A vasta e audaz eflorescência de betão, vidro e aço, produzida ao longo das três últimas décadas nas areias escaldantes da Arábia, pode ser testada de forma extravagante: podemos começar por esquiar. Apreciada do exterior do Centro Comercial dos Emirados, a pista de esqui faz lembrar uma nave espacial prateada empalada no piso térreo. No interior, até empurrar as portas de vidro do Ski Dubai, há lojas de marca. Para lá de um mural alusivo aos Alpes, corro o fecho do casaco, calço as luvas e… maravilho-me com as proezas do ar condicionado.
A T-shirt que comprei como recordação mostra a ilustração de um termómetro. “Passei de +50 a -8”, mostra a legenda. Não tive assim tanto frio na pista, mas a temperatura exterior no Dubai pode de facto aproximar-se de 50ºC durante o Verão. A humidade é sufocante devido à proximidade do mar. Raramente chove: o Dubai tem um valor de pluviosidade inferior a 100mm anuais. Não há rios permanentes aqui.
Que tipo de fixação humana faz sentido num sítio destes? Durante séculos, o Dubai foi uma aldeia piscatória e um porto comercial, pequeno e pobre. Depois, o petróleo e o crescimento imobiliário transformaram-na numa cidade com uma linha de horizonte repleta de maravilhas arquitectónicas servida pelo terceiro aeroporto mais movimentado do mundo. “Do ponto de vista da sustentabilidade, provavelmente não o teríamos feito aqui”, afirma Janus Rostock, um proeminente arquitecto expatriado de Copenhaga.
E, no entanto, o governo do Dubai pretende criar precisamente uma cidade sustentável.
Talvez quando os camelos voarem, dirá o leitor. Os anos de expansão rápida fizeram da cidade um símbolo dos excessos, resultantes da combinação entre energia barata e a indiferença ambiental. A prática de esqui num recinto fechado é apenas um exemplo: o Dubai queima mais combustível fóssil para a produção de ar condicionado nas suas torres de vidro. Para manter a água a correr nas torneiras destes edifícios, ferve o equivalente a centenas de piscinas olímpicas cheias de água do mar todos os dias. E para criar mais praias para hotéis e casas de luxo, soterrou recifes de coral sob enormes ilhas artificiais.
Em 2006, o World Wide Fund for Nature (WWF) declarou que os Emirados Árabes Unidos eram o país com a maior pegada ecológica per capita, sobretudo devido às suas emissões de carbono. O Dubai aceitou a crítica. Na década decorrida desde então, a população da cidade duplicou para mais de 2,8 milhões de habitantes. Mas entretanto o Dubai começou a mudar.
Reluzentes carruagens de metropolitano sem maquinista passam agora junto da Estrada Sheikh Zayed. Um novo complexo residencial denominado Cidade Sustentável recicla a sua água e desperdícios e produz mais energia do que consome. No deserto, o Dubai está a construir uma gigantesca central de energia solar que, em breve, será a energia mais barata e limpa do planeta.
“A liderança do país reconheceu que o crescimento económico não é sustentável sem controlo das emissões”, diz Tanzeed Alam, director do Departamento de Clima e Energia da Emirates Wildlife Society, a parceira local da WWF.
No Dubai, a palavra “liderança” significa Sua Alteza, o xeque Mohammed bin Rashid Al Maktoum, o emir de 68 anos que dirige os destinos locais. O xeque assumiu o poder em 2006. Decretou que a sua cidade obteria 75% da sua energia de fontes limpas até 2050. O xeque pretende que o Dubai tenha a pegada de carbono mais pequena do mundo.
Muitas pessoas que conheci aquando da minha visita recente, incluindo Janus Rostock e Tanzeed Alam, acreditam que a cidade tem capacidade para consegui-lo. E se pode acontecer aqui, dizem, pode acontecer em qualquer sítio.
O xeque Mohammed cresceu numa casa iluminada com lamparinas de petróleo, onde a água oriunda do poço da vila era distribuída por uma carroça puxada por burros. A casa pertencia ao seu avô, o emir. A família Al Maktoum dirige o Dubai desde 1833. A casa ainda está de pé, junto do porto natural que esteve ligado à origem da cidade. O pai do xeque Mohammed, o xeque Rashid bin Saeed Al Maktoum, cresceu na mesma casa e, durante a sua juventude, viveu anos em que a fome grassou entre o povo do Dubai. A Grande Depressão e a invenção das pérolas de aquicultura destruíram o mercado da pesca de pérolas, principal negócio da cidade.
O xeque Rashid começou a modernizar o Dubai após assumir o poder em 1958 e, sobretudo, depois de o petróleo começar a jorrar em finais da década de 1960. Introduziu rapidamente a electricidade, a água canalizada e as estradas asfaltadas. Construiu escolas, um aeroporto e, em 1979, o World Trade Centre (actualmente denominado Torre Xeque Rashid), de 39 pisos, o edifício mais alto do Médio Oriente naquela altura.
O negócio das pérolas não duraria para sempre e o xeque Rashid adivinhou que o mesmo aconteceria ao petróleo. O Dubai detém apenas uma fracção do petróleo dos EAU, pois Abu Dhabi possui a maior parte. Por isso, embora o Dubai não fosse um centro do comércio mundial em 1979, o xeque Rashid construiu a torre, decidido a transformar a cidade precisamente num centro comercial. Nesse ano, inaugurou um segundo porto maior em Jebel Ali, a 40 quilómetros do Ribeiro, como é conhecido.
O seu filho, Mohammed, preencheu o espaço vazio entre ambos, transformando o Dubai num núcleo não só de comércio e finanças mas também de turismo e desenvolvimento imobiliário. A cidade explodiu costa abaixo. Avançou pelo golfo Pérsico, em penínsulas artificiais construídas com quantidades titânicas de areia dragada, e disseminou-se pelo deserto Arábico. “Quando examinamos a forma como o Dubai tem crescido, comprovamos a sua obsessão pelo alargamento deserto adentro”, afirma Yasser Elsheshtawy, um arquitecto de ascendência egípcia e norte-americana que leccionou na Universidade dos EAU durante 20 anos. “Não havia limitações. A energia era barata. Havia automóveis. Porque não fazê-lo, então?”
As aspirações do xeque Mohammed são semelhantes às do seu pai, só que mais grandiosas: ele quer que o Dubai supere o mundo, que mostre ao mundo que os árabes podem voltar a ser pioneiros, como foram na Idade Média. A sua estratégia tem sido atrair o mundo até ao Dubai. Cerca de 90% dos 2,8 milhões de residentes são expatriados, que vivem num sítio onde, há poucas décadas, alguns milhares de árabes se esforçavam para sobreviver. A população do Dubai, jovem e incrivelmente diversificada é o seu principal recurso. No entanto, todas estas pessoas têm de ser mantidas vivas no deserto.
Actualmente o Dubai tem bastante electricidade e água canalizada. Quase toda é proveniente de um único complexo industrial com quatro quilómetros de extensão situado em Jebel Ali. Ali, a Autoridade para a Electricidade e Água do Dubai (DEWA) queima gás natural para gerar dez gigawatts de electricidade. O calor excedente é utilizado para dessalinizar a água do mar. O gás é transportado por um gasoduto a partir do Qatar, com o qual os EAU cortaram as relações diplomáticas em Junho passado, e a bordo de navios-cisterna, a partir de locais tão distantes como os Estados Unidos da América,
O Dubai, um emirado minúsculo que julgamos rico em petróleo, depende de combustível fóssil importado. Tentando explicar-me como se sente, um funcionário da DEWA apertou a sua própria garganta com uma mão. Contudo, sentirmo-nos estrangulados tem um lado bom: pode motivar-nos a mudar as circunstâncias.
A crise financeira de 2008 e 2009 travou a expansão do Dubai. O turismo caiu a pique, bem como os preços do imobiliário. O Dubai teve de ser resgatado das dívidas por Abu Dhabi. “A crise económica foi, talvez, a melhor coisa que nos aconteceu, uma bênção dissimulada”, diz Habiba Al Marashi, co-fundador do Grupo Ambiental dos Emirados, uma empresa de reciclagem e formação. “Abrandou o ritmo louco da construção.”
Enquanto recuperava o fôlego, a cidade teve várias razões para repensar o seu rumo. Na Dubai Holding, a empresa de construção do xeque Mohammed, “uma das questões levantadas era a forma como iria o Dubai fornecer energia para alimentar todos estes enormes projectos de imobiliário”, comenta o consultor de energia Robin Mills, que ali trabalhava na altura. As alternativas ecológicas estavam na moda: Masdar City, Apregoada como a primeira cidade do mundo sem emissões de carbono, sem automóveis e alimentada a energia solar, começava então a erguer-se nas areias de Abu Dhabi.
Além disso, o preço da energia solar caiu a pique. No passado mês de Fevereiro, quando visitei o Parque Solar Mohammed bin Rashid Al Maktoum, localizado 50 quilómetros a sul da baixa da cidade, a DEWA estava a concluir a instalação de painéis solares com 200 megawatts de capacidade e acabara de assinar um contrato para os próximos 800 megawatts, dos quais cada kilowatt/hora custará 2,53 cêntimos. Existem planos para gerar 5.000 megawatts até 2030.
“O potencial solar é enorme”, comenta Robin Mills. “Milhões de hectares de deserto vazio e imenso espaço em telhados. Para mim, a produção de electricidade é quase um ‘problema resolvido’.”
Depois da extravagância dos anos de crescimento económico explosivo, o Dubai está também a tentar refrear a procura de electricidade e água. Os preços aumentaram substancialmente (embora continuem a ser subsidiados) e os edifícios novos já não são construídos como se a energia e a água fossem ilimitadas, afirma Saeed Al Abbar, que dirige o Conselho de Construção Ecológica dos Emirados. Talvez ainda possuam fachadas de vidro, mas têm obrigatoriamente aquecedores solares de água, por exemplo, e sistemas que reduzem a iluminação e o ar condicionado quando os moradores estão ausentes. “Testemunhei de facto uma enorme mudança”, diz Saeed, que está a ajudar a conceber um dos primeiros complexos de escritórios com “consumo líquido de energia nulo” do Dubai, capaz de produzir tanta energia quanta a que consumirá.
A primeira urbanização residencial com consumo líquido de energia nulo já foi inaugurada na zona sul da cidade. O segredo da Cidade Sustentável, diz o responsável pela sua construção, Faris Saeed, não se deve apenas aos painéis solares que revestem todos os parques de estacionamento e açoteias dos telhados, nem ao aquecimento solar da água de cada casa. Deve-se a escolhas simples, como a implantação em ruas estreitas de 500 casas em forma de L, suficientemente próximas entre si para poderem gerar sombra umas para as outras, como acontecia nas casas antigas. Isto permitiu que as unidades de ar condicionado fossem mais pequenas e baratas, diz Faris. O isolamento suplementar e as janelas e tintas reflectoras reduzem ainda mais os consumos de energia.
Todos estes esforços começaram entretanto a compensar. O consumo per capita de água e electricidade está a diminuir e, segundo o governo, o mesmo ocorre com as emissões de carbono per capita, causa principal da gigantesca pegada do Dubai. Em média, cada residente “emite” agora menos de 18 toneladas por ano. Os residentes do bairro pedonal de Saeed podem deslocar-se a pé até aos restaurantes, mercearias e à mesquita – e há uma escola a caminho – mas continua a ser necessário fazer uma viagem de automóvel de 16 a 25 quilómetros até qualquer um dos vários centros do Dubai. O metropolitano, por mais valioso que seja, não chega à Cidade Sustentável.
Os especialistas em planeamento urbano estão a repensar a maneira como as pessoas se deslocam dentro dos próprios centros. Janus Rostock, arquitecto responsável pela Atkins, a empresa que projectou o metropolitano, o hotel Burj Al Arab em forma de vela e o edifício Dubai Opera, está a liderar um esforço para transformar a zona em redor de Burj Khalifa, o edifício mais alto do mundo, num bairro de lojas e restaurantes situados ao nível do solo que convide as pessoas a passear.
A Dubai Holding, do xeque Mohammed, planeou a construção, junto do Centro Comercial dos Emirados, de um complexo com 1,5 quilómetros de comprimento, denominado Jumeirah Central, onde centenas de edifícios serão construídos em pequenos quarteirões possíveis de percorrer a pé.
Todas as discussões sobre o futuro do Dubai conduzem ao xeque e ouvi testemunhos frequentes sobre a liderança sagaz deste homem. “Não temos muitas formalidades”, conta Hussain Lootah, director-geral da administração municipal. “Os projectos demoram dias a serem executados. Nos outros sítios, demoram anos.” Não se trata apenas da ausência de burocracia: sem imprensa livre, partidos políticos ou eleições livres, há pouca oposição aos projectos patrocinados pelo xeque.
Durante os anos de crescimento explosivo, este sistema originou a expansão precipitada do Dubai e projectos mal concebidos como O Mundo, um arquipélago de 300 ilhas artificiais (com a forma de países) que permanece maioritariamente desabitado. No entanto, também gerou o metropolitano do Dubai, um sucesso esmagador construído em menos de uma década e inaugurado no auge da crise financeira. Projectos como este dão esperança aos especialistas em sustentabilidade.
Talvez a principal causa de esperança seja o alinhamento dos imperativos ambientais do Dubai com os económicos. Não se trata apenas do baixo custo da energia solar. O Dubai está a mudar de direcção porque tem de fazê-lo: está a competir com outras cidades em termos empresariais e humanos e a sustentabilidade está na moda. “Temos vontade e razões para mudar o Dubai e a forma como é visto”, comenta Janus Rostock.
Ao mesmo tempo, a cidade não tem intenções de abrandar. Numa parede do gabinete de Hussain Lootah, várias fotografias aéreas emolduradas mostram a evolução do Dubai desde 1935. Ao centro, figura uma projecção do futuro: uma costa ainda mais cheia de ilhas artificiais do que hoje. A população do Dubai está em vias de duplicar para mais de cinco milhões até 2030. A cidade vive do alargamento da área construída: quase um terço da população trabalha no ramo da construção.
A registar-se um ponto de estrangulamento, ele acontecerá no sector da água e não da energia. O golfo Pérsico, um mar de águas pouco profundas e quase fechado, já é cerca de 20% mais salgado do que o oceano e está a ficar ainda mais salgado: as represas da Turquia e do Iraque estão a desviar a água doce e as alterações climáticas aumentam a evaporação, tornando o Dubai ainda mais quente e forçando as fábricas de dessalinização a libertarem salmoura quente. Com o tempo, a água será mais difícil de dessalinizar e, possivelmente, demasiado salgada para permitir a existência de parte da vida marinha que em tempos sustentou o Dubai. “Ainda assim, achamos que vamos conseguir lidar com os problemas”, comenta Hussain Lootah. Com tecnologia, “tudo é possível”.
Com energia solar suficiente, até é possível esquiar num recinto fechado sem sentir culpa. Aliás, tendo em conta as alterações climáticas, o Dubai pode precisar desse refúgio. No Verão, a população quase não sai à rua. Até 2100, poderá haver dias tão quentes e húmidos que um ser humano arriscará a vida só por caminhar ao ar livre. Será que esta cidade nem sequer deveria estar aqui? Faço esta pergunta a Tanzeed Alam. “É a pergunta errada”, diz ele. “A questão passa mais por aceitar onde estamos hoje e como podemos torná-lo melhor. É uma questão do direito ao desenvolvimento e do direito que os seres humanos têm a um futuro melhor. Como poderemos aperfeiçoar as cidades