PARTE 2

DOS ALPES ÀS PORTAS DE ROMA

(Leia a Parte 1 aqui)

Cai a tarde no vale do rio Pó. O Sol põe-se atrás das montanhas, enquanto a coluna de homens vai caminhando sem forças. A derradeira luz desse dia de Outubro de 218 a.C. alonga as sombras de um exército espectral que desce pela vertente oriental dos Alpes. Os aldeãos observam-nos, da planície. Este não pode ser o exército que vem libertá-los do jugo de Roma. Talvez Roma já tenha acabado com ele e estejam apenas a ver um desfile de fantasmas. Passou apenas meio ano desde que Aníbal partiu de Cartagena, atravessando a Ibéria e a Gália, transpondo dois grandes rios (o Ebro e o Ródano) e duas cordilheiras (a pirenaica e a alpina) para contemplar a península Itálica e o seu objectivo: as portas da cidade que lhe declarou guerra.

“Quando descem dos Alpes, as forças de Aníbal parecem-se mais com animais do que com seres humanos”, relata o arqueólogo Patrick Hunt, professor da Universidade de Stanford. “Segundo a crónica de Políbio, durante a travessia Aníbal, teria perdido 75% dos seus homens. Dos 102 mil que o acompanhavam à partida de Cartagena, apenas 26 mil chegaram ao outro lado da cordilheira.” Com estes dados, custa a crer que a campanha dos Alpes pudesse ter sido um sucesso.

fórum

No Fórum, centro do poder da Roma antiga, foram tomadas importantes decisões políticas e militares que granjeariam à metrópole a hegemonia sobre o Mediterrâneo. Para consegui-la, Roma teve de derrotar, em três guerras sucessivas, a sua principal rival, Cartago, uma próspera colónia de origem fenícia localizada na actual Tunes.

Políbio extraiu provavelmente estes números do Templo de Hera Lacínia, um santuário grego situado na actual Calábria, onde Aníbal ordenou que a sua gesta fosse inscrita em tábuas de bronze. E talvez Sosilo de Lacedemónia, seu tutor na infância e que o acompanhou nas suas deambulações, também os registasse na sua crónica, intitulada Annibalica, que começou a escrever quando partiu de Cartagena, mas nunca chegou até nós. Imagino um Aníbal exausto, atormentado pelas decisões que condenaram milhares de homens, sem sequer ter entrado em batalha. A guerra em si ainda não começou e, ao alcançar Itália, precisa de reforçar-se com tropas locais.

Entretanto, o seu rival Públio Cornélio Cipião, que comandava as forças romanas, recebe a notícia da chegada do cartaginês, porventura com um misto de admiração e incredulidade. Junta-se em Pisa aos pretores da Gália, Lúcio Mânlio Vulsão e Caio Atílio Serrano, e chega a Placentia (actualmente Piacenza) a tempo de alcançá-lo. Conseguira escapar-lhe no Ródano, mas isso não voltará a acontecer. Os dois chefes forçam essa primeira batalha. Cipião quer derrotar o exército púnico antes que este recupere. Aníbal precisa de uma vitória para apaziguar as tribos da Gália Cisalpina.

A batalha do rio Ticino pôs sobre a mesa as qualidades militares do jovem general púnico, o qual, aproveitando de forma extraordinária a sua cavalaria, desferiu um ataque contra um destacamento romano e derrotou-o. O próprio cônsul tombou, ferido, e, segundo Tito Lívio, conseguiu salvar-se graças ao seu filho de 17 anos, que o retirou do campo de batalha. Públio Cornélio Cipião filho, mais tarde apelidado de Africano, passaria à história como rival decisivo de Aníbal, num confronto do qual apenas um dos dois sairia incólume. A derrota romana reforçou o moral das tropas púnicas e incitou os galos e os lígures a juntarem-se ao exército, duplicando literalmente as suas forças.

Aníbal

Elmo proveniente da Gália Cisalpina, bronze, século III a.C. cortesia do Museu das Estátuas Estelas de Lunigiana, Castelo de Piagnaro, Pontremoli, Itália.

A Itália transformou-se assim no cenário deste duelo de titãs. Entre as múltiplas contendas protagonizadas por romanos e cartagineses em solo italiano, três batalhas passarão a fazer parte dos anais da táctica militar, graças à perícia de Aníbal: Trébia, Trasimeno e, sobretudo, Canas.

Estamos no dia mais curto do ano e faz um frio glacial nas margens do rio Trébia. Antes da alvorada, Aníbal ordena à cavalaria númida que fustigue o acampamento romano. As unidades acordam, em sobressalto, e, sem terem tempo para se preparar, lançam-se em perseguição do inimigo. Tal como Aníbal previra, transpõem o rio até à outra margem, onde o seu irmão Magão os aguardara durante a noite, emboscado, com dois mil homens em alerta, abrigados, secos e bem alimentados. Aníbal derrota dois exércitos consulares numa só jornada.

“Aníbal quebra as regras do jogo”, sublinha o historiador italiano Giovanni Brizzi, professor nas universidades de Bolonha e da Sorbonne. “É um estrategós nato, no mais puro sentido helenístico do termo. Observa o desenrolar do jogo de maneira global e serve-se de todos os elementos a seu favor: o clima, o terreno e até a ambição que leva os homens a tomarem decisões precipitadas. E isso põe-nos fora do seu lugar, porque Roma consegue compreender a crueldade, mas não o subterfúgio.”

cronologia Aníbal

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Aníbal descansou no seu acampamento de Inverno, na Gália, e na Primavera pôs-se de novo em marcha. A cadeia montanhosa dos Apeninos ergue-se, como barreira natural que dificulta o acesso ao centro da península Itálica a quem vem do Norte, constituindo um obstáculo no caminho até Roma. As tropas consulares vigiam as duas passagens mais importantes, mas negligenciam outra via, considerando-a impraticável: as zonas alagadiças do Arno.

É por estas terras que o exército púnico avança, sem descanso, durante quatro dias, afundando-se na lama e na água, usando como cama os corpos dos animais mortos. Aníbal perde homens, animais e até o seu olho esquerdo, devido a uma infecção. Doente e esgotado, percorre a derradeira parte do seu caminho montado no seu último elefante, Sirius. É assim que alcança a Etrúria e, uma vez ali chegado, tira partido de novo da psicologia romana a seu favor. Sabe que não está em condições de travar uma grande batalha e que precisa de enfrentar os exércitos dos dois novos cônsules romanos, Cneio Servílio Gémino e Caio Flamínio, um após o outro. Sabe também que o último aguarda Gémino para entrarem juntos em combate e força a situação, ordenando aos seus homens que arrasem os campos de cultivo da zona onde se encontra Flamínio. Um cônsul romano não poderá recusar os apelos de ajuda do povo e ver-se-á obrigado a lançar-se à sua procura. Acerta.

rio Pó

Nas margens do rio Pó, Turim foi a primeira cidade para onde, segundo Políbio, Aníbal se dirigiu, depois de descer a cordilheira alpina à frente de um exército esgotado. O cartaginês precisava urgentemente de uma vitória para pôr a população local do seu lado.

O lago Trasimeno é hoje um parque regional a sul de Cortona, com minúsculos cais de acostagem, praias tentadoras e aldeias idílicas. Nada nos faz pensar na neblina que, de manhã, costuma envolvê-lo como um sudário, nem no sangue que, há mais de dois mil anos, tingiu de vermelho as suas águas. Ocultando a maioria do exército no sector mais alto de um desfiladeiro, Aníbal enviou um pequeno destacamento ao interior para que Flamínio acreditasse tratar-se do grupo que assegurava a cobertura da retaguarda. Quando as tropas romanas entraram no desfiladeiro em sua perseguição, viram-se cercadas pelos inimigos, que não conseguiam ver devido à densidade da neblina e à estreiteza da passagem. Cerca de 15 mil romanos morreram e mais de dez mil foram feitos prisioneiros. Aníbal libertou apenas os aliados de Roma, na esperança de que retransmitissem a mensagem salvadora: “Não vim lutar contra os italianos, mas combater Roma em seu nome.”

Apenas 200 quilómetros mais a sul, em Roma, o Senado decide então nomear ditador Fábio Maximo, o único que realmente parece entender que a melhor maneira de enfrentar Aníbal não é combatê-lo. A estratégia fabiana consiste em não ceder às suas provocações e, pouco a pouco, minar as suas posições na Península Ibérica, atacando as suas linhas de abastecimento. O grosso da população considera-a uma demonstração de cobardia, mas a estratégia daquele que ficará conhecido como “o escudo de Roma” funciona. Roma aguenta. Humilha-se. Entretanto, recruta tropas, organiza-se e arma-se para travar a batalha decisiva.

E a hora chega. Chega porque termina o mandato de Fábio Máximo e dois novos cônsules tomam o comando das tropas. Chega também porque ambas as partes a desejam. Estamos no ano de 216 a.C. e Aníbal encontra-se na Apúlia, procurando aliados e provisões. O moral das suas tropas é elevado. O Senado romano também conquistou uma confiança renovada, que lhe é proporcionada pelos seus 100 mil soldados, o exército mais numeroso da história até essa data.

Aníbal

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Roma não terá a oportunidade de alardear essa superioridade em Canas, o grande recontro seguinte. Consciente da oportunidade, Aníbal neutraliza-a com uma manobra envolvente. Permite que os romanos se lancem sobre os seus homens e estes, fingindo que fogem, transformam os seus flancos numa formação em U que acaba por cercá-los. Os relatos falam de dez mil prisioneiros, com o número de mortos a ascender a 70 mil: um cônsul, dois ex-cônsules, 29 tribunos militares, 80 senadores... Do lado dos cartagineses, as fontes descrevem 6.000 baixas. Enquanto em Roma todas as famílias choram pelo menos um morto, na Itália meridional, mais grega do que romana, o desfecho da batalha convence cidades como Cápua, Locri, Calábria, Crotona ou Tarento a mudar de campo.

A batalha de Canas ainda hoje é estudada nas escolas militares. A táctica seguida por Aníbal inspirou, aparentemente, grandes estrategos como Júlio César e Napoleão, além de teóricos militares como o conde alemão do Segundo Reich, Alfred von Schlieffen, o qual, no início do século XX, em vésperas da Primeira Guerra Mundial, elaborou um plano para a invasão e derrota de França.

Aquilo que sucedeu depois da batalha é alvo de debates académicos há dois mil anos. Embora tenha massacrado o exército rival, Aníbal, inesperadamente, não marchou contra Roma. Consigo imaginar a cena em que Maharbal, chefe da sua cavalaria, inebriado pela vitória, solicita permissão para cavalgar até à cidade que há dois anos sonha conquistar. Aníbal pede-lhe um dia para pensar no assunto. Tito Lívio relata a maneira como Maharbal, consternado e incrédulo, se atreve a questionar o seu general: “Os deuses não concederam ao mesmo homem todos os seus dons: sabes vencer, Aníbal, mas não sabes aproveitar a vitória.”

rio Trébia

O rio Trébia foi um dos primeiros cenários dos confrontos entre Aníbal e Roma e da primeira derrota romana. Roma rapidamente aprendeu a forma como o general cartaginês utilizava a natureza a seu favor. A ponte de Gobbo (na imagem) seria construída depois de o território ser conquistado por Roma.

“Aníbal nunca teve intenção de destruir Roma”, afirma Brizzi. “Sabemos isso pelo tratado que assinou, pouco depois, em 215 a.C., com o rei da Macedónia.” A sua intenção era vencer e não arrasar. O tratado a que se refere Brizzi, assinado entre Filipe V da Macedónia e Aníbal, especificava as condições de rendição que seriam impostas a Roma, após a submissão. Um número cada vez maior de autores considera que a intenção do cartaginês sempre foi minar o moral romano para obrigar Roma a capitular e a pactuar.

Como bom estratego que era, tinha consciência da impossibilidade de culminar uma gesta dessa forma, afirma o professor John Prevas, especialista em Aníbal: “Roma não é Sagunto. Está cercada por dez quilómetros de muralhas e é atravessada pelo rio Tibre. É difícil cortar-lhe os abastecimentos e Aníbal não dispõe de máquinas de cerco.”

Que esperava, então, Aníbal? Fernando Quesada, arqueólogo da Universidade Autónoma de Madrid, partilha a opinião de outros historiadores modernos: “Os cartagineses eram quase mais gregos do que semitas. E na concepção helenística da guerra, se alguém era vencido, deveria negociar a paz.” No entanto, para surpresa de Aníbal, Roma não se rendeu. Desde o início das campanhas, dois anos antes, as suas perdas já se cifravam em cem mil homens, mas não se rendeu. Proibiu o luto, recusou pagar resgate pelos reféns e puniu os sobreviventes do desastre de Canas, as chamadas legiões malditas, desterrando-as para a Sicília. Rejeitou a embaixada cartaginesa que pretendia negociar a paz, nomeou novos senadores, baixou a idade de recrutamento e libertou escravos e prisioneiros para que pegassem em armas. Não se rendeu.

A elegante siracusa que me recebe não preserva marcas da sua breve aliança com Cartago. Roma assegurou-se de que assim fosse. Não sei se os turistas conhecem a história desta cidade de origem grega que se revoltou contra Roma. Há mais de 2.200 anos, após o sucedido em Canas, Siracusa resolveu aliar-se a Cartago. Corria o ano de 214 a.C. quando o cônsul Cláudio Marcelo acorreu a subjugá-la, mas, durante dois anos, um matemático grego pôs os seus extraordinários inventos ao serviço da cidade para esmagar os romanos, como quem joga num enorme tabuleiro. Chamava-se Arquimedes.

Siracusa

A luta entre Cartago e Roma não foi travada apenas na península Itálica. Siracusa aliou-se às  forças de Aníbal em 214 a.C., embora a ilha da Sicília tivesse passado a pertencer a Roma depois da Primeira Guerra Púnica. Roma não podia ceder um ponto tão estratégico e submeteu a cidade a um longo cerco de dois anos, até a vencer.

Admirado com o seu talento, Cláudio Marcelo pediu que, quando a cidade fosse tomada, poupassem a vida àquele sábio. No entanto, na rapina que costuma seguir-se às vitórias, um soldado, sem saber de quem se tratava, pôs fim à sua vida. Hoje, conhecemo-lo pelas suas teorias matemáticas. O seu engenho quase conseguiu evitar a conquista de um território estratégico para Cartago.

Apesar da perda de Siracusa, em 211 a.C. o controlo do Mediterrâneo pelos cartagineses atinge o seu apogeu. Aníbal domina quase todo o Sul da Península Itálica, a Magna Grécia. Públio Cornélio Cipião e o irmão, Cneio Cornélio Cipião, morreram na Bética, às mãos de Asdrúbal Barca, que agora tem o caminho aberto para enviar provisões ao seu irmão Aníbal. Durante um confronto com as tropas romanas, que pretendem arrebatar-lhe Cápua, e talvez por sentir-se poderoso, Aníbal toma uma decisão insólita e segue para Roma. A história transforma-se em lenda, ao recordar o mensageiro que irrompe Senado adentro, dando conta do perigo iminente e gritando: “Annibal ad portas!” Mulheres e crianças trancam-se em casa, as matronas ajoelham-se diante dos deuses nos templos e os homens preparam-se para vender cara a sua vida. Muito tempo depois, a expressão Annibal ad portas ainda é sinónima de perigo extremo. Aníbal, acampado a somente três quilómetros, galopa até às muralhas, talvez num misto de soberba, fúria e impotência. Nada acontece. É o mais perto que o general cartaginês alguma vez estará da cidade que lhe invade os pesadelos.

Este poderia ser o início da sua decadência, o momento em que a sorte muda. Foi também nesse ano que Públio Cornélio Cipião filho conseguiu, apesar da sua juventude, ser enviado à Península Ibérica para assumir a chefia das tropas outrora comandadas pelo pai. “Desde que entra na guerra, Cipião filho começou a imitar as estratégias de Aníbal”, observa Brizzi. “De um ponto de vista freudiano, Aníbal torna-se o pai que ele perdeu. O jovem romano demora vários anos a estudar o adversário, analisando as suas estratégias, tentando perceber a sua mente.

Cipião filho sabe que, para vencer, precisa de jogar no terreno do rival.” Embora ciente de que se trata de uma tarefa suicida, Roma altera a lei para lhe conceder o comando dos exércitos. Aníbal ainda não o sabe, mas acaba de nascer a sua némesis.

Aníbal

A manus ferrea foi uma das máquinas de guerra concebidas por Arquimedes para a defesa de Siracusa. O mecanismo suscitou respeito entre os seus inimigos e o próprio cônsul romano pediu que poupassem a vida do matemático grego. Tal não aconteceu. Arquimedes caiu, juntamente com a cidade siciliana, que pagou cara a sua aliança com Cartago. Pintura da sala da Matemática, por Giulio Parigi (1571-1635), Galeria dos Ofícios, Florença, Bridgeman Images / ACI.

Em 209 a.C., numa operação-relâmpago, Cipião ocupa o inexpugnável bastião cartaginês de Qart Hadasht, a actual Cartagena, na Península Ibérica. Fá-lo penetrando pelo único flanco vulnerável: a laguna. Recorrendo a uma estratégia digna do próprio Aníbal, divide as suas forças e, ao mesmo tempo que um destacamento distrai a guarnição das portas da cidade, outro destacamento atravessa a laguna durante a maré baixa, no momento em que, segundo lhe contaram os pescadores de Tarraco, essa travessia é exequível. O general liberta os prisioneiros ibéricos, dizendo-lhes que corram para o seu território e anunciem que Roma será magnânime para aqueles que a apoiarem.

Na cidade de Baeza, na região de Jaén, há uma fonte na Praça do Pópulo rematada pela figura de uma mulher. Embora não existam provas arqueológicas, a tradição assegura que é proveniente das ruínas da cidade ibera oretana de Cástulo, na actual Jaén, e ela é atribuída a Himilce, mulher de Aníbal. A história não se ocupou muito dela. Sabemos apenas que não viajou com ele, que talvez lhe tenha dado um filho, que provavelmente não desejaria a guerra contra Roma e que, como todas as mulheres que foram usadas para formar alianças, acabou por transformar-se em refém para garantir a lealdade do seu povo perante os novos senhores. A cerca de 50 quilómetros de Baeza, teve lugar, em 208 a.C., a batalha que assinalou o mais importante ponto de inflexão da Segunda Guerra Púnica. O Instituto Universitário de Investigação em Arqueologia Ibérica da Universidade de Jaén liderou o projecto Ilitauro, que localizou há 15 anos o cenário da batalha, o decisivo recontro em que Cipião venceu Asdrúbal Barca, mudando definitivamente o curso da guerra.

No Cerro de las Albahacas de São Tomé, nas proximidades do oppidum de Turruñuelos, as escavações puseram a descoberto “cerca de cinco mil artefactos metálicos associáveis ao conflito bélico. Graças a estes, foram reconstituídas oito das dez cenas descritas nos textos clássicos, obtendo-se informação que permite uma nova leitura da batalha”, conta o director Juan Pedro Bellón.

A consequência imediata da derrota cartaginesa em Baécula foi a fuga de Asdrúbal, que transpôs os Alpes para se juntar às forças do irmão em Itália. Quase o conseguiu, mas os romanos interceptaram as comunicações que enviou a Aníbal e foram eles que compareceram ao encontro. No rio Metauro, a 500 quilómetros do local onde estava Aníbal, as suas tropas foram derrotadas e ele também foi abatido após uma batalha sangrenta.

O cônsul Caio Cláudio Nero, numa feroz manobra em oposição a todas as leis da guerra, mandou cortar a cabeça a Asdrúbal e atirá-la para o acampamento do irmão.

Terá Sosilo registado nas suas crónicas a dor e o desespero do seu antigo pupilo? Penso no efeito devastador que aquele gesto terá provocado no acampamento púnico. Asdrúbal era irmão do general, mas representava igualmente a defesa da Península Ibérica, a garantia da chegada de provisões e o lugar para onde se poderia retroceder. Talvez naquele momento Aníbal soubesse que havia perdido, mas também não se rendeu. Como um leão ferido, retirou para Bruttium, no extremo meridional de Itália, enquanto a guerra prosseguia imparável na Península Ibérica e onde apenas Magão, seu irmão, e Giscão, um dos seus oficiais, continuavam a resistir. Em 206 a.C., quando estes foram derrotados pelas tropas de Cipião em Ilipa, na actual Sevilha, tentaram refugiar-se em Gadir, mas a antiga cidade fenícia recusou abrir-lhes as portas. Numa reviravolta, a fiel Ibéria era já pró-romana. Magão Barca abandonaria a Península Ibérica para estabelecer-se com o seu exército nas Baleares. Ali fundaria Mahón, a cidade que ainda hoje tem o seu nome.

Engrandecido com os seus próprios êxitos, Cipião deu mais um passo e firmou um acordo secreto com o príncipe númida Massinissa. Este aliado de Cartago tinha-se sentido traído: apesar da sua lealdade, os cartagineses tinham-se aliado a Sifaz, o rival com quem disputava o trono da Numídia, no Norte de África. Tinham mesmo chegado ao ponto de oferecer-lhe em casamento Sofonisba, filha de Giscão, que antes disso lhe estava prometida. Massinissa jurou fidelidade a Roma, se esta o ajudasse a recuperar o que lhe pertencia. Ninguém poderia imaginar até que ponto o despeito de um príncipe destronado desempenharia um papel decisivo no desenlace do conflito.

Em 205 a.C., apesar da sua juventude e da oposição de Fábio Máximo, seu inimigo no Senado, Cipião conseguiu a nomeação de cônsul, sendo enviado para África. A sua actuação na Península Ibérica reforçara a ideia de que só ele seria capaz de travar Aníbal. Ele também acredita nisso. O seu plano é atacar Cartago, obrigando Aníbal a sair de Itália para acudir à defesa da cidade. O Senado nega-lhe tropas, mas ele consegue reunir um exército de voluntários e conquistar o comando das legiões malditas, desterradas na Sicília.

Um ano depois, Cipião zarpa para África. Hanão, o Grande, tradicional inimigo dos Barca, não quer a guerra, mas também não quer a sua cidade arrasada. Por isso, manda chamar Aníbal. E Aníbal regressa. Como militar, cumpre ordens, reagrupa as tropas e embarca rumo a uma capital que abandonou nove anos e que o odeia tanto como precisa dele. O seu irmão Magão parte das Baleares ao seu encontro, mas morre durante a travessia.

É nestas circunstâncias que o cartaginês chega à costa africana. A maioria dos soldados que partiram de Cartagena consigo já morreram, tal como o seu pai, o cunhado Asdrúbal e os seus irmãos. Tal como Qart Hadasht, agora transformada em Cartago Nova. O sonho ibérico dos Bárcidas esfuma-se. Roma movimenta-se à vontade na terra a que já chama Hispânia.

Numa derradeira tentativa de evitarem a guerra, os dois generais reúnem-se frente a frente. Apesar da admiração mútua, as negociações fracassam. Roma exige condições leoninas. Sentindo-se fortalecida com o regresso de Aníbal, Cartago recusa-as. No dia 19 de Outubro de 202 a.C., em Zama, Cipião escolhe o campo de batalha e posiciona o seu exército de frente para o Sol nascente. Aníbal não compreende a razão até ver os escudos polidos de mais de 30 mil homens reflectindo o sol na direcção das suas tropas. Perante a astúcia de Cipião, ordena uma carga dos seus 80 elefantes, mas já nada resulta, uma vez que Roma passou os últimos 15 anos a aprender com ele.

“As trompas de guerra aterrorizam os elefantes. E quando finalmente se dá a carga, Cipião manda que sejam abertos corredores para deixá-los passar, sem que inflijam danos aos soldados e aproveitando para crivá-los de flechas”, relata Patrick Hunt. A batalha, como tantas vezes aconteceu ao cartaginês, acaba por ser decidida pela cavalaria. Neste caso, a cavalaria de Massinissa, o príncipe destronado que combate ao lado de Roma, sob condição de recuperar o seu reino. “Esta batalha foi ganha pela ambição de Massinissa e pelas legiões malditas, que aliam a sua sede de vingança à intuição do veterano romano”, afirma Brizzi.

Os dois rivais sobrevivem. Públio Cornélio Cipião conquista um epíteto que o acompanhará por toda a vida, o de Africano. Aníbal perde a guerra e a confiança do seu povo. “Depois de Zama, deixa de haver alternativas. Não há frota para fugir, nem lugar para escapar”, sentencia Brizzi.

Que teria acontecido se o resultado fosse outro? “Se Roma tivesse sido esmagada em Zama, o Mediterrâneo ter-se-ia transformado num conjunto de terras de expressão grega e Aníbal teria oferecido condições moderadas de paz a Roma”, opina Dexter Hoyos, professor de História na Universidade de Sydney. A cidade do Tibre não foi tão benévola. Em 201 a.C., foi celebrado o tratado de paz que pôs fim à Segunda Guerra Púnica. Cartago perdeu as suas colónias fora de África, entregou a frota e os elefantes e comprometeu-se a não empreender qualquer guerra sem primeiro notificar Roma, à qual, além disso, pagou uma indemnização durante 50 anos. Massinissa recebe o trono da Numídia e recupera Sofonisba, mas não há um final feliz. Quando Cipião lhe pede para entregar-lhe a jovem, ela prefere suicidar-se a cair nas mãos romanas.

Derrotado, Aníbal opõe-se à facção do eterno rival, Hanão. Ao ser eleito, em 196 a.C., promulga um imposto extraordinário para satisfazer a indemnização a ser paga a Roma. Não quer que seja o povo a pagá-la. É então que entra em choque com os seus verdadeiros inimigos, aqueles que governam uma cidade que não lhe disponibilizou recursos e que o acusa agora de traição por não ter vencido Roma. Não hesitam em denunciá-lo ao Senado romano, argumentando que a correspondência por ele trocada com o rei Antíoco III da Síria é prenúncio de uma nova insurreição.

Aníbal foge. Mais uma vez, sem regresso. Estamos no ano de 195 a.C. Viaja de Tiro a Éfeso e depois para Creta, a Arménia e, por fim, a Bitínia, visitando as cortes dos reis e agindo como conselheiro em guerras periféricas contra o poder romano. Certo dia, em 183 a.C., uma delegação romana enviada por Tito Quíncio Flamínio apresenta-se no paço real de Prúsias, rei da Bitínia, na actual Turquia. Aníbal percebe que foi vendido. Segundo algumas fontes, retira o anel e bebe o veneno guardado no interior. Tinha 64 anos. Nunca fez parte dos seus planos cair nas mãos dos romanos. Tito Lívio escolhe reproduzir as suas derradeiras palavras: “Libertemos Roma dos seus temores, já que não sabe aguardar a morte de um velho.”

As notícias da sua morte devem ter chegado à villa onde Cipião vivia retirado, na Campânia. Também ele se exilara. Tal como acontecera ao rival, o seu próprio reino virara-lhe as costas, despojando-o de cargos e acusando-o de traição e peculato. “Pátria ingrata, não mereces os meus ossos”, lamentou amargamente o vencedor da batalha de Zama. Pediu para não ser enterrado em Roma e morreu poucos meses depois do cartaginês.

Escassos 40 anos mais tarde, o senador Catão, o Censor, representante da Roma mais intolerante e velha testemunha da Segunda Guerra Púnica, viajou até Cartago com uma delegação. Surpreendido ao encontrar uma cidade de novo próspera, decide acabar com ela. A partir desse momento, todos os seus discursos no Senado terminariam com uma frase: “Carthago delenda est” (“Cartago deve ser destruída”). A própria Cartago dá-lhe esse pretexto, ao violar o tratado e enfrentar os vizinhos númidas, os quais, sabendo-se apoiados por Roma, não param de a fustigar. Os embaixadores púnicos tentam negociar uma solução, mas Roma deseja a guerra. Quase tanto como Cartago deseja a paz.

Catão não tem dificuldades em convencer o Senado. Conta a lenda que, certa manhã, apresentou-se no Senado com um cesto de figos verdes. Depois de reparti-los, perguntou aos colegas de onde achavam que vinham. “Das tuas terras”, disse um. “Do mercado”, alvitrou outro. “De Cartago!”, gritou ele. “E ainda estão verdes. Imaginai como chegariam frescos às suas tropas.” Acabara de ser decidido o início da Terceira Guerra Púnica. “Cartago transformou-se num símbolo e o medo de Aníbal perdurou”, nota Brizzi. “Durante a Segunda Guerra Púnica, os romanos perderam um terço da sua população mobilizável. Viveram a síndrome das Torres Gémeas. Os figos de Catão não eram figos: eram equivalentes a mísseis inimigos, a apenas uma semana de navegação de Roma.”

O exército romano desembarca em África. Os cartagineses aceitam todas as exigências: a entrega de trezentos filhos de famílias nobres, as armas, toda a sua frota e o trigo armazenado. Aceitam todas menos uma: o abandono da cidade centenária à beira do mar, onde habitam os seus mortos e os seus deuses. Fecham-se dentro dela, fabricam armas e resistem. Um ano. Dois anos. E quando os augúrios dizem que apenas um descendente de Cipião, o Africano, será capaz de acabar com Cartago, os olhos do Senado voltam-se para o seu neto, Cipião Emiliano. Os sinais são tão inequívocos que, em 147 a.C., Cipião é nomeado cônsul sem cumprir os requisitos necessários. “Que as leis durmam por uma noite”, proclama o Senado.

Cartago caiu em 146 a.C. O astuto Catão e Massinissa já tinham morrido e, por isso, não testemunharam a destruição. Cipião Emiliano pediu que a cidade não fosse arrasada, mas o seu pedido foi negado. O incêndio durou mais de duas semanas. Talvez fosse ali, no meio das bibliotecas arrasadas, que Políbio teve oportunidade de ler um excerto da Annibalica de Sosilo, antes que o texto se perdesse para sempre. Talvez fosse então que decidiu contar a gesta. É ele quem nos narra a maneira como Cipião rompeu em pranto, diante dos restos ardentes de Cartago: “Chegará um dia em que Ilión, a cidade sagrada, perecerá...”, lamentou o romano, citando um verso da “Ilíada”. “A vitória é tua, general, porque choras?”, perguntou-lhe um dos seus oficiais. Cipião resumiu numa frase o destino de todos os impérios. “Porque sei que, um dia, o mesmo sucederá à minha pátria.”