A mais de 3.700 metros de altitude, a respiração torna-se difícil e as cefaleias são persistentes. Neste lugar recôndito dos Andes, apenas um remédio natural – e legal – pode aliviar o mal de montanha de que padecemos desde a chegada ao Peru há poucas horas: é o chacchado (“mascado” em quechua) de folhas de coca, uma planta com propriedades analgésicas que um grupo de mulheres locais nos oferece nesta escaldante manhã de início de Verão.

Sentadas no alto de um desfiladeiro cinzento, cerca de 110 quilómetros a sudeste de Cuzco, no distrito de Quehue, província de Canas, elas servem-se da sua planta sagrada e das suas múltiplas virtudes para acalmar a fome pouco antes do meio-dia. Estão rodeadas de feixes de q’oya, uma fibra vegetal obtida a partir de uma planta autóctone com a qual tecem grandes cordas que os homens fixam, logo de seguida, a cada ponto desta margem da garganta. Pouco mais de uma dezena de metros acima das águas límpidas do rio Apurímac, demoram várias horas a esticar seis cordas grossas entre as duas margens do desfiladeiro – quatro das quais, as matrizes, funcionarão como suporte, servindo as restantes duas de corrimão. Por fim, ao fixá-las a bases rectangulares de pedra (os estribos da ponte), os hábeis construtores compõem, para mais um ano, o esqueleto da Q’eswachaka (“ponte de corda” em quechua), a última ponte inca do mundo.

Conhecida pelo nome de Qhapaq Ñan, que em quechua significa “Caminho Real”, esta rede estendia-se em comprimento e largura pelos mais de dois milhões de quilómetros quadrados que albergavam o Tawantinsuyu (o império inca)

Esta esplêndida obra de engenharia andina com 28 metros de comprimento e 1,20 de largura persiste apesar da modernidade e, em 2013, foi incluída na Lista do Património Cultural Imaterial da UNESCO. Não foi em vão que os conhecimentos, as técnicas e os rituais vinculados à sua renovação se têm transmitido de geração em geração desde a época do esplendor do império inca, entre os séculos XV e XVI, até aos dias de hoje. Fabricados com materiais efémeros, estes passadiços deveriam ser reconstruídos anualmente para evitar acidentes devido ao desgaste causado pelo tempo e pelo clima. Assim o documentou o cronista inca Garcilaso em 1609 na sua obra “Comentarios Reales de los Incas” a propósito desta e de outras pontes que formavam os segmentos suspensos da antiga rede viária inca. Conhecida pelo nome de Qhapaq Ñan, que em quechua significa “Caminho Real”, esta rede estendia-se em comprimento e largura pelos mais de dois milhões de quilómetros quadrados que albergavam o Tawantinsuyu (o império inca), um território que se distribui actualmente por seis países da América do Sul: Peru, Bolívia, Equador, Colômbia, Chile e Argentina.

Segundo as comunidades camponesas de Huinchiri, Chaupibanda, Choccayhua e Ccollana Quehue, esta tradição subsistiu por mais de cinco séculos graças à intervenção da divindade. “Se não construirmos uma ponte nova cada ano, arriscamo-nos a incorrer na ira da Pachamama [a “Mãe Terra” ] e dos apus [forças tutelares da natureza]”, diz, estremecendo, María Quispe, uma senhora de 60 anos que participa desde criança nesta tarefa.

Vestindo-se como as outras mulheres, com uma saia comprida de lã e várias capas, é o laço preto do seu chapéu de coco que nos adverte para a sua viuvez. “Mesmo que não utilizemos a ponte, expomo-nos a catástrofes naturais que podem arruinar as nossas colheitas de batata, fava, trigo ou cevada, e inclusivamente a infelicidades como a doença ou a morte”, acrescenta enquanto vemos uma coluna de fumo a elevar--se do interior do desfiladeiro.

“Desde a época pré-colombiana que qualquer actividade importante de construção, tanto de casas como de pontes, se realiza apenas depois do pagamento à terra ou aos apus. Estas últimas divindades estão encarnadas em todos os acidentes geográficos da região, como as lagoas, rios ou montanhas".

O lugar fica impregnado de um aroma fumado devido à mesa que o paqo, o sacerdote andino, prepara junto de uma das bases da ponte. É uma espécie de altar construído num tecido com motivos indígenas sobre o qual o curandeiro deposita folhas de coca, fetos de lamas (ou seja, carcaças de crias deste mamífero andino) e alimentos que oferece a Pachamama através das chamas cintilantes. “Como tu e eu, a Terra tem fome e uma das nossas obrigações enquanto filhos é saciá-la. Pois ela é a fonte do nosso sustento”, explica Cayetano Ccanahuire, um paqo de 63 anos a quem se atribuem poderes divinatórios, assim como conhecimentos de medicina andina. “Antes da renovação da ponte, os apus indicam-me, todos os anos, qual é o apetite de Pachamama nos tempos que correm. Os seus gostos evoluem e nem sempre devemos pagar-lhe com o mesmo ‘manjar’, para o qual se convidam igualmente os apus para implorar a sua protecção e evitar acidentes durante a renovação.”

Instalado junto dos estribos de pedra durante os três dias que duram os trabalhos de renovação da ponte, ele só poderá abandonar o lugar quando a obra for transitável. “Desde a época pré-colombiana que qualquer actividade importante de construção, tanto de casas como de pontes, se realiza apenas depois do pagamento à terra ou aos apus. Estas últimas divindades estão encarnadas em todos os acidentes geográficos da região, como as lagoas, rios ou montanhas", explica o antropólogo da Universidade Católica de Lima, Pablo del Valle. “Trata-se de um apelo às forças da natureza, durante o qual as populações imploram pela sua acalmia para evitar danos, como uma cheia e a posterior inundação dos campos. Até as pontes do século XX só foram construídas depois do pagamento aos deuses!”


 

Uma coluna de fumo ergue-se sobre a garganta do rio Apurímac. Antes do início da construção da ponte, um paqo, ou sacerdote andino, oferece folhas de coca, um coração de cordeiro, fetos de lamas e alguns alimentos para implorar a protecção de Pachamama, a divindade inca da Mãe Terra.

Essas obras mais modernas trouxeram consigo o fim das arcaicas pontes de corda na cordilheira andina, uma vez que a renovação perpétua dos passadiços incas deixou de ser necessária. Enquanto algumas foram substituídas por pontes rodoviárias, os vestígios de outras são ainda visíveis em rios como o Vilcanota. A própria Q’eswachaka caiu em desuso desde a construção de uma ponte metálica mais sólida e segura, a poucos metros de distância.

“Nas décadas de 1960 e 1970, os membros das comunidades abandonaram a renovação da ponte esperando que a terra lhes perdoasse. Como mãe, Pachamama zanga-se, aborrece-se, renega e castiga, mas também perdoa”, explica a antropóloga Zonia Escalante. “Os camponeses confessam que, no decorrer daqueles anos, foram castigados com secas, geadas, ventos ciclónicos que destroçaram os telhados de palha das suas casas e também com a doença e morte dos seus animais. Estas provações obrigaram alguns chefes de família a emigrar para a cidade. Por fim, após 12 anos de inactividade, a tradição foi reavivada”, contou esta especialista em

Como as mulheres se mantêm afastadas dos trabalhos de renovação, pois crê-se que atrairiam a q’encha (ou “má sorte”), cabe aos homens, de pernas abertas apoiadas sobre as cordas grossas da base, começarem a entrançar as faces laterais e o piso da ponte.

Como as mulheres se mantêm afastadas dos trabalhos de renovação, pois crê-se que atrairiam a q’encha (ou “má sorte”), cabe aos homens, de pernas abertas apoiadas sobre as cordas grossas da base, começarem a entrançar as faces laterais e o piso da ponte. A melodia de uma flauta andina perde-se na atmosfera prístina da montanha, impregnada do perfume de chillca e p’sta, duas plantas aromáticas também utilizadas no piso da construção. Vestido com calças de ganga, um dos homens ajuda a transportar um grande “colchão” de ramos entrelaçados que os artífices da ponte desenrolarão posteriormente sobre as bases entrançadas, em jeito de pavimento rudimentar.

“O novo viaduto e a estrada actual abriram-nos uma porta para o mundo exterior que revolucionou pouco a pouco a nossa maneira de vestir e os nossos meios de transporte. Cada vez são menos os vizinhos que envergam os trajes tradicionais no quotidiano”, lamenta Cayetano Ccanahuire, mostrando-nos o seu traje de lã: casaco e calças brancas e pretas confeccionadas pelas mulheres quechua. “Da mesma maneira, certas ameaças à fé andina penetraram na nossa comunidade. O número de evangelistas cresce entre nós e isso enfurece as nossas divindades. Mas os ‘conversos’ continuam a contribuir para a reconstrução da Q’eswachaka por respeito e por imposição.”

“Mas a minha família ainda reside na comunidade e continua a alimentar a nossa herança ancestral. Uma herança da qual anseio fazer parte todos os anos. É um legado que anseio partilhar a cada ano que passa.”

Com a chegada da idade adulta, chega também a obrigação de participar nesta tradição enraizada num antigo costume pré-colombiano ainda vigente em vários países latino-americanos: as minkas, ou trabalhos comunitários empreendidos para benefício de todo o colectivo, como a manutenção ou reparação de trechos da Qhapaq Ñan que passavam perto das suas povoações. À semelhança dos seus antepassados, quase um milhar de quechuas, dispersos pelas encostas das montanhas, ainda se ocupam da conservação da Q’eswachaka. Apesar disso, esta tradição vai perdendo adeptos paulatinamente.

“Muitos jovens têm de partir em busca de uma vida melhor”, lamenta Dimas Huillca, um rapaz que, como outros vizinhos seus de expressão quechua, se exprime com dificuldade em castelhano. Sentado numa grande rocha junto de uma estrada asfaltada, observa ao longe o festival de danças folclóricas que se celebra no segundo domingo de Junho, um acontecimento musical com o qual se dão por concluídos, ao quarto dia, os trabalhos de renovação.

“Há três anos tive de emigrar para Yanaoca, uma povoação aqui perto, por motivos profissionais”, explica Dimas. “Mas a minha família ainda reside na comunidade e continua a alimentar a nossa herança ancestral. Uma herança da qual anseio fazer parte todos os anos. É um legado que anseio partilhar a cada ano que passa.”

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