A bisneta do divino Augusto não se quis conformar com o papel secundário que a sociedade romana conferia às mulheres. Por isso, depois de desposar o seu tio, o imperador Cláudio, gizou um plano para que o seu filho Nero fosse coroado. No final, este acabou por mandar assassiná-la.
Bisneta do divino Augusto (fundador do Império), neta de Tibério e filha do grande Germânico, irmã de Calígula, esposa de Cláudio, mãe de Nero… Essa era Agripina, a Jovem, a matrona mais ilustre de Roma. Quebrou as barreiras que deveriam prendê-la ao lar, ocupando-se dos assuntos domésticos, a obrigação das mulheres virtuosas da época. Foi a primeira a alcançar a dignidade de Augusta em plena juventude, distinção que a colocou ao mesmo nível do seu esposo.
Os antigos historiadores (embora nenhum tenha sido seu contemporâneo) viram na relevância pública de Agripina uma vulnerabilidade flagrante da estrutura patriarcal na qual assentava a sociedade romana. A partir dessa perspectiva, foram bastante hostis para a sua figura. Enquadraram a sua conduta no estereótipo aplicado às mulheres rebeldes que não se sujeitavam às normas e, assim, os seus actos foram apresentados como fruto da irracionalidade, de uma sexualidade desenfreada, da falta de escrúpulos e de uma ambição desmedida. Agripina passou à história com esse pesado fardo que, aos poucos, começa a ser examinado criteriosamente.
Pais famosos
Mulher de personalidade forte, Agripina recebeu uma sólida educação, escreveu as suas memórias nas quais, segundo o historiador Tácito, que as conseguiu consultar, “deixou para a posteridade recordações da sua vida e das infelicidades da sua família”. A perda de tal documento deixou-a à mercê das palavras de outros. Não existe qualquer dúvida sobre a sua inteligência e também não existem dúvidas sobre a sua determinação, força e conhecimento da corte imperial, onde cresceu e onde o seu carácter foi forjado na dor.
A família Júlio-Cláudia. Os cinco césares desta dinastia imperial fizeram parte de uma complexa rede de parentesco, como se pode apreciar nesta árvore genealógica (simplificada).
Agripina nasceu num acampamento militar nas margens do Reno, fruto do casamento mais popular e estimado de Roma: Germânico, o sobrinho e filho adoptivo do imperador Tibério e candidato à sua sucessão, e Agripina, a Velha, a neta favorita de Augusto. O futuro do casal foi travado de forma dramática quando a pequena tinha somente 4 anos: o pai morreu envenenado na Síria, um crime que a mãe atribuiu sempre ao próprio Tibério, receoso de que a popularidade de Germânico entre o exército acabasse por destroná-lo.
Responsável ou não pelo crime, o imperador Tibério negou ao filho adoptivo a honra de se despedirem dele com um funeral público. A viúva, a indómita Agripina, a Velha, que vinha da Ásia com as cinzas do seu marido, desafiou-o abertamente.
Investida da maior dignidade, tomou nas suas mãos a urna com as cinzas e, acompanhada dos filhos e por uma enorme multidão de cidadãos compungidos, atravessou em silêncio as ruas de Roma até ao mausoléu de Augusto, onde as depositou. Tibério jamais lhe perdoou tal desafio. Poucos anos depois, mandou assassinar os seus dois filhos mais velhos, e ela própria foi desterrada para uma ilha, onde morreu de inanição. Estes horrores, vividos pela jovem Agripina com uma dolorosa impotência, deixaram no seu ânimo uma marca indelével. Agripina decidiu não enfrentar o poder e proteger-se na discrição do casamento.
O Palatino. Na colina do Palatino, erguem-se as residências dos distintos imperadores. Panorâmica das ruínas do Palatino a partir da antiga localização do Circo Máximo, o maior hipódromo do mundo romano.
Sobreviver a Calígula
Com a subida ao trono imperial do seu irmão Calígula (que poderá ter ajudado Tibério a descer ao reino dos mortos), Agripina saiu para a luz da ribalta. De facto, a imagem mais antiga que nos chega dela encontra-se numa moeda cunhada no ano 38. Na face desta, figura a efígie de Calígula; no reverso, as suas irmãs Drusila e Livila, que representam a Concórdia e a Fortuna, enquanto Agripina, apoiada numa coluna, encarna a Securitas, a segurança e a força do Império. O imperador cobriu as suas três irmãs de honras, incluiu-as nas orações oficiais e até os cônsules concluíam as suas propostas no senado com a fórmula: “Que seja bom e venturoso para Caio César e suas irmãs.”
A vida de Agripina entrava num período de brilhantismo e de popularidade que culminou, aos 22 anos, com o nascimento do seu único filho varão, Nero, filho de Cneu Domício Enobarbo, que morreu quando o menino tinha apenas 3 anos. Desde o momento em que soube que gerara um varão, Agripina acalentou o objectivo de conseguir o manto púrpura para ele. Uma ambição legítima, apoiada pela extraordinária nobreza da sua estirpe e pelo costume das matronas romanas de trabalharem a favor dos seus. A isto juntava-se uma forte inclinação pessoal pela política. Numa sociedade que relegava as mulheres para a esfera doméstica, era impensável que ela, por si só, conseguisse desenvolver tal vocação. Confiava em satisfazê-la indirectamente, através de Nero. Seria uma tarefa árdua e perigosa.
Agripina, a Velha, desembarca em Brindisi com as cinzas do marido germânico. Hamilton Gavin. Século XVIII. Tate Collection.
Calígula ficou gravemente doente e, quando recuperou a saúde, iniciou uma fase sangrenta de eliminação de rivais que fazia lembrar os piores tempos de Tibério. Se Agripina se apercebeu do perigo, não o conseguiu evitar. Talvez, tal como sugerido por alguns historiadores, tenha conspirado contra o irmão e tenha sido descoberta. Em todo o caso, acusada de conduta imoral, foi condenada ao desterro. Um ano mais tarde, o assassínio de Calígula deu origem a graves revoltas. O seu tio paterno, Cláudio, tomou o poder. Revogou a condenação da sobrinha e permitiu que esta regressasse à urbe. Depois de enviuvar, Agripina casou-se de novo e afastou-se de Roma com o seu pequeno Nero.
Matrimónio imperial
Oito anos depois, Cláudio enviuvou. Na sua busca por uma nova esposa, Agripina (que enviuvara pela terceira vez) era a candidata de maior e mais indiscutível posição e a última sobrevivente da sua família. Jovem, bela e de honestos costumes, entre os seus méritos figurava o de trazer consigo o seu filho,“neto de Germânico, verdadeiramente digno da condição imperial”. Sempre sagaz, Agripina colocou como condição que Nero se casasse com Octávia, a filha mais nova do imperador. Era inegável que o matrimónio entre Cláudio e Agripina, celebrado no ano 49, era conveniente aos dois. A nova e enérgica imperatriz despertava entusiasmo e respeito. Agripina emanava autoridade e isso rendia-lhe frutos. Com habilidade e tacto, estabeleceu uma relação fluida com o Senado, impôs ordem e moderação na corte e resolvia com o seu marido os problemas do Império. Fez-se merecedora do título de Augusta, que se assemelhava à dignidade e autoridade do imperador, com o qual se apresentava sempre ao lado em público – algo inédito até então – sem que, ao que parece, fosse reprovada pelos seus contemporâneos.
Mausoléu de Augusto. Ao centro da imagem, identifica-se o mausoléu deste imperador, onde foram sepultados vários membros da sua família, e à esquerda, junto do Tibre, o Museu de Ara Pacis.
Em certa ocasião, um rei bretão, a sua mulher e filhos, prisioneiros de guerra, foram exibidos, acorrentados, pelas ruas da cidade e concluíram o seu percurso perante Cláudio. Sentado num trono sobre um palanque, rodeado de pretorianos, o imperador, comovido ao ouvir o discurso do condenado, perdoou-lhes a vida e libertou-os. Estes agradeceram e a seguir fizeram o mesmo a Agripina, que se encontrava numa tribuna separada.“Era algo francamente novo e insólito na tradição dos antigos: uma mulher a ocupar uma posição importante perante os estandartes romanos”, que escandalizaria Tácito muitos anos depois. A sua própria experiência de vida, afectada pelos crimes dos quais foram vítimas muitos dos seus parentes, amigos e membros da sua própria família (só uma irmã faleceu de causas naturais), impulsionou Agripina a planear com tempo o acesso do filho ao poder. Queria que acontecesse sem querelas e com a mínima violência. Uma previsão importante, dado que Cláudio também tinha um filho varão, embora mais novo: Britânico. Para tal recorreu a um sistema eficaz: apresentá-lo paulatinamente como o sucessor eleito, através de pequenos gestos mas de grande valor simbólico: Nero aparecia em público com o casal imperial, foi inundado de cargos e honras, celebrou o seu casamento com a filha de Cláudio e, como último passo, o imperador adoptou-o legalmente. Nero ficava assim à frente do filho biológico de Cláudio e com vantagem na altura da sucessão. Esta acção política terá sido muito dura para Britânico.
Mosaico de tema dionisíaco descoberto numa villa romana de Colónia. Cidade fundada em honra de Agripina. Museu Romano-Germânico, Colónia.
Embora a saúde do imperador não fosse de ferro, muitos autores atribuíram a sua morte a Agripina, que poderá ter ordenado que o envenenassem, temendo que este descartasse Nero como herdeiro. Não existe qualquer prova de tal, mas, em qualquer dos casos, agiu com tal inteligência que, uma vez morto Cláudio, Nero foi reconhecido como imperador pelo exército e pelo Senado.
Relegada por Nero
No seu primeiro discurso perante os senadores, Nero declarou que Agripina não seria (tal como ela esperava) o seu par na governação do Império. Séneca e Burro, os seus conselheiros, nomeados no passado por Agripina, eram agora os homens fortes do imperador e acreditavam que o lugar da mulher era em casa e não existiam motivos para tornar Augusta Agripina uma excepção.
Agripina não terá digerido bem este golpe. Procurou intervir nos assuntos do Estado ou, pelo menos, influenciar o seu filho, então com 17 anos. Advertia-o sobre os perigos que caíam sobre ele. Nero desleixaria os seus deveres de Estado e, em vez de dar atenção à sua esposa, com quem devia gerar um herdeiro, perdia-se em devaneios com uma liberta. Aumentavam as ameaças maternas e as disputas. A tensão entre mãe e filho era insuportável e agravou-se quando Nero mandou assassinar Britânico durante um banquete, antes de cumprir um ano da sua subida ao trono.
Alguns meses depois da morte do pai, Cláudio, Britânico foi envenenado no decurso de um banquete, seguramente a mando de Nero. Gravura de Abel de Pujol. Século XIX.
Agripina foi obrigada a instalar-se fora da residência imperial e foi-lhe retirada a sua escolta. Entrou novamente na obscuridade, mas não tão escura que conseguisse ficar protegida do crescente ódio do seu filho. Só a sua existência constituía para o imperador um jugo do qual ansiava libertar-se. Sob pretexto de uma reconciliação, Nero convidou-a para jantar numa das suas villae costeiras e desfez-se em amabilidades. Ofereceu-lhe um navio para que regressasse comodamente a casa e ela aceitou. Durante a viagem, o casco da embarcação abriu-se e Agripina caiu à água, mas conseguiu alcançar a margem a nado.
O navio que levava Agripina para a sua villa a partir da de Nero afundou-se. Porém, Nero não contou com o facto de a mãe ser uma excelente nadadora. Óleo de Gustav Wertheimer. Século XIX.
Desesperado ao conhecer o fracasso do plano e com a cumplicidade dos seus conselheiros, Nero mandou os seus sequazes à villa onde a mãe se refugiara para que terminassem o trabalho. Agripina resistia em aceitar que o seu próprio filho quisesse assassiná-la. Perante a evidência, porém, mostrou o ventre aos assassinos com um gesto dramático para que estes ferissem no local onde gerara Nero. Depois de encobrir o matricídio, Nero e os seus conselheiros engendraram uma perversa versão: Agripina tentara matar o imperador e, falhando, suicidara-se. Para se tornar mais conveniente, atribuíram-lhe todo o género de crimes, entre os quais o de“pretender ser associada ao Império, que as coortes pretorianas prestassem juramento a uma mulher”, e arrastar para a mesma degradação o povo de Roma e o Senado.
Nero e o cadáver de Agripina. Esta pintura de Arturo Montero e Calvo, de 1887, intitulada Nero perante o cadáver da sua mãe Agripina – propriedade do Museu do Prado e em depósito no Museu de Jaén –, representa o momento em que Nero observa o cadáver de Agripina depois de a ter mandado assassinar, segundo o escabroso relato dos antigos historiadores, entre os quais Suetónio na sua obra Vida dos doze Césares: “Precipitou-se ali para ver o cadáver da mãe, apalpou os seus membros, criticando uns e louvando outros e, como entretanto sentira sede, começou a beber. Nem naquele momento nem nos tempos que se seguiram conseguiu suportar a consciência do seu crime.”
Assim ficou concluída, no ano 59, a aventura de Augusta Agripina, a dama mais ilustre de Roma: sem honras fúnebres e com a reputação destroçada, o dia do seu aniversário passou a ser considerado nefasto.