Em arqueologia, há uma lei inexplicável, mas que a maioria dos arqueológos respeita: as descobertas notáveis costumam ocorrer no último dia de trabalhos, quando a equipa já se prepara para cobrir o sítio arqueológico. Foi o que sucedeu em Idanha-a-Velha, em Julho de 2019.

O Projecto Igaedis, coordenado pelos arqueólogos Pedro Carvalho, da Universidade de Coimbra, e Catarina Tente, da Universidade Nova de Lisboa, identificara a Porta Sul da cidade romana, mas talvez não esperasse encontrar um forno de pão de uso doméstico, construído já depois da destruição da porta. A maior surpresa estava no interior: ali jaziam dois crânios de crianças que, à sua maneira, ajudam a contar a história de Idanha depois do colapso da civilização romana.

achado arqueológico

A escavação da Porta Sul, um projecto financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, permitiu a descoberta, num nível correspondente à destruição da Porta Sul, de um curioso forno de pão. Fotografia em cima de Manuel Ferreira/Fluc/Igaedis e em baixo de Pedro Martins.

achado arqueológico

A Porta Sul terá sido destruída nos primeiros anos do século V, talvez aquando da chegada dos suevos ao território, entre 409 e 411. E o forno foi datado na segunda metade desse século V, assente nos níveis de abandono da porta.

A investigação antropológica, conduzida por Sofia Tereso (bolseira de doutoramento da FCT) e por Carla Ribeiro (do Município de Idanha-a-Velha), permitiu perceber que a criança de 7 a 9 anos terá vivido no início do século IV e o jovem de 13 a 15 anos no final da mesma centúria. Terão estado depositados num espaço funerário romano junto da muralha e só mais tarde, durante o século VI, foram deslocados para o forno. “Os motivos para essa deposição secundária não são fáceis de determinar”, diz Sofia Tereso.

Sofia Tereso

Sofia Tereso, a antropóloga responsável pelo estudo dos vestígios ósseos recolhidos nas campanhas de Idanha-a-Velha. Fotografia de Carla Ribeiro.

A análise paleobiológica mostrou que a vida destas crianças não foi saudável. Detectaram-se lesões ósseas relacionadas com deficiências nutricionais, como anemia, e infecções. Curiosamente, ficaram também expressas no crânio marcas de rinossinusite, uma patologia comum mas raramente detectada em materiais tão antigos.

achado arqueológico

O crânio de um jovem ligeiramente mais velho (13 a 16 anos) sepultado no mesmo contexto. O jovem passou por episódios de stress fisiológico (pobre nutrição e infecções), durante o período de formação do esmalte dentário. Fotografia de Sofia Tereso.

Importante cidade romana, Idanha foi depois sede do bispado suevo e mais tarde visigótico. Registou ainda ocupações islâmicas e cristãs e, durante alguns séculos, foi uma fronteira violenta entre duas civilizações. “Esta descoberta, efectuada no último dia da campanha de 2019, e que obrigou os arqueólogos a voltarem ao campo em Agosto, durante as férias, revela a imprevisibilidade da arqueologia”, resume Pedro Carvalho.