Nas Universidades de Cádis e Sevilha, em Espanha, um grupo de especialistas em história, arqueologia e tecnologia dos alimentos desenvolveu um curioso projecto de reconstrução e reprodução experimental do processo de elaboração do famoso garum, um molho de peixe em nome do qual os romanos moviam montanhas. Apelidado de “Flor de Garum” e premiado em vários festivais, o produto já foi testado por chefs e será comercializado no Sul de Espanha, voltando a desafiar os paladares ibéricos. É intrigante que poucos produtos alimentares romanos tenham sobrevivido até aos nossos dias, mas, na verdade, ainda desconhecemos muito sobre o regime alimentar do período romano. E isso vai mudar.
A nossa cultura construiu preconceitos sobre as refeições faustosas e exóticas do mundo romano.
Junto da imponente Anta Grande do Zambujeiro, a maior da Península Ibérica, no meio de uma explosão de cor e forma típica do montado na Primavera alentejana, nada levaria a crer que Cristina Dias, química do Laboratório hercules, investiga a dieta de um império de há dois milénios. A nossa cultura construiu preconceitos sobre as refeições faustosas e exóticas do mundo romano, mas, na verdade, a investigação académica ainda não se debruçou sobre a dieta da Antiguidade e há um mundo de oportunidades associadas a esta linha de investigação.
“As opções na mesa não são normalmente escolhas pessoais”, assegura a investigadora a propósito do novo projecto heroica. “Resultam da condição social ou de classe, das crenças religiosas, do género e do grupo étnico.” As fontes documentais e a informação arqueológica permitem concluir que os cereais seriam a base da dieta romana, a par do azeite, do vinho e dos legumes secos. A carne de porco e de vaca, os produtos lácteos e o peixe proporcionariam proteínas animais, mas o acesso a estes produtos era limitado. Alguns estudos europeus reforçam esta teoria, mas também revelam variação da disponibilidade de proteína animal e de peixe em função do género, idade e região. O estatuto social seria, sem dúvida, outro elemento diferenciador.
As fontes documentais e a informação arqueológica permitem concluir que os cereais seriam a base da dieta romana, a par do azeite, do vinho e dos legumes secos.
A informação documental sobre o que se comia e bebia no Império Romano está dispersa em textos de diferentes autores e períodos.
A produção de alimentos é relatada em “Naturalis Historia”, de Plínio, o Velho, “De Re Rustica”, de Columela, e “De Agricultura”, de Cato. As dietas são descritas em tratados médicos como “Materia Medica”, de Dioscórides e podem até encontrar-se receitas culinárias em “De Re Coquineria”, atribuído a Apício. No entanto, os métodos científicos de ponta, suportados pelo equipamento tecnológico do hercules, sugerem que é possível conhecer bastante melhor os hábitos alimentares de Roma e a sua expansão ao longo do império.
“A ciência pode ajudar à obtenção de uma visão renovada dos vestígios arqueológicos”, explica Cristina Dias. “O material cerâmico é poroso e pode reter a assinatura química de alimentos cozinhados ou armazenados no seu interior. As análises químicas e isotópicas dos tecidos ósseos podem ser usadas para determinar a dieta dos falecidos e alguns indicadores de saúde de uma população, podendo até revelar se o seu lugar de nascimento difere do local de inumação.” Por outras palavras, a multidisciplinaridade deste projecto pode fornecer respostas a questões que por ora permaneciam insolúveis.
A investigadora Cláudia Umbelino abre um dos armários da colecção de crânios da Universidade de Coimbra, onde são estudados esqueletos romanos escavados no Alentejo. O espólio osteológico de Coimbra é um dos mais valiosos do país, abrangendo diversos períodos da história humana.
Noutro pólo de investigação do heroica, no Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra (UC), a antropóloga Cláudia Umbelino percorre os corredores de um sótão no mínimo insólito: armário após armário, centenas de crânios fitam o olhar no vazio, emprestando ao ambiente um tom tenebroso a que o repentino calafrio sentido não será alheio. Numa sala contígua, um esqueleto escavado por Conceição Lopes, também investigadora da UC, está em reconstrução. “O objectivo é uma investigação sincrónica e diacrónica das dietas antigas, da saúde e da mobilidade dos habitantes de Pax Iulia (Beja) e da zona rural envolvente, durante os sete séculos de ocupação romana”, refere a arqueóloga, que coordenou várias escavações no distrito de Beja.
Os romanos chegaram ao Sul de Portugal na segunda metade do século II a.C., sem que a resistência tenha sido significativa por parte da população local.
A equipa espera perceber se a romanização influenciou a dieta e a condição de saúde das populações, uma vez que a alteração do regime de ocupação das terras agrícolas e das técnicas de produção de alimentos introduzidas pelos novos ocupantes terá induzido mudanças nos hábitos locais. Geograficamente, o foco da investigação centra-se tanto em sítios rurais como urbanos, proporcionando informação variada, dados os diferentes tipos de populações: villae romanas de São Cucufate e Monte da Cegonha (que evoluíram consideravelmente durante a época em que constituíram núcleos de moradias e explorações agrícolas) e o núcleo urbano de Myrtilis (Mértola), para além de Pax Iulia. Estes locais representam alguma da diversidade socioeconómica da época. Os romanos chegaram ao Sul de Portugal na segunda metade do século II a.C., sem que a resistência tenha sido significativa por parte da população local.
A colónia de Pax Iulia tornou-se durante a época romana uma das mais importantes metrópoles da Lusitânia.
Sob influência púnica desde a queda do reino de Tartessos, no Sudoeste da Península Ibérica, mantinha um forte elo comercial com o mundo mediterrânico e fenício, no qual, pelo porto de Mértola (Myrtilis), toda a região meridional beneficiava. Fundada sob o reinado de Augusto, nas últimas duas décadas do século I a.C., a colónia de Pax Iulia tornou-se durante a época romana uma das mais importantes metrópoles da Lusitânia. O seu posicionamento geográfico permitiu evidenciar-se, em parte devido às trocas comerciais através de Myrtilis. Por seu lado, no espaço rural, a nova ordem social romana trouxe alterações na ocupação, com a criação de villae de finais do século I a.C. em diante. Esses núcleos rurais eram quase auto-suficientes, com zonas definidas de habitações, armazenamento, unidades pecuárias e de transformação de produtos agrícolas.
Dentes humanos do período romano, aos quais o Laboratório HERCULES faz análises químicas e isotópicas para identificar a dieta à época.
Em busca de mais pistas sobre a dieta romana, rumamos a norte. Sob o sol intenso do areal de Tróia, a arqueóloga Inês Vaz Pinto caminha em direcção ao maior complexo de salga de peixe conhecido no mundo romano. Construído no século I, este conjunto de ruínas romanas tem inúmeros vestígios de hábitos alimentares. Com o estuário do Sado em fundo, dezenas de tanques de salga encontram-se alinhados.
O complexo chegou a ter 25 oficinas de diferentes dimensões. A maior ultrapassaria mil metros quadrados e capacidade de produção seria de 465m3. Neles, produziram-se durante um longo período conservas e garum. Para além do património edificado, as campanhas de escavação revelaram artefactos de cerâmica, nomeadamente ânforas, restos de crustáceos e de espinhas de peixe, muitos encontrados em antigas lixeiras da época.
Como todos os impérios, Roma nasceu, floresceu e tombou. O motivo é ainda hoje tema de discussão. Surpreendentemente, a resposta pode também estar… no prato. Uma das hipóteses que a equipa do heroica investiga é a possibilidade de o consumo intensivo de um composto resultante do fervimento de vinho em recipientes de chumbo, do qual resultava um molho similar ao moderno ketchup, muito apreciado para temperos, ter deteriorado significativamente a saúde em diferentes pólos do império.
Para além do património edificado, as campanhas de escavação revelaram artefactos de cerâmica, nomeadamente ânforas, restos de crustáceos e de espinhas de peixe, muitos encontrados em antigas lixeiras da época.
A hipótese académica foi proposta na década de 1980 num artigo escrito por Jerome Nriagu no prestigiado “New England Journal of Medicine”: o autor sugeriu então que o consumo repetido de vinho fervido ou mosto em recipientes recobertos com uma liga de chumbo e prata, o stagnum, que se tornavam doces devido à formação de acetato de chumbo, terá jogado um papel considerável no declínio do próprio império pelo envenenamento lento de quem o ingeria. Nriagu foi muito criticado pelo excessivo optimismo das suas generalizações face aos dados da amostra e pela sua certeza (ainda por provar) de que o vinho adocicado era preferido pela aristocracia em prejuízo do “vinho fresco”, mas a verdade é que a sua hipótese não foi totalmente abandonada.
“Sapa, defrutum ou carenum eram produtos com diferentes teores de acetato de chumbo obtidos utilizando tempos diferentes de redução do vinho ou mosto original”, explica Cristina Dias. Escasseiam materiais arqueológicos que suportem a certeza da abundância de recipientes de chumbo no mundo romano (provavelmente porque os revestimentos de chumbo dificilmente resistiriam durante dois mil anos), mas conhecem-se textos clássicos que advogam as “vantagens” do seu uso. Plínio, o Velho, e Columela referem muito explicitamente que os recipientes de bronze afectam a qualidade da bebida, pois produzem uma espécie de “ferrugem”, ao passo que o stagnum não produziria consequências visíveis a olho nu no preparado. Na sua “Naturalis Historia”, Plínio comentou mesmo que o romano médio beberia 1 a 5 litros de vinho por dia.
Em Tróia, foram encontrados artefactos cerâmicos ligados à indústria alimentar do Império Romano. As escavações arqueológicas permitiram descobrir restos de crustáceos e moluscos (em baixo), assim como resíduos de peixe (principalmente sardinha) utilizado na confecção de garum, que era preparado em grandes tanques de salga (em cima). Estes tanques não serviriam para armazenamento.
Sabe-se hoje que o envenenamento por chumbo provoca loucura e degeneração mental, e poderá não ter sido meramente acidental o rol de demências descritas nas crónicas de época. Em artigo de 2010 no “Journal of Chemical Education”, Aravind Reddy e Charles Braun, químicos no Dartmouth College, defenderam que, para além dos revestimentos de chumbo, a aristocracia romana utilizaria igualmente produtos de cosmética com este metal e médicos romanos, como Celsus, usá-lo-iam com frequência nas suas poções e preparados farmacológicos. Juntem-se ainda as escavações arqueológicas em Herculano e as análises osteológicas, que permitiram saber que 6 dos 55 esqueletos testados continham teores de chumbo muito mais altos do que o normal (100 a 200 ppm, em comparação com o padrão 20-50 ppm dos Estados Unidos). A hipótese ganha assim um pouco mais de consistência.
Terá algo tão banal como um hábito alimentar ajudado a fragilizar um império?
As classes mais altas de Roma, que decidiam os destinos do Império, estariam assim em contacto com materiais de chumbo com mais frequência. Uma das linhas de investigação do heroica tenta perceber a validade desta hipótese: terá algo tão banal como um hábito alimentar ajudado a fragilizar um império? Parte da resposta poderá em breve assomar no horizonte, algures entre as suaves curvas das planícies alentejanas…
Entretanto, de volta a Cádis, o projecto “Flor de Garum” recebeu mais um prémio, alimentando a vontade de sabermos mais sobre o que comiam os romanos e por que motivo as suas iguarias não sobreviveram até aos nossos tempos.