Andei dias a fio no planalto dos Jarros, tentando captar uma imagem, encontrar uma metáfora, cristalizar uma ideia capaz de transmitir o que significa para o Laos ter sido um dos países mais intensamente bombardeados da história e, depois, prosseguir o seu caminho e encontrar, de certa maneira, um futuro. Por fim, no meio de uma das principais artérias comerciais de Phonsavan, capital de província, decorri-a: vi uma gigantesca pilha de invólucros de bombas abandonados pela campanha de bombardeamentos norte-americanos do Laos. E logo a seguir ao monte de sucata de armamento, estava uma máquina de multibanco novinha em folha.

Azul garrida e branca, a estrutura tornava invisíveis os restos ferrugentos de uma guerra quase esquecida. Depois de inspeccionar os invólucros das bombas, dirigi-me à máquina de multibanco, introduzi o cartão de débito e levantei um milhão de kips, cerca de 110 euros. Todas aquelas notas de 50 mil kips que a máquina cuspia contavam uma nova história do Laos: a narrativa de como a era dos bombardeamentos deu lugar à era do dinheiro.

Com as suas colinas ondulantes e planuras relvadas, o planalto dos Jarros assemelha-se a um enorme campo de golfe. Só que os bunkers foram produzidos pelas bombas que aqui caíram e explodiram

Antigamente, aqui na província de Xiangkhouang, os habitantes passaram vários anos escondidos em grutas e túneis. Agora, Phonsavan é uma cidade tão activa que possui écrãs digitais com o número de segundos de que os peões dispõem para atravessar a rua. Há estabelecimentos comerciais diversificados e modernos. Ao lado das famosas urnas megalíticas do planalto dos Jarros, os destroços remanescentes da guerra que durou de 1964 a 1973 fazem agora parte da campanha de relações públicas destinada a atrair os turistas: essa pilha de invólucros de bombas encontra-se exposta em frente do gabinete de turismo.

Com as suas colinas ondulantes e planuras relvadas, o planalto dos Jarros assemelha-se a um enorme campo de golfe. Só que os bunkers foram produzidos pelas bombas que aqui caíram e explodiram. Milhões, porém, não deflagraram, o que constitui um perigo permanente, em especial para os laocianos empreendedores que ganham dinheiro recuperando os metais valiosos contidos nas bombas não detonadas.

“Bem-vindo ao Sr. Phet Napia, Fabricante da Colher e do Bracelete”, proclama o anúncio na casa de Phet Napia, na aldeia de Ban Naphia. Na sua fundição, instalada no pátio das traseiras, Phet derrete o alumínio proveniente dos invólucros das munições e de metais recolhidos localmente. De seguida, verte-o num molde, criando anéis para chaves em forma de bomba e talheres de mesa. Aparentemente, todos os restaurantes locais possuem garfos, colheres e pauzinhos para comer feitos de sucata metálica do tempo da guerra.

Vientiane, a capital, era antigamente uma vilória desordenada. Agora, é uma cidade desordenada com prédios de 12 andares. Antigamente, imperava o silêncio, pontuado pelos sons da chuva a cair, dos bebés a chorar, das pessoas a rir, dos monges entoando cânticos.

Os frutos do espírito de iniciativa de Phet estão à vista: tem uma casa nova, televisão por satélite, luz eléctrica. Phet é um artesão empreendedor, mas ainda tenta compreender por que razão numa economia de mercado os custos não desaparecem depois de um bem estar pago. “Capto 60 canais nesta televisão, mas é preciso pagar a electricidade”, disse, quando mostrámos admiração pela sua antena parabólica. O telemóvel ajuda-o a engendrar mais negócios, “mas até depois de o comprar, continuo a ter de pagar para falar ao telefone”.

Com uma população inferior a sete milhões de habitantes, no Laos existem agora quase cinco milhões de telemóveis. Em Ban Pak-Ou, uma aldeia do Norte, à beira do rio Mekong, os homens equilibram-se, imóveis, sobre as suas pirogas, com as silhuetas recortadas contra a luz ambarina. É uma imagem que parece fazer-nos recuar séculos, com a diferença de que cada homem vai tagarelando ao telemóvel enquanto pesca.

Vientiane, a capital, era antigamente uma vilória desordenada. Agora, é uma cidade desordenada com prédios de 12 andares. Antigamente, imperava o silêncio, pontuado pelos sons da chuva a cair, dos bebés a chorar, das pessoas a rir, dos monges entoando cânticos. Agora, tudo acontece no meio de um zumbido misturado de aparelhos de ar condicionado a estralar, geradores a zunir, motos a chiar, buzinas a apitar.

A economia do país cresce a um ritmo de quase 8% ao ano. A bandeira do Partido Revolucionário do Povo Lao, com a sua foice e martelo ao estilo soviético, ainda esvoaça ao lado da bandeira nacional, mas os responsáveis governamentais desempenham agora o papel de promotores da criação de uma zona de mercado livre no Sudeste Asiático.

Até nas zonas mais isoladas, entre as populações mais pobres, encontrei um acesso anteriormente inimaginável às possibilidades do mundo exterior. Perto da fronteira vietnamita, na região central do Laos, vi um jovem a caminho de casa numa moto, com uma antena parabólica aconchegada debaixo do braço. Em aldeias de montanha, vi bandos de crianças envergando fardas escolares azuis e brancas. Vi também lugares de culto remodelados em todos os sítios que visitei – templos budistas, como é evidente, mas também muitos santuários animistas e algumas igrejas cristãs. Ainda é possível ver por todo o lado monges com os seus hábitos cor de açafrão, só que estes agora carregam computadores portáteis.

O Mekong ainda atravessa Vientiane, mas a zona ribeirinha foi transformada. Outrora composta por bancos de lama e areeiros, é hoje uma zona de esplanadas atraente com cerca de três quilómetros de comprimento, complementada com máquinas de exercício físico e pistas de corrida. Cada noite traz consigo uma atracção. Há exibições musicais e aulas de exercício físico, enquanto o gigantesco disco do sol tropical poente se vai transformando numa faixa horizontal esbatida e o frenesi humano é iluminado pelo néon das carrinhas dos vendedores ambulantes.

À semelhança de quase tudo o que existe no Laos, este parque da zona ribeirinha tem uma história mais profunda para contar. Triunfo de um planeamento urbano humanizado, a zona é efectivamente um enorme dique que protege a cidade das cheias. A identidade de quem o construiu também é reveladora: foi financiado, em grande parte, por um empréstimo da Coreia do Sul. Os países asiáticos prestam agora mais assistência útil do que as potências ocidentais alguma vez fizeram.

Durante o longo período em que a França e os Estados Unidos foram predominantes no Laos, nenhum destes países construiu qualquer ponte sobre o Mekong. Hoje, seis grandes pontes fazem a travessia do rio. Uma delas fica em Thakhek, onde a distância de trânsito entre o Laos e as economias da Tailândia e do Vietname é mais curta: apenas 145 quilómetros. Em Thakhek, conseguia avistar a Tailândia da janela do meu quarto, enquanto assistia ao programa “Vietnam Idol” na televisão!

Numa manhã, em Vientiane, descobri que um clube de motociclistas enchera o hall de entrada do meu hotel. “Viemos da Malásia em viagem de lazer”, explicou educadamente um dos motociclistas, apesar de o percurso de ida e volta representar uma viagem de 4.200 quilómetros. Outra manhã, desta vez em Luang Prabang, acordei com a rua atravancada por carros recém-chegados. Todos tinham chapa de matrícula chinesa. Enquanto os motociclistas ricos da Malásia se encaminhavam para norte, os chineses ricos oriundos de Kunming rumavam a sul, fazendo também férias no Laos.

Esta nova era de interligação pacífica tem um rosto humano, onde quer que vamos. Os seus contornos também são visíveis de avião. Quando sobrevoamos o Mekong, vindos de Savannakhet, avistamos outra daquelas pontes por onde pessoas e mercadorias entram e saem do Laos. Mesmo a montante dela, vemos também as catenárias, altas como arranha-céus, que transportam a electricidade exportada pelo Laos através do rio.

Foi a única vez em toda a guerra que observei efectivamente soldados norte-vietnamitas e aviões norte-americanos a largarem bombas. Tinha 23 anos e ansiava por desvendar a verdade.

Há várias décadas, contemplando as margens do rio em Vientiane, reflecti sobre uma pergunta para a qual eu sabia nunca vir a encontrar resposta. Como puderam pessoas aparentemente racionais pensar que conseguiriam vencer a guerra no Vietname sujeitando o Laos a uma devastação indiscriminada destas proporções? Quando escrevi, na década de 1970, que uma guerra secreta estava a ser travada no Laos, essa frase saltou para os cabeçalhos das notícias em todo o mundo. Em rigor, a intervenção militar dos EUA no Laos, iniciada na década de 1950 e prolongada até 1974, nunca fora secreta. Desde as senhoras que vendiam flores de lótus no mercado da manhã aos rapazes que puxavam riquexós, todos sabiam do Trilho de Ho Chi Minh, mas também do exército secreto da CIA e do bombardeamento secreto de populações civis pelos EUA. Sabiam igualmente da participação secreta dos EUA no tráfico de ópio.

Em 1968, viajei num táxi colectivo desde as terras baixas do Mekong até ao planalto de Bolovens. Quando o motorista se recusou a continuar, apeei-me e prossegui a pé. Os bombardeiros norte-americanos guinchavam lá no alto. No horizonte, ao longo da linha arborizada, avistava figuras vestidas de camuflado, caminhando velozmente. Foi a única vez em toda a guerra que observei efectivamente soldados norte-vietnamitas e aviões norte-americanos a largarem bombas. Tinha 23 anos e ansiava por desvendar a verdade.

Em Pakxong, um antigo posto militar avançado francês para plantadores de café, fui parar a um bar abandonado. Num mural, viam-se plantadores franceses descontraindo na companhia de atraentes mulheres laocianas. Tinha anoitecido e o único indício de vida provinha de uma pequena casa adjacente à velha igreja francesa.

No interior da casa, travei conhecimento com um padre francês perneta que bebia whisky americano, com a perna de madeira encostada a uma mesa. Serviu-me um copo cheio. Estava a ler uma tradução francesa de “Os Boinas Verdes”, versão ficcionada das proezas norte-americanas na selva. “Isto é que é a guerra do Vietname?”, perguntou.


 

A guerra deixou intacto o Buddha Park, um jardim de esculturas de betão com figuras budistas e hinduístas, perto de Vientiane. As receitas do turismo contribuem para vitalizar a economia do país.

Durante várias décadas, desejei visitar de novo Pakxong. Sabia de antemão que já não encontraria o padre, mas não estava à espera que a velha Pakxong tivesse também desaparecido. Depois da minha incursão de 1968, aviões B-52 bombardearam sistematicamente a zona por duas vezes. Restava apenas a esquina carbonizada de um edifício. Nas suas ruínas, consegui distinguir as iniciais parcialmente apagadas: EDL. Fora o escritório local da companhia de electricidade do Laos.

Imagine que é um camponês laociano empreendedor e quer possuir tudo o que viu na televisão, mas só tem dinheiro para comprar um único bem. Então o búfalo-de-ferro é aquilo de que precisa.

Pakxong fora obliterada: então por que razão o meu regresso ao lugar me encheu de alegria? Foram as pessoas, aparentemente cheias de entusiasmo e felicidade, lutando por uma vida melhor.
À semelhança do próprio Laos, Pakxong deixara de ser um campo de batalha e transformara-se num mercado. No local onde outrora se erguera o quartel francês, existia agora um mercado em expansão – caótico, lamacento, mas disponibilizando tudo o que se possa querer vender ou comprar. O que mais me fascinou foi o búfalo-de-ferro.

Imagine que é um camponês laociano empreendedor e quer possuir tudo o que viu na televisão, mas só tem dinheiro para comprar um único bem. Então o búfalo-de-ferro é aquilo de que precisa. Ao contrário do búfalo-de-água, o búfalo-de-ferro consegue bombear água, puxar um arado e iluminar a sua casa. Trata-se, no essencial, de um motor de combustão interna portátil que se pode utilizar para fazer funcionar quase tudo. Ligue-o à sua bomba: será capaz de plantar culturas durante a estação seca. Ligue-o ao seu arado: poderá quadruplicar a terra que cultiva.

Ligue o búfalo-de-ferro ao seu atrelado e uma caminhada de dois dias até ao grande mercado mais próximo transforma-se numa expedição que dura uma só manhã. Foi assim que travei conhecimento com Lan Keopanya. Lan preparava-se para pôr a funcionar o seu camião de caixa aberta improvisado quando começámos a conversar. A sua aldeia, disse, ficava a 20 quilómetros do mercado de Pakxong. “A viagem custa quatro litros de gasóleo, mas vale a pena.” Como agora conseguia realizar o percurso mais depressa e com mais frequência, conseguia vender o café, a fruta e os legumes que cultivava ao melhor preço. Nesse dia, Lan viera a Pakxong comprar material de plástico para construir o telhado da sua nova casa. Os seus seis filhos frequentavam, ou iriam frequentar, a escola, contou com orgulho. Uma nova estrada já chegava à sua aldeia. “Esperamos ter electricidade dentro de dois anos”, contou, enquanto começava a avançar, partindo apressado para construir o telhado antes que começassem as chuvas.

As bombas não faziam distinção entre comunistas e anticomunistas, da mesma maneira que não diferenciavam soldados e crianças. Com a intensificação dos bombardeamentos, as mulheres recorreram às suas exímias capacidades artesanais no fabrico de bordados e colchas para ilustrar a catástrofe.

Quando nos despedimos, perguntei-lhe qual era o próximo bem que queria. “Precisamos que a nossa terra fique livre de bombas”, disse. “Se não fossem as bombas, eu seria capaz de multiplicar a minha produção.”

Durante os bombardeamentos, as comunidades minoritárias residentes nas montanhas do Laos sofreram horrivelmente. No final, já não importava de que lado se estava. As bombas não faziam distinção entre comunistas e anticomunistas, da mesma maneira que não diferenciavam soldados e crianças. Com a intensificação dos bombardeamentos, as mulheres recorreram às suas exímias capacidades artesanais no fabrico de bordados e colchas para ilustrar a catástrofe. Com imagens de crianças a sangrar, culturas queimadas e animais aterrorizados, as suas obras de arte do tamanho de paredes são o equivalente laociano da “Guernica” de Pablo Picasso.

Keay Tcha, que me disse ter 58 anos, vive há mais de 17 anos em Ban Na Oune, um campo para refugiados hmong localizado perto de Louang-
phabang. Desdobrou uma das suas obras-primas feitas em tempo de paz: nela, mostrava um paraíso ainda não perdido, onde águas borbulhantes corriam, a vegetação florescia e animais exóticos brincavam sob um sol benévolo de mil cores. Nas suas mãos, um retalho de tecido de algodão às bolinhas transformava-se numa girafa. Um trapo azul tornava-se um rio de águas correntes. Quando lhe pedi para ver mais, ela respondeu-me que já não fazia obras daquela dimensão. “Os turistas não querem tapeçarias grandes”, disse. “Querem bordados baratos que possam levar na bagagem de mão. Por isso, agora faço muitas coisas pequenas que posso vender a um preço mais baixo.” Não fez qualquer juízo de valor sobre esta transformação mais recente. Sobrevivia em tempo de paz da mesma maneira que sobrevivera em tempo de guerra, identificando as coisas necessárias e fabricando-as.

Há algo que nunca muda no Laos: o calor. A minha demanda por uma bebida fresca levou-me até uma loja de Khenchan Khamsao, junto da estrada para Luang Prabang. Um frigorífico para bebidas, com portas de vidro, sobressaía, mas foi o caixote de lixo verde-escuro que nos pôs a conversar. Com o seu pedestal elegante (para afastar a bicharada), contentor de elevada capacidade e tampa segura, o caixote de lixo de Khenchan era tão gracioso como utilitário. “Fabricam-nos a partir de pneus de camião gastos”, explicou ela. À semelhança das colheres e braceletes de Phet Napia, o caixote era um exemplo do engenho laociano para transformar refugo em objectos úteis.

À semelhança das colheres e braceletes de Phet Napia, o caixote era um exemplo do engenho laociano para transformar refugo em objectos úteis.

A própria vida de Khenchan fora moldada sobre destroços. Viera de uma zona devastada da província de Khammouan, na região central do Laos, onde muitos lugares permanecem tão juncados de munições não deflagradas (MND) que era impossível praticar a agricultura. Como o solo era inutilizável, ela e o marido tinham migrado para este sítio amplo à beira da estrada: 12 anos volvidos, simbolizavam a história de sucesso laociana. A loja ocupava o rés-do-chão da sua nova casa. O marido ganhava dinheiro como operário da construção civil num projecto de irrigação em Vangviang, 105 quilómetros a norte. Os três filhos estudavam em escolas públicas.

Khenchan e a família tinham vivido com bombas e agora viviam com dinheiro. O dinheiro, como tinham descoberto, também tem perigos. Quando observei que na capital o seu filho obteria uma educação melhor, ela retorquiu: “Não, não foi por isso que o mandámos para lá. Mandámo-lo para Vientiane para afastá-lo dos traficantes de droga.” A guerra contra a droga foi lançada em 1989, com financiamento dos EUA para erradicar o ópio. Em 2006, o Laos autoproclamou-se livre de ópio, mas com o crescimento acelerado da economia enraizou-se um apetite nacional por meta-anfetaminas e outras drogas sintéticas. O país é um importante centro regional de trânsito de meta-anfetaminas, heroína e ópio, este de novo em alta.

No Laos, quando a temperatura desce abaixo de 20ºC, a população veste casacos, coloca chapéus e acende fogueiras, o que desencadeia a estação da morte. Numa véspera de Ano Novo, três amigos foram acampar na província de Xiangkhouang. Nessa noite fez frio e, por isso, acenderam uma fogueira. Um morreu de imediato, quando a bomba que jazia sob o local do acampamento explodiu. Outro ficou horrivelmente mutilado. Fiz uma visita a Yer Herr, a terceira vítima, na sua casa de aldeia. O jovem de 18 anos levantou a camisa para mostrar as 19 cicatrizes que tinha nas costas.

Mestres em criar coisas úteis ou belas a partir de qualquer tipo de material, através de tecelagem transformam folhas de palmeira em cestos e bambu em armadilhas para peixe. Entretecem seda e fio de ouro para produzir belíssimas saias para mulher, chamadas sin.

Na aldeia de Yer, havia acesso a electricidade, televisão por satélite e telemóveis. Aparentemente, todas as mães, mulheres, irmãs e crianças tinham perdido um marido, um irmão ou uma filha, mutilados por bombas muito depois de a guerra ter terminado. No liceu local, a álgebra era ensinada num quadro preto. Não fui capaz de decifrar as equações: nas suas aldeias distantes, os adolescentes laocianos aprendiam matemática mais avançada do que eu aprendera com a idade deles nos EUA. Uma vez regressado a casa, mostrei a fotografia daquele quadro preto a um matemático. “O problema analisa a velocidade de objectos em queda, por exemplo, bombas”, explicou ele.

Numa galeria de arte de Luang Prabang, vi o que já vira em peças de artesanato dos aldeãos. Independentemente do material utilizado (bambu, plástico, seda ou fibra sintética), a tecelagem é a arte em que o povo laociano atinge maior excelência. Mestres em criar coisas úteis ou belas a partir de qualquer tipo de material, através de tecelagem transformam folhas de palmeira em cestos e bambu em armadilhas para peixe. Entretecem seda e fio de ouro para produzir belíssimas saias para mulher, chamadas sin.

Os EUA largaram sobre o Laos mais de 270 milhões de bombas de fragmentação, ou “bombinhas” – mais do que uma por cada homem, mulher e criança existentes nos EUA nessa época – e quatro milhões de bombas de maior dimensão. Lançou-se uma quantidade de bombas muitas vezes superior ao total de habitantes do Laos, que nessa época teria uma população de talvez dois milhões de pessoas.

No decurso da guerra, Washington anunciava de tempos a tempos uma “suspensão dos bombardeamentos”, mas a correia transportadora de munições saída dos armazéns onde se guardava o armamento nos EUA, a 12 mil quilómetros de distância, do outro lado do Pacífico, não podia ser ligada e desligada. As bombas que não caíam no Vietname eram redireccionadas para o Laos. Foi a primeira guerra do mundo guiada pela lógica da oferta: as munições armazenadas geravam uma procura constante para o seu consumo. Não havia controlo de qualidade para esta produção maciça de morte aerotransportada: é possível que 80 milhões das “bombinhas” não explodissem no momento do impacte, mas ainda são consideradas activas. Um máximo de 10% de todas as grandes bombas também caiu sem explodir.

Os laocianos conseguem perdoar, mas enquanto o Laos permanecer crivado de explosivos, ninguém será capaz de esquecer, porque esquecer pode matar. Por mais belo que seja o panorama no planalto dos Jarros, não se esqueça, leitor. Não suba àquela colina ali perto para obter uma melhor vista. As bombas que ali existem poderão mutilá-lo ou matá-lo. Mesmo que previna os seus filhos vezes sem conta, não se esqueça – e não os deixe pegar naquelas cápsulas parecidas com brinquedos. Aquelas “bombinhas” redondas poderão desfigurá-los ou matá-los.

Quando o Grupo Consultor de Minas, sediado no Reino Unido, organizou uma das suas aulas sobre os perigos das MND, as crianças em idade escolar escutaram as descrições das vítimas de explosões e a exposição dos seus ferimentos psicológicos e físicos. De seguida, as crianças foram convidadas a exprimir-se sobre o que diriam se travassem conhecimento com algumas das pessoas que largaram aquelas bombas. Um rapazinho levantou a mão e disse: “Eu dizia-lhes que deviam pagar-nos dinheiro.”

O Congresso dos EUA aprovou uma dotação orçamental de 11 milhões de euros em 2014 para remoção de MND. A nova embaixada dos EUA no Laos custou 132 milhões de euros. Esta diferença reflecte as prioridades: um empenho justificável em melhorar a segurança dos diplomatas, mas também uma desconsideração quase total relativamente às responsabilidades históricas dos norte-americanos no Laos, onde a quase totalidade das bombas não deflagradas foram fabricadas nos EUA e lançadas no país por cidadãos dos EUA.

Nesta era consumista que vivemos, da comida rápida e dos resíduos não-biodegradáveis, vi uma embalagem de Pringles transformada num suporte para vela no templo por detrás do Hotel Lane Xang, em Vientiane.

O espírito laociano nunca foi vencido por estrangeiros, nem pelos próprios governantes do país. No futuro, o povo laociano continuará a transformar tudo aquilo que lhe cair nas mãos em obras de arte que sejam de uso prático e diário, porque o seu maior dom é descobrir utilidade e beleza onde os outros apenas vêem destruição e resíduos. Durante a guerra aérea, os artesãos laocianos fabricaram elegantes canoas motorizadas a partir dos contentores de combustível deitados fora pelos bombardeiros B-52.

Nesta era consumista que vivemos, da comida rápida e dos resíduos não-biodegradáveis, vi uma embalagem de Pringles transformada num suporte para vela no templo por detrás do Hotel Lane Xang, em Vientiane. Com o tempo, o templo entrelaçou-se com a grandiosa árvore de enormes raízes que se ergue mesmo ao lado. Além de embalagens de comida rápida, este santuário incorpora pedras arrancadas do Mekong e raízes de árvores auspiciosas. O conjunto integra uma expressão unificada e tocante de devoção.

Perto do aeroporto de Luang Prabang encontrei outro exemplo da maneira como a vida descobre permanentemente uma forma de florescer no Laos. Trepadeiras envolvem os fios desligados das antenas outrora utilizadas pela CIA para transmitir os seus segredos. Porém, esta dádiva à vida não desfaz, de maneira alguma, o mal já feito e que continua a ser feito.

 

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