Colapso económico. Uma explosão catastrófica. Política fracassada. Uma crise de refugiados. Os desafios enfrentados pelo Líbano estão a pôr à prova o espírito indómito do seu povo.
A brisa de Janeiro era tão penetrante como a minha dor. O sol de Inverno reluzia nas montanhas nevadas que abraçam a terra natal da minha mãe, no Norte do Líbano, enquanto os portões do cemitério se abriam e eu depositava o retrato dela ao lado dos seus antepassados. Ela estava em casa, pelo menos simbolicamente. Morrera inesperadamente em Novembro, numa terça-feira de manhã na Austrália, onde vivia há muitos anos.
O fim da minha mãe fora definido desde o início por uma pátria de onde ela realmente nunca partiu. Há componentes deste país que carregamos dentro de nós, mesmo que, como eu, não tenhamos nascido aqui: encontramo-las no nosso nome, na comida, nas histórias e nos laços familiares que transcendem o tempo, a distância e as gerações, chamando-nos de volta.
Um grupo de mulheres explora um forte conhecido como Castelo do Mar, construído pelos cruzados no século XIII, na costa de Sídon, a terceira maior cidade do Líbano. Esta área está desabitada desde o início da Idade do Bronze e guarda um importante porto fenício. O Líbano esconde dezenas de sítios arqueológicos excepcionais.
Há uma canção de Fairouz, uma das cantoras árabes mais aclamadas de todos os tempos, que faz parte da banda sonora da minha infância na Nova Zelândia e na Austrália durante a guerra civil do Líbano, que assolou o país entre 1975 e 1990. Em “Nassam Alayna al Hawa”, Fairouz implora à brisa que a leve para casa antes que ela envelheça tanto num lugar estrangeiro que a sua terra natal já não a consiga reconhecer.
A minha mãe não mudara desde a sua última visita ao Líbano, no Verão de 2019, mas a sua terra natal estava quase irreconhecível. Era um sítio desfeito. Sombrio, deprimido, desesperado, com o espírito indómito ferido por um colapso económico desastroso que o Banco Mundial classificou como um dos piores do mundo desde a década de 1850.
Manifestantes fazem uma pausa nos protestos contra a crise económica do Líbano em Março de 2021. Atrás deles, pneus em chamas bloqueiam uma estrada para a empobrecida cidade de Trípoli, no Norte. O Banco Mundial assegura que a crise do país é uma das piores do mundo desde meados de 1850.
O Líbano dos almoços de domingo abundantes e descontraídos e dos engarrafamentos de trânsito no Verão, quando as pessoas fugiam ao calor de Beirute rumando às montanhas verdes e frescas do Mediterrâneo, transformara-se num Líbano onde a subnutrição infantil e a insegurança alimentar aumentavam. O combustível, se disponível, era agora proibitivamente caro para muitos, dificilmente permitindo as deslocações para o trabalho ou para a escola e, muito menos, as escapadelas de fim-de-semana. Um modo de vida desvanecera-se, esvaziado da vitalidade que, há cerca de duas décadas, me atraíra de volta, como jornalista, à terra dos meus antepassados.
“Regressei” para viver num país que conhecia sobretudo através das recordações pintadas de cor-de-rosa da minha mãe e do meu pai, mas também das minhas viagens de infância a um Líbano que se desfazia a si próprio. Os meus pais nasceram em pontos diferentes do Líbano e deixaram-no juntos antes do início da guerra civil que eclodiu entre cristãos e muçulmanos. O Líbano que levaram consigo era o Líbano de Fairouz: em parte real, em parte imaginado.
As irmãs de Hamze Eskandar mostram o seu retrato e usam medalhões com a sua imagem. Eskandar, um soldado, foi morto pela explosão do porto de Beirute em 2020. “Hamze era a maior felicidade da minha mãe”, diz a sua irmã mais velha, Salam (ao centro). A sua morte despedaçou-a. Ela morreu dois meses depois.
Sempre que podiam, os meus pais levavam a família a passar férias durante meses a fio num Líbano dilacerado pela guerra, tal era a loucura do seu desejo de voltar. As minhas memórias dessas visitas são um misto de sensações: a suavidade do abraço envolvente da minha avó materna. As dores de barriga de longas tardes passadas com os primos no pomar do meu avô, provando demasiados frutos das vinhas, romãzeiras, figueiras e árvores de citrinos. A vaga de calor espalhada pela explosão de um carro-bomba. O medo sufocante, sempre que nos aproximávamos dos postos de controlo da milícia. Os disparos de projécteis luminosos que desenhavam elegantes arcos vermelhos no céu nocturno (fogo-de-artifício, diziam-me os meus tios). A descoberta de que a casa de três pisos dos meus avós era a sua terceira encarnação: as duas primeiras tinham sido bombardeadas e destruídas na guerra, razão pela qual a minha mãe não tinha fotografias da infância para me mostrar.
Fatme Ghandour, de 16 anos, e a família arriscaram a travessia do mar em Agosto de 2020 para chegarem a Chipre. Foram deportados. “Não tenho futuro”, afirma. “Fiquei muito feliz quando saímos do barco, mas, quando regressámos, as nossas preocupações regressaram connosco.”
Os meus pais regressaram ao Líbano em meados da década de 1990, depois de a guerra terminar, mas não conseguiram adaptar-se ao novo Estado. Já não era o Líbano de Fairouz (se é que este alguma vez existiu). O idealismo colidia com a realidade de um país cujos senhores da guerra tinham lugares no Parlamento e concediam imunidade a si próprios por crimes de guerra. Esses líderes, os seus filhos ou os seus escolhidos como herdeiros políticos dão as cartas desde o fim da guerra em tudo, desde as nomeações para o governo aos cargos judiciais de relevo em nome de uma democracia consensual que distribui o poder de acordo com a filiação religiosa. Isto deveria promover a coexistência, mas agravou a fragmentação da sociedade e reforçou uma identidade sectária em vez de nacional. E assim, após poucos anos em Beirute, os meus pais regressaram à Austrália.
Os silos de cereais do porto de Beirute absorveram o impacte da explosão, protegendo a metade ocidental da capital. Os libaneses têm esperança de que um inquérito possa levar os responsáveis a julgamento, mas não acreditam que aconteça.
O Líbano onde me instalei inicialmente estava em alta, embora até 2005 fosse política e militarmente dominado pela Síria, o seu vizinho muito maior. Beirute vivia um frenesi de reconstrução, com restaurantes apinhados e a sua lendária vida nocturna extravagante. Era de novo o recreio do Médio Oriente, a sua válvula de pressão intelectual e literária. Para os autóctones, porém, as linhas vermelhas eram claras: não se podia criticar os principais líderes políticos ou sectários, ou os suseranos sírios do Líbano, para mencionar apenas alguns. O país tinha os seus problemas, mas o povo irradiava uma alegria contagiante e inebriante.
Era exasperante e vibrantemente caótico, um local onde convenções como os semáforos eram consideradas sugestões e a persuasão de um funcionário público com conversa, ou suborno, era prática comum. Uma liberdade indómita e doentia florescia na balbúrdia. Apesar dos defeitos do país, não consegui evitar apaixonar-me por ele. É difícil não o fazer, com o seu magnetismo enraizado na vivacidade de um povo que se agarrou determinadamente à esperança num local que com frequência lhe parte o coração.
Actualmente, muitos libaneses anseiam por aquilo que recordam como os bons velhos tempos, mas a verdade é que, para muitos, esses tempos não foram assim tão bons. A memória selectiva e a nostalgia são bálsamos apaziguantes num país onde ontem costuma ser melhor do que hoje e amanhã pode provocar tanto pavor como esperança. Na verdade, a podridão está mesmo abaixo da superfície reluzente de uma sociedade que, em alguns bairros, se gabava de organizar festas ao som das bombas. As estradas para fugir ao calor do Verão estavam frequentemente a desfazer-se, havia zonas do Mediterrâneo poluídas e um número excessivo de libaneses mal conseguia sobreviver. Os cleptocratas que conduziram o Estado à falência há décadas que não fornecem electricidade aos seus cidadãos 24 horas por dia, obrigando-nos a depender de dispendiosos geradores de bairro – quando há dinheiro para comprá-los – ou a viver sem electricidade. A maioria dos libaneses tem de comprar água a empresas privadas porque, neste território de abundantes rios e nascentes, a má gestão deixou as torneiras secas. Há muito que a vida no Líbano significa pagar duas contas para ter o mesmo serviço essencial, um vício normalizado por um povo que é talvez demasiado hábil a adaptar-se às dificuldades. Imtamsahna é um coloquialismo libanês frequentemente usado para explicar a sobrevivência: significa desenvolver uma pele tão grossa como a de um crocodilo.
A crise do Líbano é uma das piores do mundo desde meados do século XIX. Com o governo paralisado, os sectores económico e financeiro têm vindo a deteriorar-se.
O Líbano é um território antigo encaixado entre Israel, a Síria e o Mediterrâneo, uma manta de retalhos com 18 seitas oficialmente reconhecidas, dividida por vários ismos – sectarismo, classismo, facciosismo, nepotismo, racismo. Diz-se que sua população excede seis milhões de habitantes, embora ninguém saiba ao certo, uma vez que não é realizado um censo desde 1932, para contornar a questão da demografia sectária. O Líbano acolhe também mais de dois milhões de refugiados sírios e palestinianos, uma das mais elevadas densidades de refugiados per capita do mundo.
Para mim, acima de tudo, o Líbano é um país de potencial frustrado e riquezas subaproveitadas, incluindo uma população trilingue educada, ruínas arqueológicas majestosas, planícies férteis que o exército romano usava como celeiro, uma gastronomia requintada capaz de rivalizar com qualquer outra e uma beleza natural emoldurada pelo Mediterrâneo que, tal como um companheiro fiel, amplia o tamanho do país ao longo de montanhas verdejantes.
Abdel Rahman Zakaria (ao centro) descontrai na companhia da família em Tikrit, dias depois de ser libertado da prisão. O activista, conhecido pelas suas façanhas para ajudar pessoas necessitadas, foi detido depois de ajudar uma amiga a assaltar um banco para levantar as suas poupanças. “Estou a fazer o que posso, o que considero um dever, pela minha aldeia, pela minha família, pelo meu povo”, afirma. “Ainda tenho esperança. Ela não morrerá.”
Sente-se um peso, um cansaço, uma humilhação naquilo que se considera a vida quotidiana no Líbano moderno. Nos últimos anos, os libaneses suportaram duas catástrofes tão profundas que dividiram o país entre um antes e um depois. Por ironia, o tempo que antecedeu o primeiro desastre (o colapso económico) foi um momento de grande esperança e mudança genuína. Em Outubro de 2019, dezenas de milhares de pessoas de todo o país encheram as ruas para protestar contra a incompetência e a corrupção de uma classe política que governa no seu próprio interesse.
Este movimento foi classificado como uma revolução. O governo demitiu-se. Os bancos fecharam e, ao reabrirem, tinham retirado aos depositantes o direito de acederem às suas contas bancárias, restringindo seriamente os levantamentos de dinheiro, excepto às elites com boas ligações políticas. À semelhança da maioria das pessoas com dinheiro num banco libanês, perdi as minhas poupanças. Mais de 80% da população viu-se mergulhada numa pobreza súbita. Seguiu-se uma escassez paralisante de tudo, da farinha aos medicamentos, num país que importa quase tudo o que consome. A revolução sem líderes falhou depois de o Estado reagir com força e a precariedade financeira – exacerbada por uma hiperinflação de três dígitos – gerar preocupação com a falta de acesso a bens essenciais.
Tempos turbulentos
O Líbano foi criado sob controlo francês após a Segunda Guerra Mundial, depois de séculos de domínio otomano. Independente desde 1943, debate-se com um conflito sectário interno. Um acordo de partilha de poder entre cristãos e muçulmanos resultou num governo que funciona com deficiências.
1956. Ascensão do sector bancário
O Parlamento libanês aprova uma lei de sigilo que transformou o país num refúgio da banca mundial. As instituições financeiras alimentam a prosperidade libanesa.
1975. Eclosão da guerra civil
Despontam as lutas sectárias, dividindo Beirute em sectores cristãos e muçulmanos. A Síria entra no ano seguinte sob o pretexto de mitigar a guerra.
1982. Invasão por Israel
Conflitos fronteiriços conduzem a uma invasão por Israel. Três anos mais tarde, Israel retira para sul do rio Litani.
O Hezbollah emerge como resistência.
1990. Fim da guerra civil
O conflito termina um ano depois do Acordo de Taif, que divide o poder entre cristãos e muçulmanos.
1992-97. Desenvolvimento e dívida
O Líbano assiste a uma explosão construtiva, com projectos de grande escala em redor de Beirute, mas contrai grandes dívidas junto de investidores internacionais.
2005. Retirada das tropas sírias
O antigo primeiro-ministro Rafiq Hariri é assassinado, desencadeando manifestações contra a Síria. O Hezbollah junta-se ao governo libanês.
2015. Falhas nos serviços públicos
As autoridades encerram o maior aterro sanitário dos arredores de Beirute, dando origem a protestos enquanto o lixo enche as ruas.
2019. Desordem crescente
Os bancos congelam o acesso às contas, a desvalorização da moeda acelera e a explosão do porto de Beirute conduz a motins e a demissões no governo.
As ruas de uma capital que nunca dormia estão agora escuras com a ausência de electricidade pública, que pode faltar uma hora por dia. Os geradores privados não dão conta do recado. No meu bairro, em Beirute, os geradores funcionam intermitentemente 13 horas por dia. Cada um arranja-se a correr antes de a electricidade colapsar durante uma hora às 8h e apressa-se a chegar a casa antes da meia-noite para não ter de subir escadas às escuras. O desemprego sobe em flecha, o crime aumenta e centenas de milhares de pessoas estão a fugir… ou tentam fazê-lo.
Depois, aconteceu a explosão do porto de Beirute, no dia 4 de Agosto de 2020, uma das maiores explosões não-nucleares da história. Matou pelo menos 218 pessoas e causou estragos em mais de 85 mil propriedades na capital e arredores, incluindo no meu apartamento. Milhares de toneladas de nitrato de amónio foram imprudentemente guardadas num armazém portuário a curta distância de bairros residenciais. Alguns funcionários sabiam da existência do material perigoso, mas nada fizeram para removê-lo.
O Templo de Baco ergue-se nas ruínas romanas de Baalbek, no vale do Beca, no Líbano. Baalbek, a antiga Heliópolis, está classificada como Património Mundial. O país guarda vestígios das diferentes civilizações que o ocuparam, incluindo os persas, os bizantinos, os omíadas e os cruzados.
Não houve qualquer operação de recuperação promovida pelo Estado, nem um plano de emergência organizado e, por isso, cidadãos de todo o país acorreram a Beirute armados com pás e vassouras. Voluntários e ONG locais montaram bancas com comida e água gratuitas. Um homem da minha rua distribuía garrafas de água a partir do porta-bagagens do seu carro. Um casal doava detergentes de casa em casa, desculpando-se por não poder oferecer mais nada.
Conheci uma mãe, Juliana Abou Nader, enquanto ela empurrava o carrinho do seu bebé sobre os destroços de antigas lojas. Ela convidou-me para visitar o apartamento dos pais. Mudara-se para casa deles cerca de um ano antes com o marido e os quatro filhos, depois de ter perdido o seu trabalho como contabilista. O apartamento minúsculo era também o lar das suas duas irmãs adultas. Agora, o salário mensal do marido (electricista na empresa pública de energia) não era suficiente para pagar um jantar num restaurante comum.
“Crise atrás de crise, onde vai isto parar?”, perguntou-me Abou Nader. “É tão difícil ver a padaria onde compramos o pão, o velhote que costumava estar sentado à porta da loja, o supermercado onde os meus filhos vão, o farmacêutico que é nosso amigo, ver as suas casas destruídas.” A casa dos seus pais também sofrera danos. Abou Nader preocupava-se com o impacte psicológico da explosão nos filhos e como iria criá-los num Estado que não protege o seu povo e que tipo de futuro poderão ter quando pessoas com formação não conseguem encontrar trabalho ou receber um salário digno. “Adoramos o nosso país. Custa muito pensar em deixar o país, mas estou a ponderá-lo”, disse a minha interlocutora. “Se pudesse partir, ia.”
Em Batroun, restaurantes e clubes modernos coexistem com ruínas ancestrais e igrejas históricas. A cidade do Norte do Líbano é uma atracção turística conhecida pela sua vida nocturna e pelo seu quebra-mar do século I a.C, construído como baluarte contra a fúria das águas e dos invasores.
”Sempre que fecho os olhos, lembro-me daquele momento”, disse-me Giovanna Helou, a irmã mais nova de Abou Nader. ”Qual momento?”, perguntei. “O som. Ser atirada para o outro lado da sala. O pó. Não conseguíamos ver-nos uns aos outros. Em poucos segundos, tudo mudou.” Ela continuou. “Manifestei-me na revolução. Eles humilharam-nos. Espancaram-nos. Antes de a explosão ocorrer, eu e o meu pai estávamos na central eléctrica para perceber por que motivo não havia electricidade há duas semanas. Isto é maneira de viver?”
O apartamento da família dela ficava a curta distância do meu. A minha casa, como todas as outras à minha volta, sofrera muitos danos.
A minha irmã, que estava a ajudar-me, foi até à rua para ver se alguém podia ajudar-nos a limpar os destroços maiores e todo o vidro estilhaçado. Pediu um voluntário. Vinte e três jovens seguiram-na até minha casa.
Vi muitas vezes esse espírito comunitário e a determinação individual de não quebrar nem sucumbir às dificuldades. Fiz uma reportagem no Sul do Líbano em 2006, sob um feroz bombardeamento israelita. A paisagem estava dominada pelos destroços cinzentos das casas e infra-estruturas destruídas. Poucas pessoas se aventuravam nas estradas cheias de crateras abertas pelos bombardeamentos aéreos, onde tudo o que se mexia era um alvo potencial.
Desde a Antiguidade que a costa de Jbeil, também conhecida como Biblos, é um ponto de embarque para viagens para novas terras. Biblos era um importante porto comercial fenício, uma cidade-estado onde se diz ter nascido o primeiro alfabeto. É uma das mais antigas cidades continuamente habitadas do mundo.
Certo dia, um Mercedes branco, enfeitado com fitas brancas e uma placa que anunciava “Casados de Fresco”, passou por mim. Encarei-o como um gesto tipicamente teimoso, um lembrete de que a vida continua. A alternativa não é, simplesmente, libanesa.
O Líbano oferece tão poucos bens essenciais aos seus cidadãos que poderia servir de cenário a uma série televisiva sobre sobrevivência. Vilas e aldeias têm de gerir-se sozinhas, como se fossem uma espécie de mini-repúblicas. As atribulações de Beirute eram amplamente conhecidas, mas eu quis ver o que se passava numa das áreas mais negligenciadas do país. Por isso, desloquei-me a Akkar, uma província rural empobrecida do Norte do Líbano. Foi ali que conheci pessoas como Abdel Rahman Zakaria, que se ofereceram para ajudar a governar as suas vilas.
Um mês antes de Zakaria ser detido pelo seu envolvimento no assalto a um banco, ele e os amigos passavam os dias a apanhar lixo da sua terra natal, Tikrit, depois de o conselho municipal se demitir. Foi Zakaria que negociou o valor a pagar pela eliminação dos resíduos. Os operadores da lixeira fizeram-lhe um desconto quando se aperceberam de que era um esforço de cidadania. Zakaria também recolheu donativos pela sua vila com cerca de onze mil residentes para cobrir o pagamento mensal de cerca de 680 euros.
O homem de 30 anos não é um ladrão de bancos, mas sim um Robin dos Bosques dos tempos modernos. No dia 14 de Setembro de 2022, Zakaria, actualmente desempregado, juntamente com um amigo de Tikrit, pediram dinheiro emprestado para abastecer o carro e conduzir até Beirute. Lá acompanharam outra amiga, Sali Hafiz, enquanto ela entrou no próprio banco, armada com a pistola de brincar do sobrinho. Exigiu cerca de 11.900 euros do seu próprio dinheiro. Hafiz precisava dele para pagar o tratamento oncológico da irmã mais nova. Conseguiu fugir (embora se tivesse entregado às autoridades mais tarde), mas Zakaria e o amigo foram detidos.
Nove dias mais tarde, os homens estavam em casa. “Faria tudo da mesma maneira”, contou Zakaria um dia depois de ser libertado, anunciando a disposição para ajudar quem precise. “Vou ter imediatamente seja com quem for.”
Foi nisto que o Líbano se transformou: num lugar onde mais de uma dezena de pessoas já recorreram à força para levantarem as suas poupanças e os cidadãos têm de organizar o fornecimento de serviços públicos essenciais. Ouvi com frequência libaneses, sobretudo da diáspora, criticarem aquilo que consideram a apatia das pessoas que vivem na sua terra natal. Porque não protestam? Como conseguem suportar indignidades? Zakaria tentou protestar. Tornou-se um activista proeminente. Ainda tem estilhaços metálicos no corpo. “Ninguém ouviu. Nada mudou”, disse. Agora, ele está demasiado ocupado a ajudar pessoas.
As suas façanhas, que documenta nas redes sociais, são famosas. Certa vez, durante um episódio de escassez de combustível, ele e os amigos bloquearam camiões-cisterna de transporte de petróleo, impedindo-os de contrabandear combustível para a Síria e redireccionando-os para a sua terra natal, onde distribuíram o combustível gratuitamente. Noutra ocasião, entrou numa central eléctrica para perguntar por que Joumeh não estava a receber electricidade do Estado. Depois de ver que o cabo para Joumeh estava desligado, “liguei o interruptor para restabelecer a luz na nossa zona” – contou. Houve ainda outras ocasiões em que juntou amigos e foi a correr para o hospital ao saber que este se recusara a admitir um paciente sem antes receber um adiantamento avultado. “Subitamente, o hospital disse que prescinde do pagamento e que a pessoa seria tratada de graça”, disse Zakaria. “Teve medo de que eu expusesse o sucedido e o transformasse numa controvérsia das redes sociais.”
No entanto, há limites para aquilo que um homem e os seus amigos conseguem fazer. O lixo estava a amontoar-se de novo em Tikrit. “Estou cansado, é muito desgastante e não há financiamento”, disse Zakaria. Ele não queria pedir mais donativos aos residentes da vila, que já tinham grandes dificuldades. Apelou ao governo de Akkar, que o ignorou, aconselhando-o a “tirar o espinho da sua própria mão”, segundo Zakaria. Mas ele foi inflexível, dizendo que não iria render-se ao desespero. “Não sou casado e não tenho emprego. O que tenho a perder?”, disse. “Tudo o que tenho é a aldeia, e vou sacrificar tudo por ela.” Na vila adjacente de Beit Mellat e mais acima no monte, em Memnaa, as condições só são melhores porque, ao contrário de Tikrit, ambas têm uma diáspora considerável à qual recorreram para ajuda. É costume os libaneses que migram ajudarem a família que fica, mas desde 2019 que os libaneses que vivem fora do país organizam uma série de iniciativas para ajudar a pagar tratamentos médicos, comida e outras formas de assistência às famílias, amigos e estranhos, por vezes através de acções de angariação de fundos organizadas nas redes sociais.
Em Memnaa, visitei Hanna Ibrahim, de 66 anos, mukhtar da aldeia (um cargo mais ou menos equivalente ao de presidente da câmara). Três dos seus quatro filhos vivem no estrangeiro, incluindo o mais velho, Charbel. Em 2019, Charbel fundou o Steps of Hope, uma ONG australiana que opera em todo o Líbano através de parcerias, financiando “sopas dos pobres”, distribuição de alimentos, medicamentos e pequenos kits solares para ajudar os estudantes a fazerem os trabalhos de casa depois do crepúsculo. O seu primeiro grande objectivo foi reparar 580 casas depois da explosão em Beirute com cerca de oitocentos mil euros rapidamente angariados pela organização de caridade. Charbel e cerca de 20 dos cerca de 400 libaneses-australianos cujas linhagens remontam a Memnaa também doam cerca de 91 mil euros por ano à sua aldeia.
“Se não fossem os nossos filhos que vivem no estrangeiro, a nossa aldeia teria sofrido muito e sido humilhada”, disse-me Joseph Youssef, chefe do conselho municipal de Memnaa. Os australianos ajudaram a comprar um gerador a gasóleo para manter as luzes ligadas e eles pagaram o gasóleo. Angariaram dinheiro para uma bomba para assegurar que as casas tivessem água. E proporcionam subsídios mensais para as 24 famílias que não têm parentes no estrangeiro.
Beit Mellat depende de uma diáspora ainda mais antiga: os mexicanos de ascendência libanesa, cujos antepassados partiram do país no século XIX. Esses primeiros emigrantes ajudaram uma vaga posterior de parentes que fugiram durante a guerra civil libanesa. “Temos sete mil pessoas na diáspora e a maior parte está no México”, disse-me Chahine Chahine, presidente do conselho municipal. Existem tantas pessoas de Beit Mellat no México que até existe uma vila chamada Beit Mellat perto da Cidade do México.
Em 2021, os libaneses da diáspora ajudaram a angariar mais de 137 mil euros para instalar painéis solares nas casas de todas as 96 famílias que residem em permanência na Beit Mellat libanesa. Num dia quente, bebi um café com Toufic Geaitani na varanda da sua casa apalaçada em Beit Mellat. Este vendedor de têxteis de 79 anos deixou o Líbano em 1968 e é um de muitos libaneses-mexicanos que ajudam a vila. Passa vários meses por ano no Líbano. De sua casa, avista-se um belíssimo pomar em socalcos com oliveiras e outras árvores de fruto. Um pinheiro solitário ergue-se acima da restante vegetação. “Foi plantado pela minha falecida avó em 1880 ou 1890”, disse-me. Fiz-lhe uma pergunta que eu própria tinha dificuldades em responder: Porque estava ainda ligado ao Líbano? O que o impelia a regressar?
“É uma atracção secreta”, disse. “Precisa de um psicólogo para ser explicada!” Fez uma longa pausa “O nosso sangue atrai-nos de volta”, disse. “Apesar de tudo o que aqui vejo errado e de tudo o que não funciona, não consigo evitá-lo. Não consigo deixar de voltar.”
É difícil adorar um país celebrizado por exportar os seus filhos. Há muito que o Líbano é um lugar de onde as pessoas partem para fugir à guerra, à instabilidade política, à pobreza e à fome; para irem em busca de conhecimento e aprendizagem; para se reunirem à sua família na diáspora; e simplesmente para procurar uma vida melhor. Os membros da minha família começaram em finais do século XIX.
Um grande número de libaneses debate-se actualmente com essa questão: devem ficar ou devem ir? Os pedidos de passaportes aumentaram dez vezes desde 2019, criando um atraso que implica tempos de espera superiores a um ano só para marcar uma primeira apresentação dos documentos. Aqueles que não podem esperar, ou não têm dinheiro para pagar o passaporte, estão a virar-se para um mar que, desde a Antiguidade guarda promessas de terras novas e vidas novas. Dezenas de pessoas morreram em travessias traiçoeiras para a Europa.
Muitos pais que conheço partiram com as suas famílias. Um dos meus amigos que decidiu ficar gosta de repetir uma frase comum: “O país não é um hotel do qual se possa fazer check out.” Talvez. Porém, ao contrário do Estado libanês, os hotéis dispõem de serviços essenciais. Na maior parte dos dias, vacilo entre o amor exasperado e a raiva latente. Dói-me o sofrimento causado pela crise económica e a falta de responsabilização de uma classe política que não ajuda o seu povo.
Sou filha da diáspora e faço parte da pátria. E como a minha mãe fez ao longo da vida, navego entre dois mundos. À semelhança de muitos libaneses, deixo o país durante longos períodos, mas nunca consigo esquecê-lo.
Quando entrei no meu apartamento devastado pela explosão, em Agosto de 2020, a memória da minha falecida avó entrou comigo. Lembrei-me de ela me dizer que não tinha conseguido recuperar nem um garfo dos destroços da sua casa e considerei-me afortunada. Ainda tinha talheres numa gaveta da cozinha. Fiz obras de reparação no meu apartamento, jurando que não estava a arranjá-lo para o abandonar mais tarde. Isso pareceria uma traição, uma rendição. Quando um sítio é a nossa casa, é preciso muito para cortar os laços dos costumes e do afecto, embora eu saiba que sou privilegiada. Ao contrário de muitas pessoas, graças ao meu passaporte australiano e aos dólares que tenho no bolso, tenho uma saída garantida e posso escolher sair.
Na explosão, todas as janelas do meu apartamento ficaram estilhaçadas, excepto uma antiga janela tripla que eu personalizara e transformara numa instalação para montar numa parede. Escrita em caligrafia árabe cursiva, a peça de arte enuncia um desejo que os meus pais tiveram antes de mim: as letras da canção de Fairouz descem pelas três janelas arqueadas em letras pretas gordas, transmitindo a esperança de que, se eu estiver noutro sítio, a brisa me levará para casa.
A National Geographic Society,
empenhada em divulgar e proteger as maravilhas do nosso planeta, financia o trabalho de fotografia documental da exploradora Rena Effendi desde 2021. Ilustração de Joe Mckendry.