Tudo começou com uma camisa com 1.800 anos. O arqueólogo Lars Holger Pilø observou os seus colegas a descobrirem a antiga túnica de lã que emergira de um pedaço de gelo derretido em Lomseggen, uma montanha no sul da Noruega. Pilø começou a pensar que poderiam existir mais. Enquanto o resto da equipa embalava o achado precioso, Pilø e outro arqueólogo afastaram-se do grupo, seguindo os limites do gelo envoltos na névoa da montanha.
No meio da neblina, Pilø percebeu que estava a olhar para um campo de objectos que não viam a luz do dia há centenas de anos. Trenós partidos, ferramentas e outros vestígios do quotidiano, com perto de 2 mil anos de idade, estavam espalhados pela superfície da mancha de gelo de Lendbreen, que estava a derreter rapidamente devido ao aquecimento global.
“Apercebemo-nos de que tínhamos encontrado algo verdadeiramente especial”, diz Pilø, que chefia o Programa de Arqueologia Glaciar em Oppland, na Noruega. “Foi como se nos tivesse saído a sorte grande.”
Agora, uma investigação publicada no dia 16 de abril na revista Antiquity documenta as descobertas subsequentes – mais de mil artefactos literalmente congelados no tempo.
Os artefactos, que datam de cerca de 300 a 1500 d.C., contam a história de um desfiladeiro que serviu como uma zona vital de passagem para colonos e agricultores que se deslocavam entre os assentamentos permanentes de Inverno, ao longo do rio Otta, no sul da Noruega, e as quintas de Verão de alta altitude, ainda mais para sul. Quando atravessaram este terreno acidentado, os antigos viajantes deixaram inúmeros vestígios para trás, desde ferraduras, utensílios de cozinha e peças de roupa. À medida que a neve se foi acumulando ao longo dos séculos, estes objectos esquecidos ficaram preservados naquilo que acabou por se tornar na mancha de gelo de Lendbreen.
Em 2018, os arqueólogos estabeleceram o seu acampamento base em frente à mancha de gelo de Lendbreen. Fotografia de Espen Finstad, Secrets of the Ice.
As manchas de gelo ficam em zonas de alta altitude, mas são diferentes dos seus primos maiores, os glaciares. Os objectos congelados nos glaciares acabam eventualmente por ser pulverizados dentro da massa móvel de gelo. Mas as manchas de gelo, que não se movem, preservam os artefactos que contêm – em excelentes condições – até o gelo derreter.
Pilø, o primeiro autor do artigo da Antiquity, e os seus colegas fizeram datações por radiocarbono de 60 dos 1.000 artefactos encontrados em Lendbreen, revelando que a actividade humana no desfiladeiro começou por volta de 300 d.C., durante um período em que as boas condições climáticas levaram a um aumento populacional na região. As viagens durante a era dos vikings atingiram o pico por volta do ano 1000 e, devido a mudanças económicas e climáticas, começaram a diminuir antes da Peste Negra atingir a Noruega na década de 1340.
Artefactos misteriosos com explicações modernas
Os objectos encontrados em Lendbreen incluem itens do quotidiano, como trenós, uma túnica rara de lã do século terceiro, uma luva, sapatos e uma batedeira. E uma das descobertas favoritas de Pilø, que ninguém sabia para o que servia, foi exibida no museu local e uma senhora idosa ofereceu uma explicação: O pequeno pedaço de madeira pode ter sido usado para impedir que um cabrito ou um cordeiro se conseguissem amamentar, porque as pessoas poderiam querer usar o leite para si.
Esta senhora, que viveu numa quinta de Verão na década de 1930, disse que a sua família usava pedaços feitos de madeira de zimbro que pareciam quase idênticos ao artefacto do século XI. E o pedaço de madeira com mil anos também é feito de zimbro.
Aparentemente, o desfiladeiro de Lendbreen não servia apenas para os agricultores locais se movimentarem entre as pastagens sazonais. A equipa de Pilø descobriu vários moledos – formações rochosas empilhadas para ajudar as pessoas que não conheciam o terreno a navegar pelo desfiladeiro em viagens mais longas pela Escandinávia. A presença de moledos, juntamente com a descoberta de ferraduras (e até de apoios para andar na neve), é uma evidência “muito convincente” de que esta mancha de gelo foi usada como uma artéria movimentada durante quase mil anos, diz Pilø, tornando este sítio norueguês no primeiro desfiladeiro deste género encontrado no norte da Europa.
A mancha de gelo de Lendbreen está a derreter rapidamente, como se pode ver pelas fotografias tiradas em 2006 (em cima) e em 2018 (em baixo). Fotografia de Espen Finstad, Secrets of the Ice.
Albert Hafner, arqueólogo de glaciares da Universidade de Berna, que não participou neste trabalho, concorda. “Creio que os argumentos são bastante convincentes.” Em 2003, Hafner descobriu centenas de artefactos que datam de 4800 a.C., em Schnidejoch, uma mancha de gelo nos Alpes suíços que também era usada como uma passagem montanhosa. “É muito interessante ter um sítio semelhante na Escandinávia”, diz Hafner.
O estudo actual concentra-se nos objectos encontrados até 2015, faltando centenas de artefactos por datar e descrever, e há outras questões sem resposta – porque razão o desfiladeiro foi abandonado. “O declínio começou antes da pandemia [Peste Negra], mas não temos uma boa explicação para o que aconteceu”, diz Pilø. Os anos de maior movimento na passagem estão alinhados com o período de maior comércio e urbanização da região – dias de prosperidade que explicam a necessidade de uma forma célere de atravessar as montanhas.
Os trabalhos em Lendbreen terminaram em 2019, mas Pilø procura agora outros objectos que estão a ser revelados pelo degelo maciço das manchas de gelo da Noruega. Os artefactos “estão basicamente armazenados num congelador pré-histórico gigante”, diz Pilø. “Não envelheceram. Por vezes, digo na brincadeira que o gelo é uma máquina do tempo, mas isto é mesmo verdade. O gelo transporta os artefactos até ao nosso tempo.”
Mas, para que isso aconteça, o gelo tem de derreter. E com a criosfera da Noruega a desaparecer devido às alterações climáticas e a uma série de Verões extremamente quentes, todas estas descobertas têm um sabor agridoce.
“Tentamos ficar focados no trabalho, mas isso está sempre presente”, diz Pilø. “Não é um trabalho que se possa fazer sem uma sensação de mal-estar.”