Um sol resplandecente desmente o Norte brumoso que esperava encontrar na baía de Pasaia. Vim aqui em busca de um navio e de um sonho. Não necessariamente por esta ordem.
A réplica em tamanho real da nau San Juan esconde-se dos olhares indiscretos dentro de um grande cubo de madeira, como um presente por abrir. É difícil imaginar que esta simples estrutura espreitando o mar, no coração do estuário da Guipúscoa, alberga no interior todo o conhecimento dos mestres construtores de navios de há 500 anos. No interior do estaleiro, a bordo da embarcação, sinto-me invadida por uma emoção inexplicável e ancestral. Estou exactamente a dez minutos e a cinco séculos do local de onde os antigos baleeiros bascos davam o salto para o oceano Atlântico.
No silêncio de uma manhã luminosa, imagino a gritaria e a actividade frenética do passado. Hoje, como provavelmente naquela altura, cheira a terra molhada e a madeira acabada de cortar. A história que a minha mente começa a engendrar – enquanto Enara, a responsável pelas comunicações da Albaola, La Factoría Marítima Vasca, me conduz ao interior das instalações – começa há muito tempo, mais precisamente em 1565, quando a nau San Juan, a autêntica, partiu daqui para as costas da recém-descoberta América para nunca mais voltar.
“Os galeões bascos zarpavam em Maio e regressavam em Outubro. Assim foi durante três séculos”, contou Xabier Agote, presidente de Albaola, a sociedade nascida de um sonho: recuperar a embarcação emblemática, naufragada há cinco séculos na outra margem do mundo. “Durante quase trezentos anos, a caça à baleia-franca foi uma das principais fontes de riqueza do País Basco. Os baleeiros foram aperfeiçoando a sua técnica juntamente com a das embarcações que se faziam ao mar. Eram uma referência.”
Os baleeiros que chegaram à América. Segundo uma lenda local, os marinheiros bascos poderiam ter alcançado a costa americana no século XIV, mais de cem anos antes de Cristóvão Colombo. Talvez isso fosse possível, se tivermos em conta a importância comercial do óleo de baleia, considerado o petróleo da época e cujo preço rondava o equivalente a cerca de 8.500 euros por barril. “Os bascos não gostavam de revelar as suas zonas de pesca para evitar a concorrência”, afirma Xabier. “Se já tivessem chegado à ilha da Terra Nova, ou à península do Labrador, em busca de baleias, é lógico que nunca o tivessem contado.” Não terão sido os únicos europeus a pescar naquelas águas.
Segundo se pensa, a nau San Juan navegava no Atlântico Norte há menos de cinco anos quando naufragou. Até então, os marinheiros bascos tinham desenvolvido uma importante indústria baleeira no território que viria a ser reclamado por França. Há muito que se serviam dessas enseadas como locais de ancoragem, onde se abasteciam de provisões e construíam postos de observação para vigiar as baleias e fornos para fundir a sua gordura e obter o valioso combustível e, até, cemitérios para enterrar os seus mortos. Fundaram povoados nómadas com milhares de indivíduos, conforme relatou, com grande espanto, o explorador francês Jacques Cartier, quando em 1543, ao chegar à foz do rio São Lourenço, afirmou ter encontrado “nessas águas distantes, pelo menos mil bascos pescando bacalhau”. Os marinheiros cantábricos chegavam todos os anos ao litoral atlântico canadiano para uma nova época de caça à baleia, faziam o seu trabalho, contratavam mão-de-obra local a troco de pão e sidra e tentavam zarpar de regresso a casa no mês de Outubro, antes que o gelo impedisse a passagem dos seus navios carregados com o valioso produto extraído dos cetáceos, sobretudo, os barris de óleo de baleia.
Porém, nem todos regressavam. A nau San Juan, uma embarcação que pesaria 200 toneladas construída em Pasaia, não regressou. O seu naufrágio ficou registado nos arquivos da época, embora permanecesse adormecido durante 400 anos, até alguém o encontrar, mergulhando não nas águas gélidas do Atlântico, mas nos arquivos da povoação de Oñati, em Guipúscoa. Selma
Huxley, historiadora anglo-canadiana, chegou ao País Basco quase por acaso. Decidiu instalar-se ali quando descobriu terem existido entre aquele recanto do Cantábrico e o seu saudoso Canadá laços nos quais ninguém parecera ter reparado. Através de testamentos, documentos de compra de provisões, contratos e apólices de seguros, desvendou a actividade comercial internacional de toda uma época e resgatou a história esquecida dos baleeiros bascos. Explorou arquivos, traduziu textos e analisou mapas da época. Foi assim que tomou conhecimento da existência do San Juan e deduziu que ele deveria repousar em frente da actual povoação de Red Bay, no local onde naufragara 413 anos antes.
E ali estava ele. Selma deu conhecimento da sua investigação à Parcs Canada, a entidade encarregada de zelar pelo património histórico canadiano, que lhe concedeu financiamento e pessoal para procurar o navio naufragado. Encontraram-no em 1978. A nau San Juan estava quase intacta, preservada graças aos sedimentos que a cobriam e às baixíssimas temperaturas, apenas a dez metros de profundidade e dez metros da costa.
“Se ainda ninguém a tinha encontrado, foi porque ali ninguém sabia nadar”, diz Xabier. “Para quê nadar, se não há probabilidades de sobrevivência numa água cuja temperatura média ronda dois graus?”. O arqueólogo Robert Grenier foi o responsável pela recuperação do destroço. Desde o início, ele e a sua equipa repararam que o estado especial de conservação do navio proporcionaria um conhecimento valioso e inédito sobre a construção naval da época, mas também sobre as condições de vida e de trabalho dos seus tripulantes.
Três trabalhadores procuram o tronco de carvalho adequado para fabricar o cadaste de popa da quilha do San Juan.
A história encontra-se narrada nos painéis conservados na sala-museu da Albaola em Pasaia. Hoje é segunda-feira e está encerrada ao público e, por isso, a nossa visita é totalmente privada. Xabier Agote, que já deve ter contado esta história milhares de vezes, não consegue evitar emocionar-se quando chega a este momento. Isto porque, quando os mergulhadores da Parcs Canada começaram a levantar aquela jóia da arqueologia subaquática e a documentá-la, foi criado o conceito de Red Bay National Historic Site para a divulgação do património recém-descoberto.
A quatro mil quilómetros, alheio a tudo aquilo, o pequeno Xabier olhava para o mar com nostalgia na mesma província que vira partir o San Juan. Era muito novo, mas custava-lhe ver como as embarcações tradicionais bascas iam sendo postas de lado pelas novas tecnologias de construção e não conseguia deixar de lamentar que o segredo da sua construção artesanal se perdesse para sempre.
Carpinteiros de ribeira. Xabier Agote soube o que queria fazer quando fosse adulto antes de saber qual o nome daquela profissão. Ao assistir a uma reportagem emitida pela televisão francesa, viu aquela profissão tão antiga como a própria navegação e com um nome pleno de reminiscências poéticas: carpinteiro de ribeira. Xabier não se deixou intimidar pela inexistência de estaleiros de madeira no seu país. Matriculou-se directamente na Escola de Construção Naval do Maine, nos Estados Unidos, e enquanto esperava pela sua admissão, dedicou-se a viajar para conhecer o mundo e aperfeiçoar o seu inglês.
Na Austrália, um amigo com quem praticava surf mostrou-lhe uma capa da National Geographic e comentou: “Olha, tu não és basco? Tens de ver isto.” A revista publicara uma reportagem exaustiva na qual descrevia a recuperação da nau San Juan, construída em Pasaia e imobilizada sob as águas de Red Bay. Xabier viu o seu destino com tanta clareza como se lho tivessem mostrado numa bola de cristal. “Essa revista mudou-me a vida. Ainda hoje a tenho”, diz com orgulho, mostrando-me o painel onde expõe essa capa. “Foi então que soube o que queria fazer para o resto da minha vida, ou melhor, o que tinha de fazer”, corrige.
Regressaria a Pasaia, criaria um estaleiro tradicional e reconstruiria essa embarcação, uma réplica em tamanho real. “Estudaria as técnicas ancestrais de construção naval, recuperaria o património marítimo da minha terra e far-me-ia ao mar para recriar a última viagem daquele baleeiro.” Corria o ano de 1985. Xabier tinha 21 anos.
E aqui está ele, 33 anos mais tarde, no museu-estaleiro construído pelas suas próprias mãos, desenvolvendo a sua história juntamente com a do San Juan, como se ambas fossem uma só. Se encontrássemos este homem em qualquer outro cenário – na montanha, num escritório, num bar ou numa aldeia do interior – saberíamos, apesar de tudo, que é marinheiro. Há algo no seu porte, na sua maneira de olhar, como se precisasse de horizontes, que nos faz pensar nos mares que navegou, nos navios que comandou e nas travessias que enfrentou.
Certo dia, há 20 anos, recebeu um convite da The Rockland Apprenticeshop, no estado norte-americano do Maine, para reconstituir uma embarcação típica basca. Construiu uma traineira de pesca do século XIX com fundos doados por emigrantes bascos nos EUA. Navegou durante três semanas pelo rio Hudson antes de Xabier decidir entregá-la à sua terra natal. A traineira percorreu toda a costa basca em 29 etapas de cabotagem, conferindo ao património marítimo basco uma visibilidade mediática até então inexistente. A Albaola acabara de nascer.
Albaola, uma peça imprescindível. Em linguagem náutica e em euskera, uma “albaola” é uma pequena peça da complexa engrenagem de um navio. Aqui e agora, Albaola é algo mais do que Xabier, a sua peça-chave, o homem que a fundou. Albaola é um estaleiro marítimo que pretende estudar e reproduzir embarcações tradicionais em instalações abertas ao público, uma escola de navegação, um estúdio de modelismo naval e um centro de formação de carpinteiros de ribeira, denominado Lance Lee, em homenagem ao velho professor de Xabier Agote no Maine, e que se baseia unicamente na motivação pessoal.
Albaola é igualmente um museu que contém um património imaterial e intangível, a relação comercial histórica entre o País Basco e a península de Labrador. O projecto é alimentado por
24 pessoas apaixonadas pela história e pela navegação e pelo grupo de voluntariado Auzolan, cujos membros contribuem para criar o universo marítimo em redor do conceito da arqueonavegação. Essa será, precisamente, a missão do San Juan quando estiver pronto para se fazer ao mar: a arqueonavegação, uma viagem no tempo.
Xabier pegou no projecto da velha nau como num amor de infância, quando se sentiu preparado para tal, entregando-se então plenamente a esta tarefa colossal. O reconhecimento mundial do conjunto arqueológico de Red Bay como Património Mundial pela UNESCO em 2013, reafirmou a importância de uma embarcação única, representada no logótipo da organização e que passou a simbolizar o património arqueológico submerso.
Em 2014, no dia de São João, a quilha foi instalada e a construção foi iniciada oficialmente. Apenas dois anos depois, em 2016, a cidade de Donostia tornou-se Capital Europeia da Cultura com a réplica do San Juan como projecto estruturante e transnacional. Esse foi o reconhecimento definitivo para que o projecto recebesse uma importante injecção de capitais públicos.
“Os fundos públicos são totalmente necessários ao arranque e o retorno do investimento beneficia inteiramente o município”, informa Xabier enquanto entramos nas instalações onde se fabrica a réplica da nau San Juan. “Porém, a verdadeira liberdade está na auto-suficiência e é a isso que a Albaola aspira.” Actualmente, mais de 60% dos fundos provêm de investimentos privados, das visitas ao museu – que espera ser o segundo mais visitado de Guipúscoa – de grandes patrocinadores e até de micromecenato, através do apadrinhamento das peças do barco. Para se autofinanciar, Albaola também organiza eventos, oficinas de aprendizagem, concertos ou conferências no encantador estaleiro situado no estuário da ria.
A sua referência mais imediata é o Hermione, uma réplica da fragata na qual o marquês de Lafayette viajou até aos Estados Unidos para ajudar os colonos que queriam tornar-se independentes de Inglaterra. A sua construção prolongou-se durante 17 anos e implicou um investimento de 50 milhões de euros, mas significou um incrível empurrão económico para a cidade de Rochefort. Albaola deseja seguir os seus passos, o seu rumo.
A bordo de um sonho. A armação de madeira ergue-se diante de mim como a estrutura de um monstro gigantesco. Cheira a resina. À minha esquerda, um rudimentar sistema mecânico serve para entrançar as cordas de cânhamo que farão parte do aparelho da nau. Para respeitar aquilo a que a associação chama integridade comemorativa, todo o processo de construção deve reproduzir os métodos que teriam sido utilizados no século XVI.
“A única falha são os planos”, diz Xabier. “Antigamente, não se usavam porque cada mestre construtor de navios tinha as proporções na cabeça. Nós obtivemos os planos graças à documentação técnica cedida pela Parcs Canada e temos maquetas que nos ajudam a visualizar a embarcação.” A partir daí, regressa-se ao método rudimentar, mas eficaz, do século XVI e ao uso de plantas bidimensionais à escala 1:1 que servem para procurar as árvores mais apropriadas para o formato de cada peça. A comarca de Sakana fornece a madeira necessária para a execução do projecto: carvalho-negral para as travessas e carvalho-alvarinho para as peças maiores e mais curvilíneas. “Há estruturas que devem ser fabricadas numa peça só e com o grão a favor, de modo a oferecer mais resistência ao mar Cantábrico”, salienta Xabier. Aqui até o corte é feito como manda a tradição: nas luas minguantes do Inverno.
Num processo de colaboração, a floresta de Irati proporcionará os abetos para os mastros e vergas. As árvores foram cedidas pela Junta del Valle de Salazar. Diferentes povoações do vale do Ebro cultivam seis hectares de cânhamo para fabricar o cordame e o velame. Até o breu, elaborado a partir de resina de pinheiro, pez e gordura animal, é feito como antigamente, num forno tradicional, pela Cabaña Real de Carreteros de Quintanar de la Sierra, em Burgos. E, naturalmente, também é transportado como no século XVI: em grandes carros puxados por bois. “Trouxeram a primeira fornada numa travessia de 18 dias desde Quintanar até Pasaia”, conta Xabier. “Faziam uma festa em cada povoação por onde passavam.”
A Rede San Juan, que engloba os fornecedores das matérias-primas da nau, recuperou o valor antropológico de estradas, transportes fluviais e ofícios como o entrançamento do cordame, o fabrico do breu ou as ferragens hidráulicas. São estas vias e velhas funções que nos falam da relevância da construção naval na época, numa espécie de “itinerário dos baleeiros”.
Entramos no navio, que dorme protegido da chuva à espera do dia em que, por fim, assentará sobre o mar o seu enorme bojo. “Será no próximo festival marítimo, no ano 2020”, diz o meu interlocutor. “Será um lançamento técnico. Vamos pô-lo na água para continuarmos a trabalhar nele. Faltará toda a parte superior: mastros, cordame e velame.”
Descemos ao terceiro convés, o mais profundo. Desde a quilha, uma coluna vertebral com mais de 14 metros de comprimento, o cavername emerge como as costelas de um enorme animal mitológico. Apesar das suas dimensões, o navio parece-me pequeno para enfrentar uma tempestade, para baloiçar ao sabor de um Atlântico feroz ou para lidar com uma baleia. Tento imaginar as entranhas do navio cheias de barris que regressariam a casa com a preciosa gordura do animal.
“É muito mais larga do que as outras”, mostra Xabier. “Estava pensada para a optimização da carga.” Esta condicionava de tal forma a estabilidade do navio que era necessário lastro para a viagem de ida. “Levavam telhas do País Basco. No destino, usavam-nas para construir fornos e assim extrair o óleo de baleia. Iam-se destruindo, de um ano para ano, e eram pulverizadas pelo tempo. Dali veio o nome de Red Bay, ou seja, baía vermelha.”
A geografia como reflexo da história. Nomes de origem euskera em costas do outro lado do mundo. Quando se fizer ao mar, o San Juan contará tudo isso a quem souber escutá-lo. Regressamos ao primeiro convés. Alcanço a superfície como se chegasse a um porto. Xabier despede-se para ir ao encontro de uma visita institucional de membros do Parlamento Europeu com um orgulho mal disfarçado. Ele adora o facto de o seu sonho se ter convertido também no de outros.
Jon, outro dos membros da Factoría, acompanha-me de novo até ao porto. Os peregrinos que fazem o Caminho de Santiago e descem do monte Jaizkibel observam a estrutura cúbica de madeira reciclada sem imaginar que se encontram diante de um estaleiro de outro século. Xabier faz-me parar quando estou prestes a partir. “Não hesites em contar o que te disse: aquela capa da National Geographic mudou a minha vida.” Prometo-lhe que o farei. Enquanto me afasto, sinto o passado atrás de mim e a nostalgia indefinível de, por instantes, ter vivido, literalmente, a bordo de um sonho.