Temos tendência para imaginar o Antigo Egipto como uma sociedade estática, na qual os filhos herdavam o trabalho dos pais, dividida em grupos sociais fechados sobre si próprios, sob governo de um faraó hierático e inacessível que os vigiava do topo da pirâmide social. No entanto, as aparências enganam. No Antigo Egipto, havia também um certo grau de mobilidade social, necessário em todas as comunidades para evitar a estagnação e, em última análise, o declínio. Naturalmente, isso não estava ao alcance dos camponeses, cujo horizonte de vida não ia além da próxima colheita. O mesmo se pode dizer dos artesãos, dos pequenos comerciantes, dos modestos empregados da administração ou dos criados domésticos. Em contrapartida, aqueles que recebiam uma educação formal e mostravam aptidões podiam sonhar com um percurso de êxito profissional e social que os elevasse à elite privilegiada da nobreza egípcia.
E se a sorte lhes sorrisse por completo, podiam chegar ao cargo mais elevado abaixo do faraó: o cargo de vizir.
Vejamos então como poderá ter sido a vida de um “triunfador” no Antigo Egipto desde o nascimento à morte. Podemos começar por imaginar que os pais do nosso protagonista se casaram por amor, o que acontecia por vezes na época, como demonstram alguns contratos pré-matrimoniais de que temos conhecimento. Como era hábito no Egipto, não houve qualquer cerimónia. O homem e a mulher decidiram “viver juntos” e com essas palavras simples, o seu casamento ficou oficializado. Como eram duas pessoas jovens e fortes, os partos dela não tardaram. Estes foram mais ou menos espaçados, pois quando queriam esperar algum tempo entre duas gravidezes, as mulheres tomavam anticoncepcionais (com a fiabilidade expectável dos existentes na época).
O sacerdote Teti e a sua esposa de mãos dadas. Império Antigo, Museu Egípcio, Berlim.
Investimento na educação
A morte da mãe ou do bebé era uma ocorrência habitual no parto, pelo que as egípcias não davam à luz sozinhas. A mulher colocava-se de cócoras sobre tijolos decorados com figuras mágicas e enquanto outra mulher a segurava por trás, a parteira ajudava a trazer a criança ao mundo. A segurança da mãe e do recém-nascido era garantida graças a um dente de hipopótamo decorado que actuava como protecção contra o mal.
Pintura oriunda de outro túmulo nobiliário, o túmulo de Nakht (TT59), que capta um instante da intimidade doméstica: o gato da dona da ca- sa, debaixo da sua cadeira, devora um peixe que lhe deram; uma prova do afecto dos egípcios pelos seus animais de estimação.
Supondo que o pai do nosso protagonista era um escriba de categoria média, podemos pensar que o seu filho estaria em contacto com o mundo da escrita e a magia do hierático, a escrita cursiva que os burocratas tomaram para si. Também havia a possibilidade de receber esses ensinamentos de outro escriba que o tomasse sob sua protecção. Como não existiam escolas, a única instituição que permitia completar a formação de um futuro nobre era a escola do palácio. Graças talvez aos contactos do pai, o nosso protagonista foi admitido ali quando tinha cerca de 10 anos, onde viria a formar-se com os filhos de outros funcionários, com alguns príncipes estrangeiros reféns do faraó e com os filhos do faraó, os príncipes reais. Um deles iria tornar-se o próximo soberano e o facto de ser educado com outras crianças permitia-lhe criar um grupo leal que, mais tarde, seriam os seus homens de confiança quando subisse ao trono.
Havia certamente alunos mais diligentes do que outros, mas no geral os professores egípcios estavam convencidos de que os ouvidos de um rapaz estavam nas suas nádegas: quanto mais açoites lhes desse, mais o rapaz escutaria. Após quatro anos de formação, um estudante já dominava os rudimentos que lhe permitiriam trabalhar como escriba: ler, escrever, conhecer os tipos básicos de cartas que teria de redigir, as quatro regras da aritmética e alguns problemas matemáticos com os quais podia enfrentar as tarefas mais habituais.
A nobreza e as tarefas diárias
Os nobres e altos funcionários ao serviço do faraó fizeram-se representar nas paredes dos seus túmulos em numerosas cenas onde são mostrados no cumprimento das suas responsabilidades profis- sionais. Nesta página, podemos ver exemplos procedentes de dois túmulos: o de Nebaon, que ostentou o ítulo de “escriba e ontabilista no ce- iro de cereais do Divino Amon” e de “contador do gado”, e o de enna, “escriba dos campos do senhor das Duas Terras”. Ambos os sepulcros situam-se nos einados de Tutmés IV e Amen-hotep III.
1. Esta cena do túmulo de Nebamon mostra uma das tarefas que este tinha de realizar: supervisionar o gado do Templo de Amon em Karnak, um trabalho que lhe trouxe prosperidade e prestígio.
2. Nesta pintura do túmulo de Menna, vemos o carro do proprietário do túmulo, um elemento que evidencia o seu estatuto. Ao lado, escribas anotam as quantidades de cereal sob sua supervisão.
3. Sentado numa cadeira à esquerda da imagem, Menna preside a esta cena na qual um grupo de camponeses com foices na mão faz a colheita do cereal que será depois anotada pelos escribas.
Quando um aluno mostrava aptidões, prosseguia a formação para se converter em funcionário do Estado. Durante 12 anos, desempenhava tarefas de responsabilidade crescente e aumentava assim as suas competências e conhecimentos.
Entretanto, podemos pensar que o nosso protagonista teve a sorte de conhecer uma mulher que correspondeu ao seu amor e casou-se com ela. Constituiu assim o seu próprio lar e abandonou a casa paterna. Na realidade, esperava-se que os filhos casados permanecessem em casa dos pais segundo o modelo egípcio de família extensa. No entanto, como as casas não eram muito grandes (cerca de 60 metros quadrados) e não sendo o primogénito, não era assim tão estranho que um filho que começava a ter uma carreira construísse a sua própria casa. As casas no Antigo Egipto eram simples. Constavam de uma sala de recepção, um aposento principal, um quarto de dormir, uma despensa e uma cozinha. Todo o espaço disponível no terraço da casa era utilizado como zona comum. Com o tempo, se tivesse êxito, a casa crescia ou construía-se uma nova. O ideal era uma mansão com pátios, armazéns, silos, jardim, cisterna e muitas divisões distribuídas por dois andares.
O nobre em família.
Durante os reinados de Ramsés III e Ramsés IV, viveu um alto funcionário chamado Inherkau que exercia o cargo de “capataz das duas terras no lugar da verdade”, isto é, dirigia os operários que trabalhavam na construção dos túmulos reais no Vale dos Reis e que viviam no povoado de Deir el-Medina. O túmulo de Inherkau (TT359), em Deir el-Medina, possui uma decoração rica que evoca com perspicácia a vida familiar de um nobre egípcio. Na cena acima destas linhas, Inherkau e a esposa recebem oferendas e libações dos membros da sua família.
1. Inherkau: O chefe de família surge sentado numa cadeira. Ostenta no queixo uma barba de adorno. Brinca com as tranças de uma das suas filhas.
2. A esposa: A mulher, Uabet, aparece representada com o mesmo tamanho do marido, e abraça-o. Um dos seus títulos apresenta-a como cantora do deus Amon.
3. Filhos: São quatro crianças de diferentes idades. Estão nuas e têm um penteado peculiar aparentemente ligado à tradicio- nal madeixa lateral da infância.
4. Pombas e filhotes: Algumas das crianças têm aves nas mãos: duas seguram pelas asas o que parecem ser pombas e uma das raparigas tem nas mãos uma cria.
5. As oferendas: Junto dos defuntos, há uma espécie de pedestal com oferendas. Pode tratar-se de um bolo de figos e vagens de acácia ou de uma cesta de figos.
6. Profeta de Osíris: Este sacerdote, chamado Ken, tem uma estatueta de Osíris, o deus do submundo, numa das mãos e uma caixa de ushebtis, as figurinhas funerárias, na outra.
A família de Inherkau, pintura no túmulo deste alto funcionário em Deir el-Medina. Scala, Florença
Uma carreira de sucesso
De modo a poder permitir-se estes luxos, o principal era desempenhar as tarefas que lhe eram confiadas para completa satisfação dos seus superiores… e esperar que os seus bons ofícios acabassem por chegar aos ouvidos do monarca por intermédio do vizir. Um primeiro passo na escalada até aos níveis superiores da administração podia ser, por exemplo, trabalhar como ajudante de um agrimensor. Terminada a cheia do Nilo e tendo as águas recuado dos campos, a sua tarefa consistia em acompanhar o agrimensor levando consigo o papiro do cadastro. Enquanto lia o documento ao patrão, dois outros subalternos mediam os limites dos campos e comprovavam que nem as águas nem um vizinho aproveitador os tinham deslocado. A exactidão era importante, pois os impostos que o camponês pagaria dependiam do tamanho dos campos.
Na abóbada do túmulo de Pashedu, em Deir el-Medina, estão representados os deuses que o esperam no submundo, entre os quais Osíris, Ísis, Néftis e Anúbis. Pashedu foi “servo no Lugar da Verdade” no reinado de Ramsés III.
Outra posição de destaque era a participação numa expedição ao deserto em busca de minerais e rochas especiais, como o basalto, o grauvaque ou o granito vermelho. Era um trabalho duro e perigoso, pois cerca de dez por cento ou mais dos expedicionários podiam morrer durante a missão. Garantidamente, o trabalho como escriba militar e depois como líder de uma expedição ensinaria a nossa personagem a gerir homens e situações difíceis. Uma nova promoção por parte dos seus superiores convertê-lo-ia em mensageiro. Agora a sua tarefa consistia em viajar com comunicados do rei para o estrangeiro, para os seus exércitos ou inclusivamente para outros monarcas.
Damas sofisticadas. As convidadas do banquete vestem os seus trajes de gala, as características túnicas festivas, e exibem colares pesados no pescoço. Sobre as perucas têm os típicos cones perfumados, que vão espalhando a sua essência aromática.
Música e dança. Um grupo de músicas, duas das quais surpreendentemente representadas de frente, e bailarinas seminuas animam a reunião.
Deste modo, cumprindo sempre as tarefas que lhe eram atribuídas, o nosso protagonista converteu-se numa figura destacada da corte. Por fim, quando o seu antigo colega de estudos subiu ao trono, agradeceu o seu zelo, dando-lhe o precioso cargo de vizir.
O “homem dos segredos” do faraó. O cargo de vizir, que em egípcio se denominava tjaty, existia praticamente desde as origens do regime faraónico. O seu poder, que se estendia a quase todas as esferas do governo, procedia em última instância da confiança pes- soal que o faraó depositava nele. No túmulo de um deles, Rekhmire, pode ler-se: “O no- bre, o príncipe, o intendente dos intendentes, o homem dos segredos, que penetra nos santuários; não há porta entre o deus [ou seja, o rei] e ele.” A prova máxima do favor do faraó era a concessão do privilégio de dispor de um túmulo de grande tamanho. Por exemplo, Ramose, que serviu Amen-hotep III durante os últimos oito anos do seu reinado, terá começado a construir o seu túmulo logo após a nomeação para o cargo de vizir. Os melhores artistas reais trabalharam nele, mas nunca foi concluído. Relevo do túmulo do vizir Ramose na necrópole de Cheikh Abd el-Gurna.
Convertera-se, por fim, num nobre.
Com este cargo, recaía sobre ele um grande poder, mas também grandes responsabilidades. Tinha de fazer cumprir as ordens do rei e informá-lo diariamente do quotidiano do país, algo que fora bem sublinhado durante a cerimónia de posse: “No cargo de vizir, mostra-te vigilante em relação a tudo o que se faz nele, uma vez que és o pilar de todo o país. Quanto ao vizirato, certamente não é agradável; de facto, é tão amargo como a bílis”. E assim era: juízos, cerimónias, impostos… Tudo chegava ao gabinete do vizir e exigia a sua atenção e bom discernimento.
Uma das diversões preferidas dos nobres egípcios era caçar aves nas margens do Nilo, como faz Nebamon nesta cena do seu túmulo. Museu Britânico, Londres.
Mas nem tudo era sofrimento para o nosso protagonista. A sua casa converteu-se numa mansão importante à qual acorria uma clientela política cada vez maior. Ao mesmo tempo, ele e a sua família usufruíam de refeições generosas com abundância de carne, um luxo ao alcance de poucos. De facto, os egípcios alimentavam-se quase exclusivamente de pão e cerveja e esta última era um alimento com a consistência de papas e quase sem álcool.
A recompensa final
Após trinta anos de governo, o vizir já era um ancião: com 60 anos, vivera quase o dobro da média dos egípcios. O seu túmulo já estava terminado há muito tempo, pronto para receber a sua múmia quando chegasse o momento de reunir-se no Oeste com o seu ka, a sua energia vital. O hipogeu e a respectiva decoração foram uma oferta do monarca, mas o vizir teve de reunir o enxoval funerário que o acompanharia no Além, bem como estabelecer a fundação funerária que se encarregaria de fazer as oferendas adequadas para que ele e a sua esposa recebessem alimentos abundantes no reino de Osíris.
Jardim da casa de Nebamon, cheio de peixes e rodeado de árvores de fruto. Pintura do seu túmulo no Museu Britânico, Londres.
Normalmente, era tarefa dos filhos serem os servidores do ka dos pais. Contudo, focados nas suas próprias carreiras, só lidavam com o assunto em dias importantes. Assim, o melhor era decidir quais das suas propriedades destinariam a sua produção ao sustento do seu culto funerário e assinar um contrato com alguém de confiança para que se encarregasse diariamente das oferendas.
Quando o nosso protagonista faleceu após uma vida de serviço ao país, as suas deliberações foram cumpridas à letra. O seu corpo foi cuidadosamente embalsamado e a sua múmia levada para o seu local de descanso final, na margem ocidental do Nilo, acompanhada por familiares e amigos. Ali seria trazido de novo à vida com a cerimónia de abertura da boca e depositado na sua última morada, para usufruir de uma vida eterna bem merecida.
O enterro, um triunfo póstumo
Em reconhecimento dos seus méritos, os nobres de classe mais elevada obtinham do faraó um túmulo esplêndido, no qual o seu ka ou energia vital viveria eternamente. Nas paredes destes túmulos, era costume representar a procissão que conduzia o corpo do defunto até ao túmulo e o rico enxoval que o acompanharia no Além. As magníficas pinturas do túmulo de Ramose, vizir de Amen-hotep III, mostram isso mesmo.
Cenas que fazem parte do segundo registo pintado do túmulo de Ramose. XVIII Dinastia, Necrópole de Cheik Abd El-Gurna:
Filhos e familiares.
A procissão funerária de Ramose é muito numerosa. Um grupo de personagens vestidas de branco 1, possivelmente os familiares próximos e os filhos do defunto — que estavam encarregados de ser os servos do ka dos pais falecidos — fecha a procissão. À frente, um homem transporta flores de lótus azul 2, o símbolo solar ligado ao renascimento, e outros carregadores transportam nos ombros recipientes, talvez com vinho ou cerveja 3.
Enxoval funerário.
A procissão continua com dois homens que transportam um leito funerário 1, quatro carregadores de cofres com oferendas 2 e outro que transporta aos ombros uma cadeira e na mão direita segura uma paleta de escriba 3. À frente, outro homem leva, nos respectivos suportes, dois pilares djed (a coluna vertebral de Osíris) e dois recipientes de alabastro 4. O carregador que vai à frente leva duas caixas com ushebtis (figurinhas funerárias) 5.
Carpideiras.
Um grupo de carpideiras olha na direcção do catafalco com a múmia do defunto 1. Algumas levantam os braços para o céu num gesto de desespero, representado pelas lágrimas que correm pelos seus rostos. Outras lançam terra sobre a cabeça e quase todas têm os seios descobertos. Depois delas, a procissão funerária de Ramose continua, com um grupo de homens com flores de lótus e varas de transporte 2.