Amadeo de Souza-Cardoso: O génio que viveu furiosamente

Viveu a correr. Cedo abandonou Portugal, onde se sentia prisioneiro, mas foi um eterno descontente. Amadeo, pioneiro em Portugal das novas correntes artísticas do século XX, permanece um enigma para os historiadores mais de cem anos após a sua morte.

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Amadeu de Souza-Cardoso
Espólio amadeo de souza-cardoso | Fcg - biblioteca de arte

Retrato de Amadeo de Souza-Cardoso.

Há algo que nos continua a fascinar em Amadeo de Souza-Cardoso. Mais de cem anos após a sua morte prematura, a mística à volta daquele que foi um dos melhores pintores portugueses do século XX mantém-se viva. Talvez tal se deva ao fascínio que as suas obras, tão vanguardistas, continuam a causar a quem as observa; talvez seja a sua ânsia de criar, assente na experimentação e na terminante recusa de adesão a qualquer escola artística. Ou então a dúvida que nos perseguirá eternamente: até onde teria chegado a sua arte se a morte não o viesse buscar aos 30 anos? 

Nascido em Amarante, na localidade de Manhufe, em Novembro de 1887, o jovem Amadeo cedo mostrou o seu interesse pelas artes. São disso prova os desenhos e caricaturas que pululam nos seus cadernos de estudante ou ainda a pintura feita em precoce idade num armário na casa de família.

Repartindo o seu tempo de juventude entre a montanhosa Amarante e a litoral cidade de Espinho, onde a família tinha uma casa de férias, Amadeo absorveu de ambas as paisagens, as linhas, as gentes e a cor e luz, de um modo que o acompanharia até ao final da sua vida. 

A casa de Manhufe
Câmara Municipal de Amarante / Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso

Obra íntima, que mistura o presente, em 1913, com as suas próprias recordações de um dos lugares fundamentais da sua infância, esta "Casa de Manhufe" reproduz a torre senhorial da propriedade. (Pintura a óleo, c. 1913)

Filho de produtores vinícolas e grandes proprietários rurais, Amadeo cresceu numa família rica – financeira e culturalmente – e com abertura intelectual para perceber o seu valor artístico. Foi, portanto, de forma bastante natural que aos 18 anos, após concluir a 4.ª classe no Liceu de Amarante e os estudos secundários no Liceu de Coimbra, ingressou na Real Academia de Belas-Artes de Lisboa para seguir estudos de arquitectura. Datam desta altura as suas primeiras caricaturas, arte que marcou os primeiros anos da sua actividade artística. 

A vida na capital portuguesa cedo o desilude e são duras as palavras que usa para caracterizar a cidade e quem nela vive: “Lisboa é boa para conselheiros, pelintras – e para todos os outros mariolas”, escreveu. “O que ela não serve é para gente moça, para quem ainda tem no peito ilusões sagradas como ideais, como culto. Isto é: para uns, Lisboa serve apenas para estragá-los. Lisboa é um símbolo, o resumo da torpeza nacional: aos que não corrompe, enoja-os.” 

Humor e Caricatura
Paulo Costa / Cam - Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa

Desde tenra idade que Amadeo revelou capacidade de se rir de si próprio, como nesta sequência de auto-retratos, desenhados em 1910, em Paris.

Nesta curta passagem, ficam claras duas lições. O poder de observação associado à qualidade literária do artista, reflectida nesta e em muitas outras cartas que foi trocando ao longo da vida com familiares e amigos. 

A sua correspondência epistolar, recompilada em parte na sua fotobiografia publicada em 2016 pela Fundação Calouste Gulbenkian, mostra uma personalidade sensível, extremamente atenta ao mundo à sua volta, seja esse mundo expresso nas formas de ser dos que o rodeiam, seja nas diferentes paisagens que vai conhecendo. 

Amadeo não fica com a melhor impressão da capital portuguesa: “Lisboa é um símbolo, o resumo da torpeza nacional: aos que não corrompe, enoja-os.” 

A segunda lição é a sua sede de novidade e recusa da estagnação. Recusando o torpor que impede de medrar, Amadeo era inconformista por definição, ambicionando sempre mais, melhor e diferente do que o que tinha por garantido. É esse inconformismo que, apenas um ano após chegar a Lisboa e no dia em que cumpria 19 anos, o leva a emigrar para Paris, o epicentro mundial da novidade e da experimentação. Partindo com a promessa feita aos pais de continuar a cursar arquitectura, a arte rapidamente passaria a consumir todo o seu tempo e espírito. 

Apesar da idade, o jovem que parte para Paris é já, fruto das ligações pessoais e dos seus próprios méritos, um homem com ligações a uma elite cultural nortenha onde se inclui Manuel Laranjeira, com quem convivia em Espinho, e o poeta e seu conterrâneo Teixeira de Pascoaes. À chegada à capital francesa, é Acácio Lino, pintor e também amarantino, quem o espera. 

Rapidamente Amadeo se liga ao grupo de artistas portugueses aí residentes e que seriam nos primeiros meses os seus grandes amigos, com destaque para Domingos Rebelo, Eduardo Viana, Manuel Bentes e Emmerico Nunes. Ficaram como registo dessa época várias fotos e caricaturas com os seus pares. 

Los borrachos 280 anos mais tarde
Espólio Amadeo de Souza-Cardoso / FCG - biblioteca de Arte

Numa visita ao Museu do Prado, em Madrid, Amadeo ficou vivamente impressionado com Los Borrachos, óleo de Diego Velázquez, pintado entre 1626 e 1628. Em farras com os amigos de Paris, o pintor (que mostrou sempre uma acentuada veia teatral) encenou uma reconstituição do quadro, em 1908. Amadeo posa como Baco. Pedro Cruz ajoelha-se perante a divindade. Domingos Rebelo representa de tronco nu o lado divino, ao passo que cabe a Emmerico Nunes e Manuel Bentes o papel de replicar os dois bêbedos à direita de Amadeo.

A caricatura, arte na qual se havia iniciado anos antes, ainda em Portugal, continua a fazer parte do quotidiano de Amadeo nos seus primeiros anos em Paris, servindo certamente de escape a um cada vez menos motivador curso de arquitectura. Confessando-se à sua irmã Helena, o futuro pintor afirma que em Paris “respira-se, em Portugal abafa-se”. E no ar fresco da capital francesa, Amadeo vai absorvendo tanta arte quanto possível, visitando galerias e exposições, bem como assistindo a concertos, numa ligação à música que trazia de Portugal. 

Em Paris “respira-se, em Portugal abafa-se”, desabafou Amadeo com a irmã.

A paixão pela música, pelos seus executantes e seus instrumentos seria reflectida em vários dos seus quadros; e logo em Março de 1909, no número 159 da revista “Ilustração Portugueza”, Amadeo publicaria uma caricatura das virtuosas irmãs Guilhermina e Virgínia Suggia, após assistir em Paris a um concerto de ambas. 

Paris, centro de cultura 

Paris servia também de ponto de partida para outras viagens. Da Bretanha, onde passou alguns meses em 1907 e 1912, a Bruxelas, onde durante a Exposição Universal de 1910 passaria “os dias com alguns pintores primitivos que são os meus ídolos”, passando por diversas cidades espanholas onde parava nas suas idas e vindas entre Paris e Amarante, a viagem e a descoberta foram fundamentais e essenciais na vida de Amadeo de Souza-Cardoso. “As viagens, então, são o grande livro do artista. São-lhe tão necessárias como a Bíblia e o latim a um padre”, escrevia numa missiva enviada à mãe. 

A exposição universal
Biblioteca do Congresso

Em 1900, Paris organizou a Exposição Universal para celebrar as conquistas do século XIX. A cidade inaugurou então a Gare d'Orsay e a roda gigante. Amadeo dirá: "Em Paris, respira-se; em Portugal abafa-se."

Em 1908, ano em que conhece Lucie Pecetto, com quem viria a casar em 1914, Amadeo abandona definitivamente a arquitectura e decide dedicar todo o tempo à sua procura e definição artísticas. Voltando-se para a pintura e para o desenho, o artista experimenta e desenvolve-se em vários registos. No desenho, os magníficos “XX Dessins” (1912) serão um marco na sua obra; na ilustração, o exemplar único que Amadeo produz da obra de Gustave Flaubert, La Légende de Saint Julien L’Hospitalier (1912), mostra o artista que arrisca, que experimenta, que se excede, que se supera. 

No início da segunda década do século, além da comunidade portuguesa, o amarantino trava amizade com artistas franceses e estrangeiros que, em Paris, procuravam definir os novos rumos das artes. Numa época em que alguns artistas eram já nomes reconhecidos – como Georges Braque e Pablo Picasso, “pais” do cubismo – outros, como Amadeo, trabalham para merecer um lugar junto dos melhores.

“As viagens, então, são o grande livro do artista. São-lhe tão necessárias como a Bíblia e o latim a um padre”, escrevia o pintor numa missiva enviada à mãe. 

Das amizades de Amadeo, podemos destacar escultores Constantin Brancusi e Alexander Archipenko, bem como aquele que seria seu grande amigo e que muito choraria a sua morte, o seu homónimo Amedeo Modigliani. Com este, no início de 1911, inaugura uma exposição conjunta no atelier onde o português expõe alguns dos seus desenhos. Entre os visitantes desta exposição contam-se várias figuras da elite intelectual e artística parisina, destacando-se Pablo Picasso e Guillaume Apollinaire

Paris, 1907
Espólio Amadeo de Souza-Cardoso | Fcg - biblioteca de Arte

No atelier de Acácio Lino, em Paris, reunia-se a nata da geração artística emigrada. Amadeo é o primeiro na segunda fila, à direita. Por cima, está Emmerico Nunes e em baixo Acácio Lino.

Começa então a rápida e sólida afirmação de Amadeo entre os seus pares. Afastando-se dos seus amigos compatriotas que, segundo ele, “marcham numa rotina atrasada”, o artista vai levar a sua arte a algumas das mais consagradas exposições do seu tempo. Logo em 1911, expõe no XXVIIe Salon des Indépendents, onde estariam também expostos trabalhos de artistas como Fernand Léger e Robert Delaunay. Este último, juntamente com a sua esposa Sonia, tornar-se-á um amigo próximo de Amadeo. 

Em Paris, o artista queixava-se da “atmosfera parda e sol anémico”. Em Manhufe, dizia-se “farto da vida no campo” e do “sinistro Inverno”.

No ano seguinte, volta a expor no Salon des Indépendents, seguindo-se nesse e nos anos sucessivos exposições em França, Alemanha e Estados Unidos. De entre as várias exposições, destacam-se o X Salon d’Automne (Paris), a Erster Deutscher Herbstsalon (Berlim) e o Armory Show (Nova Iorque, Chicago e Boston). Com a inclusão de vários trabalhos em algumas das mais notáveis e disruptivas exposições do início do século XX, Amadeo afirma-se como parte integrante da elite artística da sua época, colocando-se entre os precursores dos novos rumos da pintura. 

O pintor não esquecera Portugal. Não só voltaria várias vezes a Amarante, como as paisagens do seu país natal estiveram muitas vezes representadas nas suas obras. O início da Grande Guerra levaria a que Amadeo passasse mais tempo em Portugal, para onde viria também o casal Delaunay, fixando-se em Vila do Conde, e com quem se encontraria por diversas vezes, discutindo potenciais trabalhos conjuntos. 

Edição Única
Carlos Fernandes Esteves Azevedo / Cam - centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa

Em 1912, Amadeo realizou um exemplar único com 12 ilustrações de La Légende de Saint Julien L'Hospitalier, de G. Flaubert. Em 2006, o trabalho foi por fim publicado.

Esta estada forçada no país reforça a sua vontade de regressar a Paris, por várias vezes declarada. Como se depreende pelos textos das suas cartas, Amadeo só por curtos espaços de tempo era feliz estando fixo numa localidade. Necessitando constantemente de mudar de realidade e de estímulos, os sentimentos de Amadeo variavam constantemente, culminando sempre numa nova partida: em Paris, o pintor queixava-se da “atmosfera parda e sol anémico”; em Manhufe, dizia-se “farto da vida no campo” e do “sinistro Inverno”. Estas variações de estado de ânimo eram reconhecidas pelo próprio que, em carta a Lucie, confessava ter “um espírito complicado, susceptível de crises, que o [seu] estado moral e intelectual sofre sem cessar manifestações violentas de toda a sorte e que [tem] mais fases do que a Lua”. 

O início da Grande Guerra levaria a que Amadeo passasse mais tempo em Portugal do que previa. 

Apesar das dificuldades que encontrava em Manhufe, desde logo a falta de material para as suas obras, Amadeo afirma em carta enviada em 1916 a Sonia Delaunay que a sua “moral é muito forte” e que “trabalha furiosamente”. Os resultados desse furioso trabalho seriam expostos no final desse ano de 1916 nas cidades de Porto e Lisboa. 

Estas exposições, que o próprio Amadeo definiu como as primeiras grandes exposições de pintura moderna em Portugal, deram a conhecer os trabalhos do amarantino a milhares de conterrâneos. Tal foi conseguido não sem polémica, em particular na exposição no Jardim Passos Manuel, no Porto, onde Amadeo chegou a ser agredido. 

As exposições tornam-se um marco do modernismo português, embora Amadeo fosse peremptório na não-adesão a qualquer escola. Em entrevista concedida a propósito das exposições e da variedade de estilos que atravessam as suas obras, Amadeo responde insistindo na sua plena liberdade artística: “Eu não sigo escola alguma. As escolas morreram. Nós, os novos, só procuramos a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstracionista? De tudo um pouco. Mas nada disso forma uma escola.” 

A Chalupa, pintura a óleo, cerca de 1914-195.
Paulo Costa / Cam - Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa

Com Amedeo Modigliani, alma artística gémea (também ele falecido prematuramente), Amadeo de Souza-Cardoso encontrou o prazer das cores intensas, capazes de emprestarem expressividade às obras. De Henri Rousseau, da geração francesa anterior à dos dois Amadeus, o pintor português absorve a paixão por temas naturalistas, de realidades simples e que progressivamente o aproximaram do abstraccionismo. No seu programa ideológico, Amadeo juntou estas duas influências em vários trabalhos sobre o mar e os Descobrimentos Portugueses. As embarcações perdem-se na imensidão dos oceanos, metáfora de vários períodos da vida do amarantino. Em "A Chalupa", as vagas transformam-se em montanhas azuis que tudo consomem.

Nós, os novos, só procuramos a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstracionista? De tudo um pouco. Mas nada disso forma uma escola.” 

Entre as várias críticas e opiniões emitidas sobre a obra de Amadeo, onde a estranheza era ponto comum, destaca-se a opinião elogiosa de Almada Negreiros que, no folheto que acompanhava a exposição do pintor amarantino na Liga Naval de Lisboa, escreveria que Amadeo era “a primeira descoberta de Portugal na Europa do século XX”. Com Almada, estaria presente no primeiro e único número da revista “Portugal Futurista”, tendo o par trabalhado em conjunto e produzido a obra K4 O Quadrado Azul, em 1917. 

O final funesto 

Não conseguindo regressar a Paris, Amadeo refugia-se em 1918 na casa de férias da família, em Espinho, tentando aí escapar ao surto de gripe pneumónica. Em Outubro, no mês em que morreu, dava já conta em carta endereçada ao seu irmão António dos seus medos: “Não sei quê que me diz que vai haver grande mudança na vida da nossa família. Será pessimismo meu, oxalá!” 

A pneumónica teria um efeito devastador a nível global, do qual a família Souza-Cardoso não ficaria isenta. Poucos dias após a perda de uma das suas irmãs, Amadeo de Souza-Cardoso morreria em Espinho, no dia 25 de Outubro de 1918. Para o futuro, ficou a vida e obra de um eterno inconformado que, tanto tempo depois, nos continua a fascinar.

Amadeo na cultura popular

A Vida de Amadeo de Souza-Cardoso tem sido retratada em diversos formatos da cultura popular ao longo dos anos. Entre outros, podem destacar-se o romance Amadeo, de Mário Cláudio, os filmes Crime Azul, de Edgar Pêra, Máscara de Aço contra Abismo Azul, de Paulo Rocha, e o recente Amadeo, de Vicente Alves do Ó. Outros formatos incluem o livro infantil Histórias em Ponto de Contar, de Maria Alberta Menéres e António Torrado, ou a banda desenhada Amadeo, de Jorge Pinto e Eduardo Viana (em cima). É um desdobramento notável para um artista cujo tempo de vida foi tão curto.

Artigo publicado originalmente na edição nº13 da revista National Geographic História.