mudou na sua mente. Não ia permitir que a separassem, queria ter a mesma liberdade de movimentos que os seus cuates [amigos] rapazes e não percebia por que tinha de permanecer isolada, como se fosse portadora de uma doença contagiosa.

Quando a professora Castillo, que era responsável pelo corpo discente feminino da escola, a descobriu passando os minutos entre as aulas com os seus amigos masculinos, ordenou-lhe de imediato e aos gritos que regressasse à companhia das suas colegas. Consciente de que estava a infringir uma norma, Frida olhou-a com as sobrancelhas levantadas, num gesto entre arrogante e surpreendido, enquanto mantinha as mãos nos bolsos dianteiros do seu macacão azul-marinho. Não pensava sair dali e fê-lo saber desta forma à sua professora, que se foi embora bufando de indignação pelo pouco caso que esta aluna rebelde, que parecia gostar de desafiar a autoridade, fazia dela.

Naquela altura, Frida fazia os estudos preparatórios para se matricular em Medicina. Manifestara há muito tempo a intenção de se dedicar a esta profissão, talvez pelo seu encontro precoce com a ciência médica ou pela sua curiosidade inata. No entanto, as restantes disciplinas do curso abriram-lhe outros mundos com os quais jamais sonhara. A obra de grandes autores como Alexander Pushkin ou Lev Tolstoi teve um impacte tão profundo nela que quis descobrir os restantes escritores russos. Outra das suas grandes descobertas foi a filosofia, sobretudo a obra de dois autores que se converteriam numa referência durante toda a sua vida: Immanuel Kant e G.W.F. Hegel.

Talvez porque o seu físico fora um obstáculo no momento de fazer amigos durante a infância, na Escola Nacional Preparatória, Frida fazia jus ao intelecto. Leitora voraz, de mente rápida e inquieta, depressa captou a atenção dos “cachuchas”, um grupo de rapazes e raparigas entre os quais fez amizades que a acompanhariam durante o resto da sua vida. Chamavam-lhes assim pelo tipo de bonés de pano que usavam e eram conhecidos pelo resto dos estudantes pela sua inteligência e pelas suas travessuras. Este grupo peculiar era composto por nove membros: Alejandro Gómez Arias, Miguel N. Lira, Agustín Lira, Manuel González Ramírez, José Gómez Robleda, Jesús Ríos y Vallés, Alfonso Villa, Carmen Jaime e Frida Kahlo. Sete rapazes e duas raparigas carismáticos que, apesar de provocarem tumultos nas aulas, mostravam uma avidez por aprender sem igual. Ninguém lera mais do que eles. Com o tempo, os “cachuchas” interessar-se-iam por áreas como a medicina, a advocacia, a literatura ou a história; todos eles destacar-se-iam na sua disciplina de eleição e alguns acabariam mesmo por se converter em eminentes intelectuais.

Frida entendeu-se de imediato com estes jovens rebeldes que, além do mais, a acolheram com entusiasmo. Jamais tinham conhecido pessoa mais descarada do que a nova aluna, que era também dotada da resposta mais pronta. Ninguém era mais rápido do que ela quando se tratava de dar uma resposta inteligente que pusesse o adversário fora de combate. Kahlo ingressou na Escola Nacional Preparatória para conseguir entrar na universidade, mas ali recebeu duas outras lições que não tinha imaginado. Por um lado, a lição da amizade. Sentia pela primeira vez o calor dos amigos, dos risos partilhados e das conversas intermináveis; agora fazia parte de um grupo que a respeitava e que valorizava a sua originalidade.

Por outro lado, a jovem familiarizara-se com as grandes obras da literatura, os manifestos dos pensadores mais ilustres e o legado dos artistas mais reputados. Dera dois passos à frente e jamais recuaria: o da fraternidade e o do amor à arte.

Todas as tardes, os “cachuchas” reuniam-se depois das aulas na Biblioteca Ibero-americana, conhecida como a Ibero. Apesar de estar situada num edifício solene, a antiga Igreja da Encarnação, eles conseguiam imprimir uma aura de intimidade às suas reuniões entre o labirinto intrincado de estantes pejadas de livros. A nave do templo era coroada por abóbadas de berço altas e estava ornamentada com bandeiras de todos os países ibero-americanos, tão leves que ondulavam com o sopro de vento mais subtil que passava pela porta.

Na Ibero, Frida e os amigos planeavam diariamente a sua próxima travessura, mas também flirtavam entre eles e, acima de tudo, liam com tamanha voracidade que, muitas vezes, os bibliotecários ignoravam o alvoroço que causavam. O seu passatempo favorito era descobrir o melhor livro da biblioteca e depois competir para ver quem o terminava primeiro. Pelas suas mãos passavam as obras de escritores mexicanos contemporâneos, mas também romances europeus e colecções de poesia de autores clássicos. Liam, liam, liam e, nos intervalos, urdiam algum plano para escandalizar os professores ou beijavam-se ao abrigo das sombras de algum recanto do edifício, Eram adolescentes e entregavam-se com o mesmo arrebatamento aos seus ideais e aos seus impulsos, às suas paixões intelectuais e amorosas. Frida, que era uma rapariga impulsiva, impetuosa e veemente, não demorou a converter-se numa das cabecilhas do grupo.

Dia após dia, e apesar da proibição do pai, Frida ia-se aproximando cada vez mais de Alejandro Gómez Arias. O jovem era filho de um médico chamado Gildardo Gómez, que tinha o cargo de deputado federal por Sonora, um dos trinta e um estados do México, mas defendia posições políticas muito mais inclinadas para a esquerda do que o seu pai.

casa de Frida Kahlo

Fachada original da Casa Azul, a casa de Frida. Aqui, durante a convalescença após o grave acidente, a jovem encontrou refúgio na pintura.

A espontaneidade e a vivacidade de Frida, assim como a sua inteligência, fascinavam-no. Os dois apaixonaram-se perdidamente, com essa entrega da adolescência e do primeiro amor. Sempre que se separavam, ainda que fosse apenas por alguns dias, escreviam-se cartas longuíssimas, nas quais Frida intercalava o relato da sua vida diária e da sua paixão por Alejandro com fotografias e desenhos nos quais deixava voar a criatividade.

Uma simples reprimenda escolar fazia Frida sentir tanto a falta de Alejandro que precisava de explicar-lhe por carta o que lhe acontecera e as saudades que tinha dele. Todas as manhãs percorriam juntos o caminho para a escola e o caminho de volta até ao autocarro, enquanto falavam de política, de literatura ou de filosofia, de mãos dadas e trocando carícias quando estavam longe dos olhares dos adultos. Para Frida, o tempo passava a correr quando estava com Alex, como lhe chamava. Para Alejandro, a coragem, a força e a energia que Kahlo irradiava quando se entregava a qualquer causa hipnotizavam-no, fosse ela entender a obra do filósofo Friedrich Engels ou descobrir a sexualidade, uma faceta pela qual Frida mostrou um interesse precoce, sobretudo em comparação com a timidez e o respeito que as raparigas da sua idade costumavam manifestar perante esta questão naquela época. Uma manhã, Alejandro foi esperá-la ao eléctrico mais nervoso do que habitualmente, pois tinha uma notícia que sabia que fascinaria Frida: Diego Rivera, um dos pintores mais conceituados do país, estava a fazer um mural na escola. Inicialmente, Kahlo não acreditou nas suas palavras; não lhe passava pela cabeça o que poderia estar ali a fazer o artista mais conhecido do momento do México. Vivera em Paris e em Itália, onde se relacionara com alguns dos pintores mais célebres da Europa, como Pablo Picasso. Quando regressou, Rivera aderiu a um programa de criação de murais patrocinado pelo governo mexicano, que arrancou precisamente no anfiteatro Simón Bolívar da Escola Nacional Preparatória, em Janeiro de 1922. Tinha 36 anos, mais do dobro de Frida.

A jovem subiu a correr as escadas que davam acesso ao anfiteatro para comprovar se era verdade o que Alejandro lhe contara, mas impediram-na de entrar pois o acesso ao recinto estava vedado aos estudantes enquanto o pintor ali estivesse a trabalhar. Frida ficou perto da porta e aproveitou um momento em que alguns assistentes do artista entraram para se colar e permanecer escondida entre as sombras. A partir de um canto do anfiteatro, viu como Rivera preparava o seu primeiro mural, intitulado A Criação, e ficou fascinada com a figura rotunda desse homem com um metro e noventa de altura e um apelativo excesso de peso. Vestia um fato escuro coçado, encimado por um chapéu Stetson de aba larga e calçava sapatos pretos enormes iguais aos que os mineiros usavam e que chamaram muito a atenção de Frida. Além disso, a sua forma de falar também irradiava um magnetismo inegável ao qual ninguém escapava. Quando Diego falava, toda a gente se calava e escutava.

A partir daquele dia, Frida fazia o possível por entrar às escondidas no anfiteatro todas as tardes depois de terminar as aulas. Ao abrigo das sombras, observava a forma como o trabalho do pintor avançava e gravava na mente todos os pormenores para depois os relatar ao resto dos “cachuchas”, que não eram tão ousados quanto ela. Aos pés do andaime estava sempre a mulher de Rivera, Lupe Marín, que muitas vezes servia de modelo ao marido e o acompanhava incondicionalmente nos seus trabalhos.

Um dia, levada pela impaciência, Frida decidiu dar um passo mais à frente: queria aproximar-se mais do mestre que aprendera a admirar todas as tardes, depois de o observar a trabalhar durante horas a fio. Pancadas fortes na porta interromperam Rivera, que continuava a pintar no topo de um andaime aparatoso, enquanto Lupe tricotava instalada numa poltrona do anfiteatro. A porta abriu-se e apareceu Frida, recortada no feixe de luz que emoldurava a entrada, decidida a todo o custo a ver a grande obra do pintor e pedindo autorização para isso. Diego descreveria na sua autobiografia como foi este primeiro encontro entre os dois, totalmente fortuito mas crucial para as vidas de ambos:

Tinha uma dignidade e uma autoconfiança pouco comuns e nos seus olhos ardia um fogo estranho […] Olhou directamente para cima. “Incomodá-lo-ia se eu o observasse enquanto trabalha?”, perguntou. “De modo nenhum, menina, tenho todo o prazer”, respondi. Sentou-se e observou-me em silêncio, os olhos fixos em cada movimento do meu pincel.

Com a sua resposta, Rivera deu o assunto por encerrado e, perante a estupefacção de Lupe, Frida atreveu-se mesmo a aproximar-se até aos pés do andaime para examinar a obra do artista de muito mais perto. Do esconderijo que utilizara até esse momento, só conseguia captar alguns dos pormenores coloridos e, na realidade, o que mais lhe interessava era o desenho, ver como o artista traçava na parede as linhas curvas e rectas que depois ganhariam vida. Essa magia da arte fascinava-a: transformar em realidade aquilo que antes só existia nos sonhos. Como ela fazia com as suas asas, criando-as quando precisava delas, para que deixassem de fazer parte apenas do mundo do imaginário.

Pelo seu lado, Lupe não conseguia desviar o olhar desta rapariga descarada cuja audácia e autoconfiança tanto tinham cativado Rivera. Embora todos os alunos desejassem ver o artista do qual todo o México falava, nenhum outro estudante ousara chegar a este extremo para se aproximar do trabalho do pintor.

A partir desse momento, às escondidas dos professores mas com a conivência de Rivera e da sua mulher, Frida começou a visitar o anfiteatro. Tanto que até se atrevia a convidar algumas das suas manas, as amigas mais próximas:

Se não fores uma cobardolas e uma medricas, dá uma escapadela até ao anfiteatro; o Génio Pançudo está a retocar o mural e prometeu explicar-nos o tema e dizer-nos quais foram os modelos daquela bagunçada toda.

A tua cuata [amiga].

Frida Pata de Pau de Coyoacán dos Coiotes

Tanto a sua amiga Adelina Zendejas, a destinatária desta nota, como os “cachuchas” estavam convencidos de que Frida exagerava quando lhes contava os seus encontros com Diego Rivera no anfiteatro da escola. Kahlo era uma jovem com uma imaginação tão desenfreada que conseguia transformar qualquer pequena anedota quotidiana num acontecimento muito mais épico, utilizando a fantasia e o seu domínio da linguagem. Nessa ocasião, contudo, não precisou de engrandecer o relato: não só passava horas junto do pintor mais conhecido do México, como Diego lhe falava com frequência sobre o mural que estava a pintar. Numa tarde soalheira e magnífica, Frida e Adelina trocaram a sua visita à Ibero por um encontro numa geladaria próxima para conversarem a sós. Enquanto percorriam as ruas do Distrito Federal, fantasiavam sobre o seu futuro e como se imaginavam daí a alguns anos. Já adulta, Adelina recordou numa entrevista esta conversa de quando ambas eram apenas duas adolescentes com a cabeça cheia de sonhos:

– Um dia vou ter um filho com o Diego

Adelina estacou abruptamente e abriu os olhos de par em par. Não conseguia entender que a sua amiga dissesse algo semelhante daquele homem com aspecto de rã gigante: confundira a admiração por um artista com arrebatamento. Ou assim esperava ela.

– Mas que dizes tu?! É um velho barrigudo, sebento, de aspecto horrível.

– Diego é bondoso, carinhoso, sábio e encantador.

– Não lhe disseste isso, pois não?

– Ainda não, mas um dia vou dizer-lhe e vou convencê-lo a “cooperar”. As gargalhadas das duas amigas arrancaram um sorriso a um vendedor ambulante de

Mas Frida e Adelina não repararam nele, pois estavam demasiado concentradas nos sonhos que pareciam impossíveis, apesar de o tempo vir a demonstrar que talvez não fosse bem assim.

As finanças dos Kahlo continuavam a desmoronar-se mês após mês. A Casa Azul permanecia hipotecada e não só se tinham esfumado as encomendas do governo, como apenas entravam no estúdio trabalhos de particulares, vizinhos ou conhecidos que precisassem de imortalizar algum momento importante das suas vidas. Frida ia muitas vezes ajudar o pai no negócio, uma vez que os Kahlo não podiam pagar o ordenado de um empregado, nem tão-pouco de um aprendiz. No entanto, a jovem cedo teve de procurar outras fontes de rendimento para contribuir para a economia familiar. Caso contrário, teria sido necessário abandonar os estudos e dedicar-se ao trabalho a tempo inteiro.

Apesar de o pai se ter empenhado em que a filha fosse uma das pioneiras na universidade mexicana, Frida sabia que o seu futuro corria perigo se os rendimentos continuassem a diminuir àquela velocidade. Queria ser uma das primeiras mulheres do México licenciadas em Medicina, quebrar as barreiras impostas ao seu género e franquear a entrada da universidade como uma estudante de pleno direito. Embora as mulheres pudessem prosseguir estudos universitários desde 1910, a verdade é que muito poucas o faziam, quiçá dissuadidas pela forte pressão social que ainda considerava mais apropriado que as mulheres se dedicassem à busca de um bom marido. Até finais do século XIX, nenhuma mulher concluíra o ensino secundário no México e os únicos estudos superiores que pareciam adequados para as alunas consistiam no Magistério. De facto, um ano antes de Frida se matricular na Escola Nacional Preparatória, a Secretaria de Educação Pública (SEP) lançara um apelo às mulheres para ampliar o professorado na tarefa de educar o país, sendo evidente o âmbito a que reduziam o seu desenvolvimento profissional. Apesar de haver escolas de artes e ofícios reservadas ao corpo discente feminino, as suas disciplinas não as preparavam em absoluto para desenvolver um trabalho do mesmo nível que o dos homens, uma vez que se centravam em ensinar-lhes tapeçaria, bordado ou costura, entre muitos outros trabalhos manuais.

Frida teve vários trabalhos: caixa numa farmácia, contabilista num armazém de madeiras ou trabalhadora a dias numa fábrica. Começou inclusivamente a estudar taquigrafia e mecanografia, iludida com a possibilidade de começar a trabalhar na biblioteca da SEP. Era tão feliz quando passava algumas horas com os amigos na Ibero que não imaginava nada melhor do que trabalhar num lugar repleto de livros. Gradualmente, o seu sonho de estudar Medicina foi perdendo o brilho. Naquela altura, Frida já tinha plena consciência de que os pais não podiam financiar-lhe uma carreira tão cara, nem sustentá-la durante os anos todos que teria de frequentar as aulas até concluir os estudos. O bolso dos Kahlo continuava a emagrecer todas as semanas, apesar das tentativas de Guillermo para impulsionar o negócio e das suas filhas para ganhar alguns pesos adicionais que aliviassem as dívidas que tinham contraído junto do banco e do hospital, onde compareciam com frequência devido à epilepsia de Guillermo. Além disso, Frida descobrira outras matérias que a fascinavam muito mais do que a anatomia ou a cirurgia. Não queria renunciar à literatura e muito menos à filosofia. E nem falar em abdicar de estudar arte! Estes novos horizontes que encontrara na Escola Nacional Preparatória tinham-lhe aberto um mundo novo que a entusiasmava.

Quando o pai conseguiu que um dos seus amigos, o próspero impressor Fernando Fernández, a contratasse como aprendiz de gravura, Frida correu a abraçá-lo para lhe agradecer. Este emprego significava muito mais do que um rendimento financeiro! Era a oportunidade de aprender a desenhar, de tocar na arte com as suas próprias mãos. Movido pelos interesses que a jovem Frida mostrava, Guillermo fizera o possível para que a filha pudesse ganhar alguns pesos com uma ocupação de que realmente gostasse. O impressor – da idade do seu pai – causou um grande impacte na jovem de 18 anos.

Fernando Fernández não poupava elogios ao talento de Frida, uma mulher esperta, solícita e com iniciativa que se entregava a cada trabalho com paixão, mas que também suscitava algum receio entre os colegas devido a um rumor que parecia ser realidade: Frida e Fernando mantinham uma aventura secreta. A relação durou apenas umas semanas, as suficientes para não atravessar as paredes da oficina e Guillermo Kahlo não se inteirar da deslealdade do amigo e do atrevimento da filha.

Uma chuva insistente envernizava o empedrado do centro do Distrito Federal do México desde a alvorada. Apenas um dia antes, essas mesmas ruas tinham amanhecido cheias de cor devido à celebração do 115.º Aniversário da Independência do México. Os novos ares políticos e democráticos que a Revolução mexicana trouxera tinham devolvido ao povo um sentimento reivindicativo da liberdade que havia conseguido após lutar ferozmente contra a colonização espanhola. O processo sangrento iniciara-se em 16 de Setembro de 1810, na povoação de Dolores, quando o pároco Miguel Hidalgo convocou os seus paroquianos para apelar à luta armada contra o domínio espanhol.

O acto acendeu a chama da luta pela independência, uma disputa que só terminou em 27 de Setembro de 1821, após onze anos de luta violenta. Todos os anos, os mexicanos relembram o “Grito de Dolores” com acções reivindicativas, discursos políticos e uma grande festa popular.

Era quinta-feira e restavam apenas vestígios da celebração do dia anterior. As ruas tinham recuperado o seu ritmo habitual, talvez um pouco acelerado pelos passos dos transeuntes que procuravam refúgio da chuva aborrecida debaixo das saliências das fachadas. A tarde chegava já ao fim quando o céu se abriu e o sol apareceu, tímido, entre as nuvens. Nesse momento, Frida Kahlo e o namorado, Alejandro Gómez Arias, correram de mãos dadas para o autocarro que os levaria até Coyoacán. A essa hora do dia, o veículo ia cheio de pessoas que regressavam a casa depois de um longo dia de trabalho. Comerciantes, professoras, operários, costureiras… Todos estugavam o passo para tentar arranjar um lugar sentado e os estudantes ficaram surpreendidos quando encontraram dois livres na parte traseira do autocarro.

Naquele dia de 17 de Setembro de 1925, o destino guardava um revés para Frida no cruzamento das ruas Cuauhtemotzín e 5 de Fevereiro. Por ali passava o eléctrico procedente de Xochimilco, um vagão metálico repleto de passageiros que chocou contra o autocarro. Após alguns segundos de angústia em que se dobrou como uma ferradura, o veículo de madeira partiu-se violentamente a meio.

A colisão fez que Alejandro deslizasse para baixo do veículo e sofresse apenas algumas contusões leves, meros arranhões cobertos pela roupa rasgada. Livrou-se imediatamente das ripas de madeira que tinha em cima e correu para comprovar que Frida estava bem. O horror, no entanto, invadiu-o mal a viu: o varão metálico do eléctrico soltara-se e atravessara Frida de um lado ao outro. Parecia a protagonista de uma oferenda cruel: uma jovem magra, com a pele da cor dos terrenos agrícolas e meio despida – a ferocidade do acidente arrancara-lhe parte da roupa – espetada por uma flecha titânica fendida na pélvis. Entre ele e vários homens conseguiram libertá-la e, segundo o relato de Alejandro, “Frida gritou tão alto que não se ouviu a sirene da ambulância da Cruz Vermelha quando esta chegou”. Como a própria Frida recordaria anos mais tarde numa entrevista: “Foi um choque estranho; não foi violento, mas surdo, lento e maltratou toda a gente. E a mim muito mais.”

Horas mais tarde, Frida agarrava-se à vida, sedada numa maca do bloco operatório do hospital. Apesar de os médicos avisarem que pouco poderiam fazer para salvá-la perante a gravidade dos seus ferimentos, aquela foi apenas a primeira das inúmeras operações a que a artista mexicana seria submetida.

Nunca mais voltaria a ouvir-se o eco dos seus passos rápidos de animal nocturno nos pavimentos encerados da escola. Frida, a rapariga que subia às árvores, tinha de ir novamente em busca das suas asas para escapar ao calvário da realidade.

Fracturas na terceira e quarta costelas, mais três na região lombar, uma clavícula partida, o ombro esquerdo fora do lugar, onze fracturas na perna direita, esmagamento e deslocação do pé direito e a pélvis partida em três pontos distintos. Nem o próprio médico que cuidava dos pais de Frida acreditava na longa lista de lesões da jovem, que teve de ser encerrada numa espécie de sarcófago de gesso que envolvia totalmente o seu tronco para que os ossos sarassem.

Mais uma vez, aquilo que Frida mais temia voltava a invadi-la: a dor e a clausura. Porque as conhecia, porque as sentira na pele quando era apenas uma menina irrequieta e jurara que nunca mais passaria por isso. Quando os pais ou as irmãs a visitavam no hospital, tentava tirar forças da fraqueza e mostrar-se firme, até divertida quando os medicamentos faziam efeito e conseguiam afastar a dor por um momento. Frida odiava estar sozinha e, apesar de os médicos lhe dizerem que tinha de ter paciência, tinha cada vez mais saudades da família, de casa e dos amigos. Os “cachuchas” visitavam-na de vez em quando, mas não tantas vezes como ela desejaria. Felizmente, Alejandro passava algum tempo com ela quando as aulas permitiam e, anos mais tarde, ainda recordava uma frase impressionante que Frida lhe disse num dos dias que foi vê-la: “Neste hospital, a morte dança à volta da minha cama à noite.”

Tudo mudou quando os rumores chegaram aos ouvidos de Alejandro: Frida mantivera uma relação com Fernando, o director da oficina onde trabalhava. Magoado pela traição, espaçava cada vez as visitas ao hospital, apesar de ela lhe suplicar por carta que a perdoasse e lhe jurar repetidas vezes que só o amava a ele.

Nesta mesma correspondência. Frida contava a Alejandro e aos seus cuates [amigos] as torturas duríssimas a que a submetiam com o objectivo de curar os seus ossos partidos, mas com resultados muito dolorosos e sem que ela notasse quaisquer melhorias. Em vez de descrevê-las pormenorizadamente com a crueza que implicavam, Kahlo envolvia-as na sua ironia e sentido de humor, da mesma forma que chamava “velharia” aos familiares e vizinhos de Coyoacán que iam vê-la ou se lamentava por não poder sair do hospital, visto que toda a vida fora uma “rueira de todo o tamanho”.

Queria voltar a conquistar Alejandro e não se importava de implorar pelo seu perdão em cada carta que escrevia. Tinha saudades da sua companhia; sentia-se tão sozinha e presa naquele hospital da Cruz Vermelha que fez todos os esforços para deixá-lo para trás e melhorou a passos largos.

Os três meses que os médicos inicialmente pensaram que o internamento de Frida duraria reduziram-se a um. Em 17 de Outubro, um mês exacto depois do acidente, a jovem regressava a Coyoacán numa ambulância. Não imaginava, porém, que a sua nova prisão não a aproximaria do seu amor; pelo contrário, afastava-a ainda mais. Ainda ferido pela traição, Alejandro foi vê-la com tão pouca assiduidade à Casa Azul que, nas cartas de Frida, a tinta da caneta misturava-se com as lágrimas que lhe escorriam pelo queixo:

Quero que venhas conversar comigo como antes, que te esqueças de tudo e por amor da tua santa mãe me venhas ver e me digas que me amas mesmo que não seja verdade.

Alejandro, no entanto, preferia manter-se afastado de Frida, pelo menos enquanto aclarava as ideias. Percorreu a distância que separa o centro do Distrito Federal de Coyoacán em poucas ocasiões.

Frida passava demasiadas horas sozinha. As irmãs só chegavam à tarde e a mãe estava sempre ocupada com as tarefas da casa. O pai, muito angustiado com as despesas médicas crescentes, passava cada vez mais tempo no estúdio e a jovem desesperava, longe dos amigos, de Alejandro e de qualquer tarefa que a ajudasse a esquecer a dor por um momento. Quando os calmantes funcionavam, Frida entretinha-se a pensar em tudo o que iria fazer quando voltasse a andar: encontraria um bom emprego no centro que lhe permitiria ver Alejandro e os amigos diariamente, além de ajudar a família que agora tinha de fazer frente a mais facturas médicas do que aquelas que podia assumir. Apesar de ter pouco apetite, pedia aos colegas da escola que lhe trouxessem doces, talvez na esperança de recuperar tudo aquilo que a fazia feliz antes de aquele eléctrico se atravessar no seu destino.

Frida refugiou-se de novo na fantasia para fugir da realidade: voltou a desdobrar as asas que a faziam voar para muito longe do quarto, do colete de gesso e daquela cama cujas barras pareciam de uma cela. Fazia planos para quando recuperasse por completo, apesar de poucas pessoas acreditarem que voltaria a andar. Ela sabia que conseguiria fazê-lo, que apesar de aquele acidente ter lesionado o seu corpo, não faria o mesmo com a sua felicidade.

Certa tarde, Matilde regressou a casa carregada com uma série de ripas de madeira e entrou directamente no quarto da filha:

–  O que é isto, mamã?

– Espera e já verás.

Matilde estava a armar as tábuas de madeira sobre o colo da filha enquanto Frida a olhava espantada.

–  E os óleos do papá?

– Cris disse-me que os tinha deixado ali em cima da cómoda. De repente, o rosto da jovem iluminou-se.

–  Então… é um cavalete?

Matilde sorriu e acariciou a face da filha, tão magra que parecia novamente uma criança.

– Mandei-o fazer para ti. Desta forma, poderás pintar deitada na cama e não te aborrecerás tanto.

A partir daquele momento, os longos dias de Frida ficaram mais curtos. Nunca pintara um quadro, só se atrevera a fazer pequenos esboços em cadernos, talvez algum desenho com um pouco mais de propósito quando trabalhava na oficina de Fernando. Mas agora tinha todo o tempo do mundo para dar cor às suas criações, para dotá-las de vida e de relevo. “Sem prestar muita atenção, comecei a pintar”, recordava nas suas entrevistas. Todos os dias, quando a luz da manhã começava a inundar o quarto, descobria que as telas eram uma janela que olhava para um mundo onde a realidade não conseguia magoá-la. Pegar nos pincéis equivalia a adormecer essa dor monstruosa que a dilacerava do pescoço aos pés.

Começou por pintar as irmãs, assim como os seus saudosos “cachuchas” que recordava com tanta ânsia que podia pintar de memória. Expressava o que a rodeava, mas também aquilo de que tinha saudades. Reflectia uma realidade na qual as pessoas de quem gostava eram belas. Mas também se pintava a ela própria, segundo confessaria mais tarde por duas razões: “Porque passo muito tempo sozinha e porque sou o motivo que melhor conheço.”

Descobrira que na mais profunda tristeza e na mais pura das dores podia germinar a semente mais maravilhosa: Frida, a sobrevivente, Frida, a pintora, acabava de nascer.