PARTE 1
DE CARTAGO AOS ALPES
É cedo. Muito cedo. O sol ainda não nasceu e é melhor assim porque temos muitos quilómetros pela frente. A brisa arrasta consigo o aroma salobro do Mediterrâneo e algumas gaivotas sobrevoam as longas filas de homens do lado de fora dos portões de Qart Hadasht. Corre o ano 536 desde a fundação de Roma, embora os cartagineses, aquartelados na Península Ibérica há apenas 20 anos, não gostem de utilizar a contagem de tempo do inimigo.
Do alto da muralha, um jovem general dirige o olhar para o seu exército heterogéneo, um dos maiores que já se viram no território peninsular. Antes de dar ordem de partida, faz um gesto a Sósilo de Lacedemónia, seu tutor de infância, que, enquanto cronista, toma nota dos primeiros apontamentos. Podia ser apenas mais uma manhã, mas está destinada a ficar na memória. O general que comanda as tropas é um jovem cartaginês chamado Aníbal Barca. A cidade que se prepara para abandonar é a que conhecemos hoje como Cartagena, cidade portuária na costa de Múrcia.
Admirado pelos seus inimigos, adorado pelos seus soldados e imitado por grandes generais ao longo da história, o cartaginês Aníbal Barca demonstrou ser um génio da táctica militar, pondo Roma em xeque durante 17 anos na península Itálica. Qual o seu maior mérito? Aproveitou-se da natureza e das debilidades dos seus rivais. Busto de Aníbal proveniente de Cápua, mármore, século XVI, Roma, Galerias do Quirinal
Passaram-se 2.240 anos desde aquele momento, mas a luz de Cartagena na Primavera talvez não seja tão diferente da de então. Quase me parece vê-lo, desfocado na bruma que se ergue do mar na alvorada. Imagino-o a dar o primeiro passo de uma travessia que poderia mudar a história. Pressinto a expectativa e talvez o medo. Na minha imaginação, ouço em voz alta a ordem sonhada: em marcha! Talvez sussurre para os seus próprios botões o nome da cidade para a qual se dirige e que pretende subjugar, a cidade que se opõe obstinadamente à expansão do seu povo: Roma!
O mesmo mar de então banha hoje um porto repleto de história. O enorme exército de Aníbal, com mais de cem mil homens, segundo as crónicas, já não cabe entre a Rua San Diego e a colina de San José. Só os restos da muralha púnica parecem provar que a antiga Qart Hadasht foi o breve sonho ibérico dos cartagineses. Na actual Cartagena, como na história e nos pesadelos de Aníbal, os restos de Cartago jazem quase invisíveis sob a rutilante supremacia romana.
“A história de Aníbal é a do choque entre dois impérios” – afirma o professor norte-americano de História Grega e Romana John Prevas, autor do livro “Hannibal’s Oath” [sem tradução portuguesa]. “Todos os impérios nascem, erguem-se e morrem. Roma e Cartago estão destinadas a encontrar-se e fazem-no no instante em que a primeira está em pleno auge e a segunda encara o seu declínio. Creio que Aníbal conseguiu ver este dilema. A sua ideia de caminhar até Roma e enfrentar o inimigo, face a face, foi apenas uma estratégia para ganhar um pouco mais de tempo para o seu reino”.
Terá Aníbal sido um visionário, um génio, um louco? Centenas de historiadores, durante mais de dois milénios, tentaram responder à pergunta. O grande historiador romano Tito Lívio acusou-o de crueldade e perfídia; os seus súbditos adoraram-no; criou rivais políticos no seu próprio país e o seu principal inimigo admirou-o até à morte.
Clique na imagem para ver detalhes. Os anos correspondem ao calendário pré-juliano ou romano, de 304 dias; em algumas fontes, os números podem variar um ano. Gráfico: NGM-E. Fontes: Patrick Hunt; John Prevas; Oriol Olesti. Fotografia: Pátera ritual Ibérica, tesouro de Tivissa, prata, 250-195 a.c., Barcelona, Museu de Arqueologia da Catalunha (MAC)
“Foi um homem de enorme inteligência e confiança em si próprio, um génio táctico, generoso e compassivo, mas também de uma insondável violência, frieza e ganância”, diz Prevas. O maior inimigo de Roma até então transformar-se-ia, para os cronistas romanos posteriores, no paradigma do adversário digno e nobre. Considerado um dos mais hábeis estrategos de todos os tempos, imitado por ilustres comandantes como Júlio César e Napoleão, as suas tácticas bélicas continuam a ser estudadas nas academias militares e a sua figura ainda nos fascina, da mesma maneira que nos fascinam os heróis trágicos, capazes de enfrentar o destino por seguirem os seus sonhos.
O sonho de Aníbal era a hegemonia sobre o Mediterrâneo – a causa da rivalidade entre Roma e Cartago, que começou a ser escrita muitos anos antes. No século IX a.C., Cartago nasce nas costas da actual Tunes, como uma colónia fenícia tributária de Tiro. Menos de um século mais tarde, em 753 a.C., Roma começa a perfilar-se como a semente do império no qual irá transformar-se. O mito fundacional cartaginês atribuiu o nascimento de Cartago à princesa fenícia Dido, a qual, fugindo do seu irmão Pigmalião, parte de Tiro e navega até Tunes e, uma vez ali chegada, consegue que os seus acompanhantes se fixem em Byrsa, a colina que domina a cidade. Além dos testemunhos arqueológicos, a lenda remete-nos para um momento anterior: após a guerra de Tróia, Eneias, um dos heróis vencidos, chega às costas desta nova cidade e é acolhido pela soberana. Numa reviravolta dramática do guião, Eneias partiu para cumprir a sua missão. Decidiu gerar a dinastia que viria a fundar Roma e Dido, com o coração partido, suicidou-se. Curiosamente, a lenda mistura as raízes fenícias e gregas de Cartago, mas também o destino trágico que a aguarda na relação com Roma. A Primeira Guerra Púnica começou no século III a.C. e prolongou-se por mais de duas décadas, entre 264 e 241 a.C. Aníbal nasceu neste período, em 247 a.C. Era o primeiro filho de Amílcar Barca, estratego dos exércitos cartagineses na Sicília e figura relevante numa guerra perdida por Cartago. Aquela que fora, até então, a potência dominante do Mediterrâneo foi obrigada a assinar um tratado de paz e a entregar a disputada Sicília, bem como a pagar uma indemnização financeira.
Mapa: NGM-E. Fontes: Patrick Hunt; John Prevas; Oriol Olesti.
Quando Roma anexou também a Sardenha e a Córsega, em 238 a.C., Cartago não teve capacidade de reacção. Com a aprovação do Senado cartaginês (o Conselho dos Cem), Amílcar Barca tomou então uma decisão que desencadeou a história tal como a conhecemos: reuniu os seus exércitos e dirigiu-se ao território a que os cartagineses chamavam Ibéria e os seus inimigos Hispânia.
A Ibéria é a promessa de um futuro melhor. Naquela terra bárbara e ocidental, afastada do esplendor cultural da koiné grega, Cartago dispõe de pequenas colónias comerciais costeiras desde o tempo dos fenícios, que competem em prosperidade com as colónias gregas vizinhas. O que procura Amílcar? Os recursos minerais que tornaram poderosa a mítica Tartessos e que compensarão Cartago pelos prejuízos económicos sofridos após a guerra. Na rica Ibéria, aguardam-no a prata que lhe permitirá cunhar moeda para pagar a Roma e os metais para forjar as armas para vencê-la. Amílcar atravessa a pé o Norte de África e chega a Gadir em 237 a.C. transpondo as Colunas de Hércules (o estreito de Gibraltar). Antes de permitir que seu filho Aníbal, com 9 anos, o acompanhasse, fê-lo jurar que jamais seria amigo de Roma.
“Aníbal vê-se a si mesmo como o perfeito guerreiro helenístico, uma combinação de força e astúcia.”— Giovanni Brizzi
“A fama de Aníbal deve-se essencialmente a três autores”, diz Dexter Hoyos, professor de História Antiga da Universidade de Sydney. “O grego Políbio, que escreve a sua crónica no século II a.C., cerca de 50 anos após a sua morte, o romano Tito Lívio, que o faz cerca de 150 anos mais tarde, e Plutarco, no início do século II d.C.” O historiador tunisino Abdelaziz Belkhodja, autor do livro “Hannibal, l'histoire veritable” [sem tradução portuguesa], alerta que as crónicas têm por base unicamente fontes filo-romanas: “Talvez esse famoso juramento seja apenas uma invenção da historiografia romana para justificar o posterior genocídio de Cartago.”
O plano inicial resultou. Amílcar Barca iniciou uma campanha de alianças e submissão, assegurando os recursos minerais do Sudeste espanhol, bem como a mão-de-obra necessária à sua exploração. Outro historiador clássico, Diodoro da Sicília, refere-se à importância de certos recursos explorados já desde o tempo dos fenícios. O cronista fala, sobretudo, na galena argentífera, presente especialmente na serra mineira da actual província de Jaén e na comarca murciana de La Unión. No Museu Municipal de Cartagena, podem admirar-se exemplares deste mineral, muito pesado devido ao seu elevado teor de chumbo e com uma percentagem não despicienda de prata. Esta era posteriormente separada por meio de um processo de fundição. “Na época de Amílcar, começa a emissão de moeda ibero-púnica de prata”, confirma Pedro Huertas, arqueólogo e guia do museu. “Anteriormente cunhavam-se com cobre e depois com bronze.”
As moedas gastas que tenho pousadas nas minhas mãos fornecem muita informação. Os motivos nelas representados falam-nos do modelo cartaginês de poder: Tanit, a proa de um barco e o elefante; ou seja, a divindade, o comércio e a força. E o material de que são feitas alude à riqueza do seu império: “A prata era tão abundante e os barcos zarpavam daqui tão cheios que, para conseguirem transportar quantidades maiores, os comerciantes trocavam as âncoras de chumbo por âncoras de prata”, diz Pedro Huertas. As minas de La Unión já não estão activas. Foram definitivamente encerradas na década de 1990 por serem pouco rentáveis e terem elevados custos ambientais. A bacia mineira de Cartagena permanece desde então presa no passado, tingindo-se de cores impossíveis ao cair da tarde.
À minha frente, o Cabezo Rajao, um complexo mineiro já explorado na época cartaginesa, ergue-se como testemunha silenciosa. Na solidão ardente dos seus crepúsculos, puxamos pela imaginação, ainda podemos reconhecer o som dos martelos e as vozes de tempos idos.
Ninguém estranhará que, com o controlo das fontes de recursos, as acções bélicas de Amílcar se destinassem a ampliar o território. Nem se estranha sequer que o dinheiro, toneladas de shekels de prata, começasse a fluir para a metrópole, enriquecendo, de caminho, a sua própria família.
Nem sequer que, sob o seu comando, o exército fosse crescendo com novos elementos aliados ou mercenários. Era impossível que tanta prosperidade não chamasse a atenção de Roma.
As actuais escavações no sítio arqueológico de Bolvir, em Girona, podem fornecer dados sobre a possível passagem de Aníbal por Cerdanha, ao transpor os Pirenéus.
“Foi essencial para Aníbal crescer na Ibéria”, diz o arqueólogo norte-americano Patrick Hunt, da Universidade de Stanford. “Foi aqui que ele aprendeu as tácticas militares do pai e cavalgou durante uma década junto dos celtiberos, que lhe permanecerão fiéis nas suas campanhas posteriores.” Aníbal, ou Hanni Baal, que em fenício significa literalmente “aquele que goza do favor do deus Baal”, é criado entre expedições militares e tutores gregos, entre a arte da guerra e a admiração por Alexandre Magno. “Aníbal vê-se a si próprio como o perfeito guerreiro helenístico, uma combinação de força e astúcia”, diz Giovanni Brizzi, historiador e professor nas universidades de Bolonha e da Sorbonne. Foi esta mistura explosiva que definiu a sua personalidade.
Amílcar Barca morre em 229 a.C. na batalha de Illici (cuja localização é disputada por várias localidades espanholas), durante uma escaramuça contra os oretanos. Aníbal tinha apenas 18 anos e os seus irmãos Asdrúbal e Magão eram ainda mais novos. Por isso, foi Asdrúbal, seu cunhado, que sucedeu ao estratego cartaginês. Asdrúbal mostrou uma atitude conciliadora. Mais favorável a pactos do que a campanhas militares, iniciou uma política de alianças, casando o jovem Aníbal com Himilce, uma princesa ibera de Cástulo, na actual Jaén, para pôr fim ao confronto com os oretanos e legitimar a ascendência na Península. Ainda assim, nomeou-o chefe de cavalaria, onde em seguida fez gala da sua habilidade para ganhar a estima dos veteranos a seu cargo, que viam nele a reencarnação de Amílcar. Asdrúbal tomou ainda duas decisões estratégicas: negociou um pacto de não-agressão com Roma e fundou uma capital nessa Ibéria praticamente conquistada.
O tratado do Ebro, subscrito entre Roma e Cartago em 226 a.C., teve por objectivo limitar os desejos expansionistas de ambas as potências, dividindo a Península Ibérica em duas áreas de influência e a fronteira no Ebro. Apenas um ano antes, em 227 a.C., Asdrúbal fundara a nova capital a sul do Ebro, na zona cartaginesa. A sua localização, num istmo, perto das minas e com saída directa para o Mediterrâneo era insuperável. Os cartagineses chamaram-lhe Qart Hadasht ou Cidade Nova. Muitos séculos depois, seria conhecida como Cartagena.
“As colinas, a lagoa e o próprio Mediterrâneo protegiam-na de forma natural. A muralha tornava-a inexpugnável”, comenta Carmen Berrocal, antiga directora de Património Histórico e Arqueológico da Câmara Municipal de Cartagena, enquanto passeamos de barco pela baía. “A partir daqui, vemos o que eles viram: uma localização privilegiada que reproduz de forma natural a disposição do porto da antiga Cartago.”
Fundada no século IX a.C. como colónia fenícia de Tiro, Cartago desempenhou um papel preponderante no Mediterrâneo até colidir com os interesses expansionistas de Roma, fundada cerca de 60 anos mais tarde. A luta entre as duas potências prolongou-se ao longo de 118 anos, em três confrontos, conhecidos como guerras púnicas.
Qart Hadasth transformou-se no sonho ibérico dos Bárcidas, nome da dinastia fundada por Amílcar Barca, mas durou pouco tempo. No início de 221 a.C., Asdrúbal foi assassinado e Aníbal, que teria na altura 25 anos, foi eleito por unanimidade pelo exército para lhe suceder no comando. A decisão seria ratificada pelo Senado de Cartago, apesar da oposição do aristocrata Hanão, seu rival político, que considerava o crescente poder dos Bárcidas uma ameaça. Longe da influência da oligarquia de Cartago, o novo general retomou a atitude beligerante do pai. Atacou a cidade principal dos ólcades, Althia, na actual província de Cuenca, enfrentou os vaceus, assaltando as cidades de Helmântica (Salamanca) e Arbocala, na província de Zamora; e os seus elefantes venceram uma grande confederação liderada pelos carpetanos nas águas do rio Tejo. O tempo das alianças chegara ao fim. Tanto Políbio como Tito Lívio dizem ser possível que Aníbal já estivesse então a reunir, através de saques de guerra, o dinheiro necessário para empreender uma campanha contra Roma. “Aníbal desejava criar uma identidade mediterrânea no Ocidente, tal como Alexandre Magno com a identidade grega no Oriente. Nessa equação, Roma está a mais”, afirma Giovanni Brizzi. “Mas, uma vez morto, quanto tempo durou o sonho de Alexandre?”. É uma pergunta interessante.
No Verão, Sagunto recebe-me, luminosa e alegre. Celia Peris, minha guia no castelo que já passou por centenas de mãos e um punhado de séculos de história, aponta o troço de muralha por onde os historiadores acham que, após mais de oito meses de cerco, as tropas de Aníbal entraram finalmente na cidade. “Foi a esta hora, ao entardecer, quando o Sol que se punha atrás da serra Calderona cegava parcialmente os defensores da muralha.” Ao observar o local que ela aponta, também sou obrigada a semicerrar os olhos. Depois de meses a analisar as estratégias do cartaginês, não pude deixar de pensar que era uma jogada muito característica de Aníbal.
A posição estratégica de Sagunto no Mediterrâneo transformara-a na desculpa perfeita, o casus belli de uma guerra que talvez Cartago não procurasse, mas que Aníbal parecia desejar. Roma oferecera protecção à cidade costeira embora a sua localização, a sul do Ebro, a situasse na zona de influência cartaginesa, o que representava uma violação do Tratado. Quando Aníbal avisou que marcharia contra a cidade rebelde, Roma avisou que tal acção representaria a violação de um tratado anterior, do ano 241 a.C., no qual Cartago se comprometera a nunca atacar um aliado de Roma. Estava dado o primeiro passo para a guerra.
Sagunto foi conquistada em 219 a.C. Os sobreviventes pediram ajuda a Roma, mas esta não respondeu. Limitou-se a enviar uma embaixada a Cartago para apurar responsabilidades. Os embaixadores romanos, liderados pelo cônsul Quinto Fábio Máximo, exigiram a entrega do general responsável pela campanha, mas Cartago recusou, temendo a popularidade de Aníbal. Segundo as crónicas, Fábio Máximo levantou as pregas da toga e, com uma mão de cada lado, disse: “Trago-lhes a paz e a guerra. Escolhei a que quiserdes.” O Senado cartaginês deixou a decisão nas suas mãos. Fábio Máximo soltou as pregas e sentenciou: “Então, a guerra.”
Desejava Roma essa guerra? Fábio Máximo sim, provavelmente. Bem gerida, poderia reverter em benefício da glória pessoal. E Cartago? “Os veteranos do primeiro conflito tinham morrido e ninguém parece recordar as consequências de um conflito dessa magnitude”, salienta Narciso Santos, catedrático de História da Universidade de Oviedo. “Na Ibéria cartaginesa, há uma nova geração no comando. São jovens e estão desejosos de entrar em acção.” Após a declaração de guerra, o Senado romano decidiu atacar por dois flancos, aproveitando o seu sistema de alternância de cônsules. O exército de Tibério Semprónio Longo dirigir-se-ia para a Sicília, prevendo atacar Cartago a partir da ilha. O grupo de Públio Cornélio Cipião encaminhar-se-ia para Massília (a actual Marselha), colónia grega aliada de Roma, para avançar dali para a Península Ibérica. Roma planeava desferir um golpe nos centros económicos de Cartago. Aníbal, contudo, apontou directamente ao coração de Roma.
A saga dos Cipiões
Conhecidos como Cipiões Cornélios, ou simplesmente Cipiões, esta influente família patrícia deu a Roma uma dinastia de generais e homens de Estado entre os séculos III e I a.C. Públio Cornélio Cipião filho (236-183 a.C.) teria cerca de 16 anos quando Aníbal transpôs os Alpes e marchou sobre Roma. Filho do cônsul com o mesmo nome e sobrinho do procônsul Cneo Cornélio Cipião, cresceu absorvendo as habilidades tácticas do general cartaginês e, quando o seu pai e o tio foram derrotados na Ibéria pelos exércitos púnicos, conseguiu ser enviado, apesar da sua juventude, para substituí-los no comando das tropas maltratadas.
Como que imitando as façanhas de Aníbal, Cipião foi acumulando êxitos que pareciam impossíveis aos olhos de outros. Conquistou a inexpugnável Qart Hadasht (actual Cartagena) e derrotou as tropas de Asdrúbal Barca na batalha de Baécula, mudando assim o rumo da segunda guerra púnica. Apesar da oposição do Senado, obteve o comando das chamadas legiões malditas e optou por combater Cartago no seu terreno, como Aníbal fizera em Itália. Muitos autores afirmam que aprendeu a pensar como o seu rival. A ameaça contra Cartago surtiu o efeito desejado e obrigou Aníbal a travar em Zama, no Norte de África, a única grande batalha que não conseguiu vencer. Nela, Cartago perdeu a segunda guerra púnica e Cipião ganhou um cognome, o Africano. Começava assim a hegemonia de Roma no Mediterrâneo.
Busto de Públio Cornélio Cipião, o Africano, Pórfiro, século XVII, Roma, Galeria Borghese.
O exército que partiu de Cartagena na Primavera de 218 a.C. marchava em três colunas separadas. Consigo visualizar o desfile: à frente, os cartagineses, armados com as suas espadas curtas, sob o comando de Magão. Na segunda, os mercenários norte-africanos e os aliados de Cartago: egípcios e núbios; massílios e getúlios, lotófagos e garamantes, com as suas roupas estranhas, peles escuras, adornos pavorosos e línguas ininteligíveis. E consigo recriar o momento: os seus hinos de guerra, a sua colecção de deuses, as lanças envenenadas e os capacetes decorados com mandíbulas de animais abertas. Atrás deles, os soldados celtas e iberos: asturianos e cantábrios, com os seus pequenos cavalos montanheses; galaicos, ceretanos e vascões, que se negam a levar capacete; ilergetes, habitantes de Tarraco e vetões, junto aos homens do Sul da Península, de Cástulo, Hispalis, Nebrissa e Carteia. Os últimos são os atiradores baleares, famosos em todo o Mediterrâneo pela sua pontaria mortífera. Atrás deles, fechando o grupo, uma imponente muralha móvel constituída por cerca de quarenta elefantes comandados por cornacas. “São uma potentíssima arma de guerra, o equivalente a um actual carro blindado para não mencionar o medo que inspiram”, explica John Prevas.
Patrick Hunt aponta outro motivo para Aníbal trazer elefantes nas suas fileiras: “Tanto Alexandre Magno como Pirro de Epiro utilizaram-nos nas suas campanhas e, mais uma vez, o general cartaginês imita os seus modelos. Já no século I d.C. Juvenal suspeitou que o mundo recordaria os elefantes de Aníbal.”
Só Asdrúbal, irmão de Aníbal, com 21 elefantes e um regimento de 15 mil homens, permaneceu na Ibéria, defendendo a retaguarda. O resto partiu de Cartagena rumo aos Pirenéus. Qual era o plano? Atravessar a Ibéria e a Gália a pé, transpor dois rios largos e duas enormes cordilheiras montanhosas e aparecer onde ninguém os esperava: na antecâmara de Roma. “Uma façanha digna de Herácles, com quem Aníbal desejava parecer-se”, comenta Giovanni Brizzi. Aníbal não deixou nada ao acaso. Nos meses antes da partida e numa tentativa de minimizar a possibilidade de deserções, fez um pacto com as suas tropas, enviando os africanos para a Ibéria e os iberos para África. Também enviou emissários para negociar alianças com os povos que encontraria ao longo do trajecto: o plano era enfrentar Roma como uma poderosa coligação de povos chefiados por Cartago. “Aníbal conseguiu mobilizá-los com um objectivo comum: travar o incipiente imperialismo de Roma”, afirma Abdelaziz Belkhoudja. Na opinião de Fernando Quesada, catedrático de História da Universidade Complutense de Madrid, só a existência de um objetivo comum e o inegável carisma do seu general explicam que um grupo de guerreiros de etnias tão diferentes funcionasse como um exército coeso.
A memória de s se exército formidável cujo efectivo demoraria horas a fio a desfilar perante os olhos assombrados de quem o visse passar poderia durar séculos, mas não é fácil reconstituir a rota que seguiu através do Nordeste peninsular. Tito Lívio é muito parco em palavras nesta fase da história: “Marchou ao longo da costa até ao Ebro. O seu passo seguinte foi submeter os ilergetes, os bargúsios e os ausetanos, bem como o território da Lacetânia, que se encontra no sopé dos Pirenéus.” No entanto, o pouco que a sua crónica reflecte é suficiente para questionar uma historiografia clássica que localiza a travessia do exército do cartaginês até à Gália em Coll del Pertús, a portela mais acessível dos Pirenéus Orientais, por onde passa actualmente a auto-estrada AP7 entre La Jonquera e Le Boulou, seguindo para terras francesas.
“É improvável que Aníbal marchasse por um lugar onde poderia ser atacado por colónias gregas amigas de Roma, como Ampúrias”, sublinha Oriol Olesti, arqueólogo e professor da Universidade Autónoma de Barcelona (UAB). Tal como outros historiadores actuais, como Pedro Bosch ou Avellá Vives, Olesti defende a alternativa da rota interior, a mais provável se também tivermos em conta que Aníbal foi obrigado a atravessar o Ebro não na sua foz – algo impraticável devido à existência do delta – mas a montante. O exército teria seguido o leito do rio Segre e atravessado a comarca de Cerdanha, descendo até Roussilion por Coll de la Perxa. Quanto ao tempo que as tropas de Aníbal demoraram nesta zona, cerca de três meses, comparados com os quatro dias que demoraram a alcançar o Ródano, podemos pensar que Aníbal perdeu tempo a negociar, ou a subjugar, os diferentes povoados da actual Catalunha. Se queria assegurar uma rota de abastecimento, não podia deixar inimigos à retaguarda. “É com esta hipótese que trabalhamos, a de confrontos bélicos pontuais devido à necessidade de ‘pacificar’ o território”, resume Oriol Olesti. Actualmente, o Departamento de História Antiga da UAB trabalha na Cerdanha em vários sítios arqueológicos de origem ceretana, entre os quais El Castellot, Bolvir, Tossal de Baltarga e Bellever. “Em Baltarga, encontrámos uma estrutura, seguramente um posto de vigilância, que parece completamente calcinado. Há restos ósseos, que o carbono 14 situa em datas compatíveis, de animais surpreendidos por um incêndio e não conseguiram fugir; há pendentes de ouro esquecidos em recipientes de cerâmica… Todo aponta para um ataque-surpresa, uma destruição violenta. E não podemos atribuí-lo a Roma, porque Roma só entraria nesta zona quase 50 anos mais tarde.” A paisagem que se estende em meu redor, talvez atravessada por Aníbal, é ampla e facilmente transitável. A cerca de mil metros de altitude, não é excessivamente alta, nem especialmente fria. Tento ver o que ele viu: há água e pastos em abundância e o local não parece prestar-se a emboscadas. As suas pradarias poderiam ter abrigado um exército com elefantes ou acolher longas reuniões com os líderes tribais. Na actualidade, Bellever continua a ser um local de passagem para Andorra e França, uma paisagem salpicada de aldeias pitorescas, em muitas das quais se começa agora a ouvir falar do general cartaginês.
O exército vai-se desagregando lentamente. Para assegurar o controlo da região recém-conquistada, Aníbal opta por deixar para trás um destacamento com cerca de 11 mil homens. Quando se espalha o rumor de que o objetivo final é Roma, cerca de 13 mil mercenários recusam-se a continuar. Em vez de os castigar pela desobediência, Aníbal decide dispensá-los. Não é altura de discutir. Precisa de um exército motivado. E prefere deixar na Ibéria a recordação de um general magnânimo. Talvez venha a ser-lhe útil.
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As fontes clássicas referem uma diminuição terrível do número de homens que acompanhavam Aníbal ao chegar às margens do Ródano. Deserções maciças e baixas poderão ter deixado o exército com apenas 38 mil soldados de infantaria e oito mil de cavalaria. Diante deles, apresentava-se um novo obstáculo. Não só o rio, que dividia a Gália em duas, mas também a primeira resistência humana desde a sua experiência em terras pirenaicas. Os volcas, um povo gaulês aliado de Roma, tinham-se concentrado na margem oposta do rio, dispostos a atacar no instante em que o cartaginês decidisse transpô-lo. Aníbal fingiu ignorar a sua presença na margem oposta, enquanto preparava a logística: confiscou embarcações e mandou construir balsas, que revestiu com terra e erva para “enganar” os elefantes que não estavam encantados com a ideia de uma travessia fluvial.
Entretanto, enviou um pequeno destacamento que atravessou o rio durante a noite, sem ser visto, num local a montante, para se posicionar na retaguarda do acampamento rival.
A travessia do Ródano tem a sua própria mitologia numa variedade de registos que tentaram assinalar uma proeza inédita: embarcações que transportam a cavalaria númida, outras rebocadas por cavalos que atravessam águas a montante para abrandar a corrente e permitir a travessia da infantaria a jusante, elefantes inquietos esperando a sua vez… Os volcas, o povo que poderia ter salvado a península Itálica, lançaram-se ao ataque, tentando travar os cartagineses, apercebendo-se tarde de mais de que outro grupo aparecia, repentinamente, atrás de si. O combate terminou a favor do exército púnico e toda a expedição, incluindo os elefantes, conseguiu atravessar o rio. Os machos subiram para as balsas camufladas, submissamente rendidos ao odor de uma fêmea. Aníbal enviou um pequeno contingente da sua cavalaria númida em missão de reconhecimento. Rio abaixo, o seu grupo de exploradores chocou com uma expedição de reconhecimento romana. As tropas consulares tinham acabado de desembarcar em Massília. Roma encontrara-os.
Públio Cornélio Cipião, pai daquele que viria a ser conhecido como Cipião, o Africano, acabara, efectivamente, de desembarcar em busca de Aníbal, ligando para sempre o nome da família dos Cipiões ao destino de Aníbal e ao de Cartago. Esperava chegar antes, mas uma revolta dos insubros e dos boios na Gália Cisalpina, porventura em conivência com Aníbal, atrasara a sua saída. Informado dos passos do cartaginês, o seu objectivo era travá-lo após a travessia dos Pirenéus por Aníbal, mas este adiantara-se. Foram os massílios quem o informaram de que Aníbal já atravessara o Ródano. Cipião enviou rapidamente os seus exploradores rio acima atrás dele, mesmo a tempo de encontrar a patrulha númida. Os sobreviventes trouxeram-lhe a notícia: os cartagineses estavam muito perto, tão perto que Cipião optou por interceptá-los naquele preciso local. Despachou o seu irmão Cneo para a Ibéria, abandonou a sua frota de 60 navios na foz do Ródano e avançou rio acima em busca do cartaginês. Aníbal decidiu retirar-se para o interior. Não havia tempo para travar uma batalha agora. Estava desejoso de enfrentar Roma, mas seria ele a escolher o momento.
Quando o cônsul romano chegou ao acampamento desfeito dos cartagineses, soube que estes levavam três dias de avanço. Contemplou o horizonte para tentar prever o seu próximo passo: a temível cordilheira dos Alpes interpunha-se como uma barreira granítica de cumes perpetuamente nevados, entre a Gália e Itália. O cônsul deve ter pensado que não era possível transpô-la. O Inverno aproximava-se. Aníbal jamais conseguiria atravessar a cordilheira com a sua corte de cavalos e elefantes: ela transformar-se-ia no túmulo do sonho púnico. Cipião rejeitou a ideia de perseguir Aníbal e marchou para dar a notícia a Roma. Existia uma possibilidade remota de o general cartaginês sobreviver. E se o fizesse, entraria pela porta das traseiras de Roma.
Aníbal sabia que Roma o aguardaria na Gália Cisalpina, quando os seus homens chegassem ao outro lado do maciço alpino. E os seus homens sabiam que ele sabia. Interrogo-me sobre que força de coesão, que promessa, que carisma é capaz de sujeitar um exército dizimado que há cinco meses marchava a pé sem descanso. Que pensariam quando deparassem com aquele obstáculo? Corria o mês de Outubro. Os aliados iberos, os mercenários africanos e os cavaleiros do deserto da distante Numídia, habituados a temperaturas mais altas, tremeram seguramente com o frio nocturno.
A travessia da cordilheira dos Alpes transformou definitivamente Aníbal num mito e a sua gesta numa lenda: emboscadas furiosas, portelas vertiginosas, um caos de rochas geladas… Duvido que o velho Sósilo fosse capaz, com os seus dedos gelados, de registar cada momento para a posteridade. Talvez os conservasse todos na memória e pedisse aos seus deuses para o manterem vivo durante tempo suficiente para poder passá-los mais tarde, já quente, a escrito. Terá recordado os ensinamentos sobre os heróis gregos que tinha semeado na mente do seu pupilo? Teria Aníbal querido imitar Héracles, como defendem alguns historiadores contemporâneos?
A travessia dos Alpes permitiu que Aníbal se aliasse a outros povos descontentes com o expansionismo romano. As tropas púnicas atravessaram a cordilheira alpina em Outubro de 218 a.C., com temperaturas abaixo de zero e as portelas cobertas de neve. Na fotografia, o maciço francês de Mont Cenis, onde se situa Col de Clapier, um dos pontos por onde Aníbal poderá ter atravessado os Alpes e descido até Turim.
“No dia seguinte, depois de os inimigos se retirarem, reuniu-se com a cavalaria e as mulas e avançou para o cume mais alto dos Alpes”, escreveu Políbio. Ao nono dia, chegou ao cimo destas montanhas […]. Era final de Outono e já estavam cobertas de neve […], quando, apercebendo-se de que os infortúnios passados e os que ainda os esperavam tinham abalado a moral das suas tropas, Aníbal convocou-as e procurou animá-las, valendo-se para tal de um único argumento: mostrar-lhes-ia Itália.”
Itália. A sonhada península Itálica. Não há muitas pistas sobre o itinerário concreto seguido por Aníbal através dos Alpes. A sua rota é, ainda hoje, como a dos Pirenéus, tema de polémica. Os dados dos cronistas são imprecisos e não há vestígios arqueológicos que sirvam de base. Há mais de dois milénios que autores e especialistas debatem a interpretação dos textos clássicos, baseando-se especialmente nesta descrição de Políbio, o único que percorreu os cenários da segunda guerra púnica e que recebera formação militar.
A cena narrada por Políbio seria ilustrada séculos mais tarde por pintores como o renascentista italiano Jacopo Ripanda, o classicista francês Nicolas Poussin, o romântico inglês William Turner e os espanhóis Agustín Navarro e Francisco de Goya. Este último retratou o momento em que Aníbal se dirigiu a um exército desmoralizado para lhe infundir o entusiasmo necessário para empreender a descida. No quadro, Aníbal mostra, a seus pés, o vale do Pó, como quem aponta para a terra prometida. Ali, assegura ele aos seus homens, outras tropas os aguardam para marcharem juntos contra Roma. Esta visão revela-se essencial para inferir o itinerário seguido pelos cartagineses.
Nos Alpes Setentrionais, há três portelas: Montgenèvre, Gran San Bernardo e Clapier. Todas permitem esta vista sobre o rio Pó, mas só a portela de Clapier, o local proposto pelo coronel Jean-Baptiste Perrin em 1883, acrescenta um pormenor: a panorâmica sobre Turim, uma das povoações, segundo Políbio, onde Aníbal se dirigiria em primeiro lugar. Em 2016, porém, a descoberta repentina realizada por um grupo de arqueólogos e biólogos da Queen’s University de Belfast forneceu um novo dado. O estudo de excrementos antigos encontrados em Col de la Traversette, numa zona de lama aluvial “intensamente pisada”, identificava uma grande quantidade de bactérias Clostridia, associadas ao esterco de cavalo, coincidentes com as datas da travessia. Terão passado por aquela tortuosa colina os milhares de cavalos montados pelos temíveis cavaleiros númidas? A descoberta foi recebida com entusiasmo, mas a investigação posterior não é conclusiva, embora tenha servido de suporte a uma tese defendida pelo biólogo britânico Sir Gavin de Beer desde 1955.
John Prevas é um dos autores contemporâneos que defendem essa hipótese: “O Col de la Traversette cumpre outros requisitos mencionados por Políbio: é a passagem de montanha mais alta”. Para assumir essa tese, porém, é preciso dar crédito ao historiador grego que cunhou a expressão “o cume mais alto” e entender que a expressão seria literal e não um mero recurso literário.
Mais uma vez, na minha imaginação, consigo ver os homens esgotados, apinhados diante do seu exultante general, com o olhar fixo dois mil metros mais abaixo, na planície padana. Imagino o simpático Sósilo a pôr por escrito o seu discurso e registando o número de baixas na crónica que nunca chegaria até nós. Fosse qual fosse o caminho escolhido, Aníbal acabava de entrar na história ao completar a proeza pela qual ainda o recordamos dois milénios mais tarde. Tem 25 anos, conduziu um exército misto de iberos e africanos ao limiar da resistência humana e sobreviveu. Mais abaixo, Roma e, junto dela, o destino do mundo conhecido, aguardam-no.
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