Durante a segunda década do século XIX, um prelado alentejano privava com as elites políticas e literárias da jovem nação norte-americana. José Francisco Correia da Serra, conhecido nos meios científicos da Europa oitocentista como o “abade Correia”, tornou-se amigo pessoal de Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos Estados Unidos, que o convidava frequentemente a juntar-se à sua família em Monticello, no estado da Virgínia.

A esta amizade aludiu Augusto da Silva Carvalho, biógrafo de Correia em 1948, mas pouco se sabia sobre esta fase da vida do abade até à publicação de uma obra de Richard Beale Davis, em 1955, que trouxe à estampa mais de uma centena de cartas trocadas entre Correia da Serra e Thomas Jefferson, até então guardadas em diferentes arquivos americanos.

Trinta e quatro dessas cartas, datadas desde a chegada do abade à América, em 1812, até à sua partida em 1820, encontram-se na Biblioteca do Congresso, instituição norte-americana formada a partir da biblioteca de Thomas Jefferson, que oferece aos investigadores, ou simples curiosos, a maior parte dos chamados “Jefferson Papers”, entre outros documentos, digitalizados e ao alcance de um simples clique do “rato”.

É através da leitura destas cartas, e pela própria mão dos dois grandes vultos, que seguimos o rasto de uma amizade que duraria até ao fim da vida, bem evidente ao longo da troca de correspondência. Os assuntos são diversificados: desde as questões de botânica às de política, da economia à educação, incluindo até uma receita para elaboração de cimento, refiectindo a multiplicidade de interesses por ambos partilhados, típica de dois vultos do Iluminismo.

Afinidade de gostos

Quando José Correia da Serra chegou à América, em 1812, a sua reputação de douto europeu precedia-o. Levava consigo uma cultura vasta e um espírito cosmopolita cultivado nas sociedades de Londres e de Paris. Consigo, seguiam também cartas de recomendação para o presidente James Madison e para Thomas Jefferson, de personalidades ilustres como o marquês de Lafayette, general francês que combatera ao lado das colónias durante as guerras da independência, e o barão Alexander von Humboldt, célebre naturalista e explorador alemão, que descrevera Correia da Serra como “um homem de uma alma elevada (...) um dos maiores botânicos do século”.

Invasões Francesas

Obra da propaganda francesa, o óleo representa a promessa do general Junot de cuidar da cidade de Lisboa. Correia da Serra viveu as Invasões Francesas em Paris. Com receio' de ser detido, embarcou, em 1812, no USS Constitution rumo aos Estados Unidos.

O abade conhecera as principais capitais europeias na transição do século XVIII para o XIX. Fora nomeado secretário da embaixada portuguesa em Londres em 1797, mas uma desavença com o embaixador motivou a sua chamada a Lisboa e a mudança de posto. Foi então colocado em Paris, em 1802, um período riquíssimo da história francesa, durante o qual as convulsões tectónicas da Revolução Francesa produziam excessos e paixões, mas também uma utilização abundante da ciência aplicada às grandes obras de engenharia e ao esforço militar.

Correia da Serra ficou em Paris durante 11 anos, assistindo ali, impotente, às três invasões francesas, sempre rechaçadas pelos exércitos anglo-portugueses. Em 1812, com Napoleão prestes a entrar em colapso, foi removido do posto parisiense e remetido para os Estados Unidos.

Correia da Serra estabeleceu-se em Filadélfia, na altura um importante centro cultural, tornando-se imediatamente membro da Sociedade Filosófica Americana e amigo do seu presidente, o doutor Caspar Wistar. “Tratam-me (...) como o oitavo sábio da Grécia”, confidenciou a um amigo, a quem descreve o acolhimento caloroso de que fora alvo.

Perfeitamente integrado na vida da cidade, o abade desenvolveu uma actividade profícua nos anos que se seguiram. Assistia regularmente às reuniões da Sociedade Filosófica e da Academia de Ciências Naturais, examinava possíveis publicações desta Academia, e chegou mesmo a leccionar a cadeira de História Natural e de Botânica da Universidade da Pensilvânia. Segundo Beale Davis, Correia era considerado uma autoridade em solos, fósseis, ruínas arqueológicas e, principalmente, em questões de botânica, a sua disciplina preferida.

Dois meses depois de chegar, Correia da Serra escreveu a Thomas Jefferson, anunciando a intenção de o visitar. As afinidades entre os dois homens “filhos do Iluminismo”, manifestaram-se logo na primeira visita de Correia a Monticello, no Verão de 1813. A partir de então, o abade regressaria todos os anos para passar uma temporada, e estas “peregrinações” seriam ansiosamente aguardadas pelo seu anfitrião. Sabemo-lo porque Jefferson colocava o abade frequentemente a par da sua agenda, sugeria-lhe datas mais convenientes para as visitas e lamentava-se sempre que estas eram adiadas.

Jefferson
O elogio de Benjamin Franklin na Academia das Ciências. 
Quando Benjamin Franklin faleceu, em 1790, o maior tributo a esta personalidade ímpar da história norte-americana prestado em Lisboa foi proferido pelo jovem abade Correia da Serra na Academia das Ciências de Lisboa. Enquanto os seus pares se dividiam pela admiração da fogosa França revolucionária e pela dinâmica Inglaterra, o abade via mais longe.

A vida de Correia da Serra é uma boa alegoria de uma carreira iluminista. Filho de um médico, estudou em Itália logo após o terramoto de 1755. Dominava o francês, o inglês, o alemão, o italiano, o latim, o grego e o árabe. É possível que tenha estudado medicina, mas optou pelo direito canónico. Com profunda intuição política e dotes diplomáticos invejáveis, iniciou a carreira na diplomacia portuguesa, que o levou, já no século XIX, às principais capitais mundiais. A Revolução Americana despertou-lhe a imaginação. O modelo colocado em prática pelos pais fundadores da nova nação não tinha qualquer paralelo com os regimes europeus e Correia da Serra teve o mérito de o dizer, numa instituição dedicada à ciência, logo em 1790. Manteve a sua admiração pelo sistema de poderes e contrapoderes da democracia americana até ao fim da vida.

Na Primavera de 1814, Correia da Serra agradeceu a Jefferson mais um convite para ir a Monticello referindo que “não há momentos na vida que considere tão preciosos como os que passo na sua companhia”. Anunciou-lhe então os seus planos de viajar até ao Kentucky, mas Jefferson insistiu, desta vez num tom de maior intimidade: “Venha, então, meu caro senhor, ser parte da nossa família.” No Kentucky, o 15.º estado a juntar-se à União, Correia da Serra teve oportunidade de ver in loco as tensões entre povos indígenas e o ímpeto colonizador dos norte-americanos.

No Outono do ano seguinte, Correia embarcou em mais uma excursão, desta vez para sul, passando cerca de duas semanas em terras dos índios cherokee. Era inevitável que o abade projectasse, nos confiitos indo-americanos, a mesma tensão que sabia existir na colónia brasileira, prestes a declarar independência nesse primeiro quartel do século XIX.

No início de Novembro de 1814, o abade rumou em direcção à Virgínia, chegando a Monticello a 6 de Dezembro. Jefferson, porém, estava ausente nessa ocasião. Daí a pressa do ex-presidente em escrever ao amigo, logo no dia 1 de Janeiro de 1816: “Anseio pelas suas observações sobre as terras por onde passou.” Na mesma carta, voltava a insistir com o abade: “Fique então connosco. Torne-se nosso instrutor. (...) Sabe como é bem querido e desejado em toda a parte, bem-vindo em toda a parte, mas em lado nenhum tão cordialmente como em Monticello.” Jefferson ofereceu-lhe “um quarto confortável, (...) para a reforma quando a escolher, e uma família sociável, cheia de afecto e respeito por si.” Durante muitos anos, os historiadores hesitaram sobre quem seria a figura merecedora do “The Abbé Room”, na casa de Thomas Jefferson.

O abade ministro

Em Fevereiro de 1816, Correia da Serra foi nomeado ministro plenipotenciário de Portugal junto dos Estados Unidos. “Espero que isto o fixe connosco para toda a vida”, escreveu-lhe Jefferson, radiante com a notícia. Mas o novo cargo viria inaugurar um período de azedumes entre as duas nações, marcado pelos confiitos diplomáticos em torno da melindrosa questão dos piratas sul-americanos.

Os navios portugueses, em rotas comerciais com o Novo Mundo, eram constantemente pilhados por navios a soldo de corsários vindos das colónias espanholas revoltosas. Apesar de navegarem com o pavilhão de Buenos Aires, estes navios, as suas tripulações e os seus comandantes, eram com frequência norte-americanos e armavam-se no porto de Baltimore, enquanto as autoridades faziam vista grossa.

Os protestos de Correia da Serra, expressos na carta dirigida ao então secretário de Estado James Monroe, levariam à discussão e aprovação, no Congresso, da Neutrality Law de 1817, o documento que definiu a política externa daquele país durante o século XIX.

A última carta de Jefferson, datada de 24 de Outubro de 1820, já não encontrou o abade Correia em solo americano. O ex-presidente, com pena de o ver partir, referiu então as saudades “daquelas visitas amigáveis com que me fez tão feliz”. Anos depois, Jefferson ainda procuraria saber notícias do seu amigo português, mas Correia, abatido pela idade e pela doença, já quase não escrevia a ninguém.

Os nove anos que Correia da Serra passou nos Estados Unidos deixaram marcas em vários aspectos da vida norte-americana. O abade foi, desde os primeiros tempos, um entusiasta de jovens intelectuais e botânicos, treinando futuros cientistas durante as suas excursões. Estudou a fiora e a geologia daquele país, deixando alguns escritos úteis aos estudiosos que se seguiram, e fomentou a troca de correspondência entre cientistas americanos e europeus, colocando-os em contacto com os principais centros de cultura mundiais. Os Estados Unidos emergiam como nova potência e Correia da Serra foi dos primeiros a aperceber-se disso.

Jefferson pediu sempre o seu “conselho e aprovação” nas questões relacionadas com a fundação da Universidade da Virgínia, “a última das minhas causas mortais, e o último serviço que posso prestar ao meu país”. Correia terá também opinado quanto à nomeação de professores, à metodologia de ensino e ao programa das disciplinas leccionadas. Muitas das suas sugestões terão sido aceites e postas em prática.

Outros presidentes procuraram a sabedoria do abade em assuntos diversos. Monroe lembraria a John Quincy Adams que os créditos pela discussão da lei de neutralidade eram devidos a Correia. O prelado português terá tido uma infiuência inegável na consolidação da política externa norte-americana e da tradição de não-intervenção e de isolacionismo que se transformaria na chamada Doutrina de Monroe.

A James Madison, presidente dos EUA entre 1809 e 1817, Correia aconselhou sobre a venda de terrenos livres como fonte de receitas para o Estado e sobre a exploração de certas jazidas de minerais. Também John Quincy Adams recebeu, desde os tempos de secretário de Estado, as visitas regulares do abade em sua casa, retribuindo com idas ao Hieronimus Hotel, em Washington, onde Correia da Serra então residia. Quando o abade deixou a América, levou consigo a amizade de quatro presidentes dos Estados Unidos.

Monticelllo

A residência de Thomas Jefferson na Virgínia foi sempre a paixão do antigo presidente americano. Ali recebia os amigos mais próximos e discutia os temas que a sua vasta curiosidade fazia despertar. Correia da Serra visitou Monticello com regularidade nos anos que passou nos Estados Unidos.

Os seus admiradores americanos não lhe pouparam elogios, descrevendo-o como “o homem mais extraordinário que já viveu”, “um dos estrangeiros mais iluminados que alguma vez visitou os Estados Unidos”, e “o nosso Sócrates”. Jefferson disse que Correia era “o homem mais sábio que já encontrei em qualquer país”. Houve mesmo quem o considerasse “um dos pais da nação”. Num país de tantas nacionalidades, não deixa de ser curioso que um português estivesse tão ligado ao período fundamental da consolidação da nação norte-americana.