Identificado em 2001, é uma estrutura única em portugal e remete para o período decisivo do século xii em que Ibn Qasī e Dom Afonso Henriques forjaram uma aliança poderosa.

O Ribāt da Arrifana constitui o mais impressionante e historicamente importante conjunto religioso islâmico no Ocidente da Península Ibérica. Trata-se de um sítio quase mítico, mencionado por historiadores e geógrafos muçulmanos, ligado ao mestre sufi, estadista e escritor Ibn Qasī. Entre os textos que o citam encontra-se o de Ibn al-Abbār (1199-1250) que no relato que faz da vida de Ibn Almúndir, um dos mais directos seguidores de Ibn Qasī, menciona que aquele se retirou para o “mosteiro da Arrifana” situado na “orla do mar”. Yaqût, no século XIII, refere a região de al-Rihana que diz situar-se na costa, a norte do cabo do Algarve, hoje de São Vicente. Na história moderna, Alexandre Herculano foi o primeiro a valorizar a figura de Ibn Qasī considerando-o aliado de Dom Afonso Henriques, que lhe terá oferecido um cavalo, uma lança e um escudo, reconhecendo-o por isso como seu par. 

Ao longo dos anos, vários investigadores tentaram localizar o Ribāt no interior do Castelo de Aljezur e na fortaleza hoje chamada da Arrifana, edificada em 1635 a norte da Praia do Forte. Todavia, apesar de referências que desde o século XIX indicam a existência de ruínas na chamada Ponta da Atalaia, o Ribāt da Arrifana foi identificado, apenas em 2001, pelos autores, em península incluída na zona outrora chamada Arrifana. Dali é visível, em dias de céu limpo, o cabo de São Vicente tal como, no sentido oposto, se pode observar largo trecho de costa que atinge o cabo Sardão, no Alentejo. O topónimo actual deriva do facto de o minarete existente junto do muro de orações, situado na extremidade daquele local, ter sido transformado em atalaia no século XIV, subsistindo até ao século XVIII.

Várias campanhas arqueológicas ocorridas desde a sua identificação conduziram à descoberta de edificações, erguidas em pedra e taipa, entre as quais nove mesquitas (todas com o respectivo mihrāb orientado para Meca), tal como restos de minarete, muro de orações, vasta necrópole e outras instalações que permitiram reconhecer o local como o famoso Ribāt da Arrifana, fundado pelo mestre sufi Ibn Qasī. 

Este terá iniciado o seu movimento político-religioso e criado o Ribāt da Arrifana em data próxima a 1130, junto de importante alcaria ou mesmo de lugar santo, tendo em vista tanto a propagação dos princípios sufis como da sua própria mensagem espiritual, que conduziria à fundação de um estado teocrático. 

A localização do Ribāt da Arrifana corresponde a uma estratégia religiosa e político-militar de ocupação de uma “zona de fronteira” tanto entre muçulmanos e cristãos como intermédia do mundo material com o espiritual, significativamente no encontro da Terra com o Mar – no fim do mundo de então. O chão sagrado do Ribāt situava-se afastado dos principais centros de poder almorávida e almoada, sediados em Silves e/ou Faro, contra os quais Ibn Qasī combateu no contexto da guerra santa (djihād). 

A importância histórica do sítio advém não só do facto de ser o único ribāt por ora conhecido no actual território português e do qual se sabe o nome do fundador e a data de construção e de abandono, como do protagonismo histórico do que representa. De facto, apenas é conhecido na Península Ibérica outro ribāt, o de Guardamar na costa levantina, mais antigo em cerca de uma centúria. Contrariamente ao que acontece com aquele último, não só conhecemos o nome como parte da vida e obra do fundador do Ribāt da Arrifana, sendo possível deduzir os firmes propósitos da sua fundação, em termos estratégicos e ideológicos ou as causas do seu abandono e destruição, através de factos bem balizados, de teor histórico e cronológico, cruzando-se a informação escrita com a arqueológica.

Os testemunhos arqueológicos indicam que o Ribāt da Arrifana era protegido por um longo muro, de que foram escavados dois sectores, individualizando-o, claramente, e à península onde foi instalado, do território adjacente. Aquele complexo organizava-se, segundo os dados disponíveis, em quatro núcleos de edificações, que mostram planeamento e hierarquização. 

Assim, identificou-se a zona por onde se fazia o ingresso no Ribāt, mais próxima do mundo profano, possuindo um grande pátio, muito possivelmente uma escola corânica (madrasa), três mesquitas e outras edificações anexas no lado sudeste, onde se faria a iniciação na doutrina sufi da comunidade.
A nascente das estruturas mencionadas, reconheceu-se uma necrópole, de que foram postas à vista sessenta e cinco sepulturas, sete das quais integralmente investigadas. Estas possuem planta rectangular, mas de diferentes dimensões e constituição, encontrando-se algumas adossadas às qiblas (a parede onde se abre o nicho sagrado ou mihrāb) das mesquitas referidas. 

As sepulturas eram assinaladas por tumuli muito baixos, de terra e limitados por muretes de pedras, tal como por pequenas estelas anepígrafas, salvo dois exemplares que oferecem longos textos. Estes encontravam-se ainda erguidos in situ. Identificou-se também uma edificação na zona norte da necrópole, provida de bancada, depósito para água e tina, escavada no solo, apresentando o chão e as paredes bem revestidos com massa: o espaço terá servido para lavar e preparar os mortos para a inumação.

Para ocidente, em zona onde a península da Atalaia estreita, descobriu-se um complexo de construções, formado por quatro mesquitas, uma das quais com grandes dimensões, e um grupo de “vivendas”. O conjunto permitia controlar a passagem para o espaço interior do Ribāt, também defendido pelas altas falésias envolventes, sugerindo que seria o ponto com maior actividade. 

Na restante área, identificámos, no lado sul, uma mesquita com anexos num relevo sobranceiro ao mar e, por certo, ocupada por uma personagem destacada, assim como um conjunto de edificações na extremidade da Ponta da Atalaia. Essa zona debruçada sobre o oceano correspondeu ao lugar mais sagrado do Ribāt, ali se tendo descoberto os restos de um “muro de orações” constituindo, muito provavelmente, a primeira construção daquele espaço. A pequena mesquita nas imediações pode ter sido a utilizada pelo mestre, dada a importância simbólica do sítio que ocupa, como pelo facto de junto se encontrar o minarete, de onde os fiéis eram chamados cinco vezes ao dia para fazerem as suas orações. Deveria igualmente funcionar como torre de vigia da costa, função que manteve, mais tarde, com a ocupação cristã. 


Ribāt da Arrifana

Conforme sempre acontece em zonas de habitat, também o espólio exumado no Ribāt da Arrifana traduz aspectos da vivência dos seus ocupantes, comunitária e particular, os monges-guerreiros ascetas (os murābitūn), ali congregados em torno do líder espiritual e político. Predomina o acervo cerâmico relacionado com as actividades quotidianas como a confecção de alimentos, vasilhas de armazenamento, contentores de fogo, assim como outros recipientes .
A singeleza formal e decorativa responde aos ideais do sufismo, sendo raras as peças esmaltadas ou vidradas e coexistindo numerosos exemplares montados a torno lento. Estes materiais reflectem a prática contra o que o mestre chamou de “egoísmo do estômago”, ou seja o apelo à frugalidade alimentar, aos jejuns rituais e à ascese. 

Além dos recipientes mencionados, não identificámos peças específicas do ritual religioso, como pias de abluções, embora outras vasilhas pudessem ter sido utilizadas com aquelas funções, conforme verificámos em relação a um alguidar e uma panela, encontrados esmagados junto do acesso a uma das mesquitas. As cerâmicas oferecem uma cronologia centrada em meados do século XII, concordando com a datação do local, assim como com o seu período de maior actividade.

Outros artefactos ajudam à reconstituição do que seria a vida quotidiana no Ribāt, onde além de se prepararem as refeições, nas quais o pão teria papel central na dieta alimentar, também se manufacturavam tecidos ou consertavam armas de ferro, cotas de malha, de bronze. Pequenos rolos de chumbo, lucernas incluídas nas paredes de mesquitas e pequenas placas de pedra com inscrições de carácter religioso reflectem as actividades decorrentes das principais funções de um ribāt

É possível que os murābitūn fossem acompanhados por mulheres, talvez em parte encarregadas da alimentação e da tecelagem, embora pudessem também combater, conforme a tradição sobretudo difundida em tempos almorávidas, com antecedentes peninsulares.

Os vestígios de alimentos recuperados apresentam larga predominância de moluscos marinhos, a par de algumas peças osteológicas de mamíferos e de aves, onde se incluem raras espécies cinegéticas, designadamente de veado. Na caça e talvez na guerra, os murābitūn terão sido auxiliados por cães, cuja existência se encontra patente, nos restos faunísticos, através das marcas dos seus dentes.

Os testemunhos mencionados revelam uma economia de subsistência, pouco diversificada, certamente complementada por vegetais e, sobretudo, pão, resultante da exploração agrícola dos terrenos vizinhos, onde correm linhas de água, talvez da responsabilidade de parte da comunidade instalada no Ribāt

A partir das sepulturas escavadas integralmente e do que se conhece para o mundo islâmico peninsular, sabemos que os cadáveres, depois de lavados e envoltos em mortalhas, eram depositados na fossa funerária e orientados na direcção de Meca. A fossa funerária possuía dimensões estritamente necessárias à colocação do corpo. O estudo antropobiológico, da responsabilidade de Nathalie Antunes-Ferreira, dos restos de sete indivíduos, permitiu considerar que cinco eram adultos, do sexo masculino, um era uma criança, com aproximadamente 12 anos, cujo género não foi possível determinar, e o outro corresponde a uma mulher jovem. Em nenhum dos testemunhos osteológicos foram detectados sinais evidentes de violência física, capazes de provocarem a morte, traumas ósseos severos ou infecções que a causassem. A análise daquele espólio confirma a dieta alimentar pobre em vitaminas e ferro, facto que os restos alimentares amontoados no ribāt confirmam, tendo em atenção a pouca carne e peixe ali consumidos e o enorme peso de moluscos marinhos e estuarinos.

Das estelas associadas às sepulturas, encontradas in situ, facto raro na arqueologia islâmica do al-Andalus, duas ofereciam epígrafes. Uma delas continha texto em árabe cúfico, organizado em oito linhas que informam tratar-se da sepultura de Ibrāhīm ben ‘Abd al-Malik, falecido em 1069. A outra, também, em escrita cúfica simples, indica que ali foi sepultado um filho de Ibrāhīm ben Solaymān ben Hayyān, falecido em 1148. 

Ibn QAsī e a comunidade por ele criada situam-se no cerne do choque ideológico entre sufis, almorávidas e almoadas e menos no cenário de confronto entre cristãos e muçulmanos então em curso. A djihād pregada pelo mestre da Arrifana tinha como objectivo todos os inimigos da fé islâmica: cristãos, moçárabes, judeus e, principalmente, muçulmanos considerados hereges. A sua formação e origem social, sendo natural da kora de Silves e descendente de uma antiga família cristã (rumi), constituem uma herança cultural de um mundo que não deixou de o influenciar. 

Depois de ter sido chamado imām (chefe religioso e político) e mahdī (guia espiritual ou messias), Ibn Qasī foi cobardemente assassinado em Silves, a mando dos sequazes dos almoadas e às mãos de um discípulo próximo (Ibn Almúndir), em 1151. Tal teve como causa o pacto de não agressão que terá assinado com Dom Afonso Henriques, prevendo-se, assim, no actual território português, a existência de dois estados independentes, um a norte (cristão) e outro a sul (muçulmano). Quarenta anos depois, quando o cruzado Roger de Howden ali passou a caminho da Terra Santa, o Ribāt encontrava-se reconhecível, mas em ruínas.

O Ribāt da Arrifana foi, então, abandonado, talvez amaldiçoado, sendo perseguidos os seus correligionários e censurada a obra daquele mestre. Para além dos testemunhos literários e arqueológicos, a tradição popular conserva, próximo daquela península, o topónimo de Fonte Santa e ecoa ainda, vagamente, na memória colectiva, que a povoação de Aljezur foi fundada por um príncipe-poeta da Arrifana, não sendo este senão Ibn Qasī. Tal foi a repercussão que provocou a sua presença na região há mais de oito séculos e meio.

Embora tenha sido classificado como Monumento Nacional em Junho de 2013, o Ribāt da Arrifana, devido à incúria dos homens e, em particular, das entidades responsáveis pela Cultura, encontra-se totalmente abandonado.