A maior inovação da história da humanidade não foi a ferramenta de pedra nem a espada de aço, mas a invenção da expressão simbólica pelos primeiros artistas.

É como se entrássemos na garganta de um animal. Um passadiço metálico, em forma de língua, sobe num arco e mergulha na escuridão. O tecto fecha-se e, em alguns sítios, as paredes colam-se aos meus ombros.

Depois, os flancos calcários abrem-se e entramos na barriga do “animal”, uma câmara ampla. É aqui que vamos seguramente encontrar os leões das cavernas. E os rinocerontes-lanudos, os mamutes e os bisontes, uma colecção de criaturas ancestrais, correndo, lutando, caçando num silêncio total. Fora da gruta, no mundo real, há muito que desapareceram. Mas este não é o mundo real. Aqui, eles permanecem vivos sobre as paredes rachadas e sombreadas.

Há cerca de 36 mil anos, alguém que viveu num tempo incomensuravelmente diferente do nosso caminhou desde a entrada original desta gruta até à câmara onde nos encontramos e, à luz tremeluzente de uma fogueira, começou a fazer desenhos sobre as paredes nuas: perfis de leões das cavernas, manadas de rinocerontes e mamutes, um bisonte magnífico à direita e uma criatura quimérica (parte bisonte, parte mulher) moldada a partir de um enorme cone de rocha suspensa. Noutras câmaras, aloja-se o cavalo, a cabra-montês e o auroque. Um mocho moldado em lama por um único dedo numa parede rochosa. Um bisonte gigantesco formado por impressões de mãos embebidas em ocre. E ursos das cavernas caminham despreocupados, como se procurassem um poiso para a longa sesta de Inverno. As obras são frequentemente executadas por meio de uma linha contínua, simples, perfeita.

No total, os artistas representaram 442 animais, possivelmente ao longo de milhares de anos, utilizando 36 mil metros quadrados de superfície das grutas como tela. Alguns animais apresentam-se solitários, ou mesmo escondidos, mas a maioria está congregada em grandes mosaicos como aquele que observo neste instante, na parte mais recôndita da gruta.

Escondida durante 22 mil anos por um desabamento de rochas, a caverna surgiu à luz do dia em Dezembro de 1994, quando três espeleólogos, Eliette Brunel, Christian Hillaire e Jean-Marie Chauvet, desceram por uma fenda estreita numa falésia e entraram na escuridão. Desde então, aquela que é actualmente conhecida como Gruta de Chauvet-Pont-d’Arc tem sido ferozmente protegida pelo ministério francês da Cultura. Somos das poucas pessoas autorizadas a fazer a mesma viagem que os artistas ancestrais. A idade destes desenhos torna jovens as famosas pirâmides do Egipto; porém, cada risco de carvão, cada mancha de ocre, apresentam-se hoje tão frescos como se tivessem sido feitos ontem. A sua beleza confunde a nossa noção de tempo. Num instante, estamos ancorados no presente, em observação tranquila. No momento seguinte, olhamos para as pinturas como se toda a outra arte e toda a civilização ainda não existissem.

Como surgiu este feito humano, há tanto tempo e aparentemente vindo do nada? Até há pouco pensava-se que os desenhos das paredes de grutas do Paleolítico Superior conhecidas no Sul da Europa, como Altamira, Lascaux, Chauvet e até mesmo o Escoural, no Alentejo e conhecido desde a década de 1960, fossem a expressão de um tipo de ser humano superior que chegara ao continente, expulsando os neandertais desprovidos de sentido artístico que aqui viviam e evoluíam há centenas de milhares de anos. Essa tese vingou durante décadas. Hoje, porém, já sabemos que a história é muito mais complicada e consequentemente mais interessante. Começa, como é frequente as histórias começarem, em África.

 

europa

A Europa alberga exemplos famosos de arte paleolítica, como as pinturas de Chauvet, Lascaux e Altamira, mas as provas de comportamento simbólico são muito mais antigas em África e no Médio Oriente.

 


 

Christopher henshilwood levanta-se e estica-se até ao limite dos seus quase dois metros de altura. Sacode o pó das mãos e alonga o olhar sobre o oceano Índico. Está mesmo na ponta de África e, exceptuando as enormes rochas fustigadas pelo mar 24,5 metros abaixo, entre ele e a Antárctida só há 2.400 quilómetros de mar ondulante e encapelado.

“Não foi um dia mau”, diz, num tom de barítono que se poderia dizer divino, se Deus tivesse sotaque sul-africano.

É verdade, não foi um mau dia. Investigador da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, e também da Universidade de Bergen, na Noruega, Christopher e os colegas passaram a manhã a escavar num sítio conhecido como Abrigo de Klipdrift, acrescentando algumas ferramentas antigas e outras novas descobertas ao número crescente de provas de que os seres humanos modernos habitaram intermitentemente estas colinas e grutas pouco profundas durante mais de 165 mil anos. Por qualquer parâmetro de comparação, seria um excelente dia, mas é verdade que Christopher já teve dias melhores. Alguns dos seus achados mais memoráveis provêm da gruta de Blombos, 45 quilómetros a leste de Klipdrift, junto de uma zona onde ele brincava quando era criança. Um dia, em 2000, a sua equipa desenterrou um pequeno bloco de ocre vermelho gravado, um pouco mais pequeno do que um telemóvel. O ocre é comum nesta região de África e é utilizado há milénios com vários fins. Esta peça, porém, era diferente: há cerca de 75 mil anos, uma pessoa inteligente desenhou-lhe cuidadosamente um padrão de marcas triangulares paralelas sobrepostas.

Ninguém conhece o significado destas marcas que, desde então, já foram encontradas noutras 13 peças. Uma assinatura? Cálculos? Uma lista de compras primitiva? Fosse qual fosse o seu misterioso propósito, era 35 mil anos mais antiga do que qualquer outra evidência indiscutível de comportamento simbólico conhecida na altura.

A princípio, a polémica sabotou o achado. Alguns cientistas atacaram a pedrinha vermelha como um achado isolado, com nada mais do que uns arranhões aleatórios ou rabiscos idiossincráticos. “Disseram que não significava nada”, comenta o arqueólogo. “Disseram todas as coisas negativas que possa imaginar.” Passado algum tempo, porém, houve quem a considerasse inovadora.

Outros exemplos simbólicos e ornamentais não tardaram a ser encontrados. A equipa de Christopher descobriu as conchas perfuradas de pequenos gastrópodes marinhos denominados Nassarius, com cerca de 75 mil anos, apresentando sinais de terem sido unidas num fio. Outros achados eram ainda mais antigos. Contas datadas de há 82 mil anos foram encontradas num sítio chamado Gruta dos Pombos, em Taforalt, Marrocos. No extremo oposto do Mediterrâneo, contas semelhantes descobertas em duas grutas israelitas, Qafzeh e Skhul, foram datadas de há 92 mil anos e, no mínimo, 100 mil anos, respectivamente. De volta à África do Sul, uma equipa dirigida por Pierre-Jean Texier, da Universidade de Bordéus, comunicou em 2010 a descoberta de cascas de ovo de avestruz gravadas com 60 mil anos, no Abrigo sob Rocha de Diepkloof, a norte da Cidade do Cabo. Entretanto, Blombos continuou a fornecer tesouros: ferramentas de osso delicadamente esculpidas e decoradas e provas de que, até há 100 mil anos, os habitantes da gruta tinham triturado metodicamente ocre num pó fino, misturando-o com outros ingredientes para fabricar uma pasta. Armazenado em conchas de abalone, os recipientes mais antigos de que há conhecimento, a pasta teria sido utilizada como tinta decorativa para corpos, rostos, ferramentas ou peças de roupa. Em 2009, Christopher comunicou a descoberta de mais ocre e rochas marcadas com riscos deliberamente sobrepostos, igualmente com uma idade máxima de 100 mil anos.

Comparados com a beleza assombrosa da arte de Chauvet, 65 mil anos mais tardia, artefactos como estes parecem rudimentares. No entanto, a criação de uma forma simples representativa de um símbolo, elaborado por uma mente, partilhável com outros, só se torna óbvia depois de já ter acontecido. Estas primeiras expressões concretas de consciência, mais ainda do que a arte rupestre, representam um salto do nosso passado animal rumo àquilo que somos hoje – uma espécie rodeada de símbolos e convenções em toda a nossa vida social.

 

 

Existe outra característica reveladora nestas primeiras erupções de simbolismo em África e no Médio Oriente: elas vão e vêm. As contas, a tinta, as marcas sobre ocre e sobre ovos de avestruz – em cada caso, os artefactos aparecem no registo arqueológico, persistem numa área limitada durante alguns milhares de anos e, depois, desaparecem. O mesmo se aplica às inovações tecnológicas. Pontas de arpão em osso, que não se encontravam em nenhum outro lugar há mais de 45 mil anos, foram encontradas na República Democrática do Congo em sedimentos com quase o dobro dessa idade. Na África do Sul, existem duas tradições relativamente complexas de ferramentas de pedra e osso: Still Bay, com 75 mil anos, e Howieson’s Poort, com 65 mil anos. Todavia, a última durou apenas seis mil anos e a primeira quatro mil. Não se encontrou em parte alguma qualquer tradição duradoura no espaço e no tempo, acumulando riqueza e diversidade, até que, há quase quarenta mil anos, a arte começou a surgir de forma mais generalizada em África, na Eurásia e na Australásia. Impressões de mãos em stencil descobertas em regiões orientais tão distantes como a ilha indonésia das Celebes, outrora classificadas como invenção do Paleolítico Superior europeu, foram recentemente datadas de há quase quarenta mil anos.

Parece portanto improvável que algum “interruptor” genético se tenha ligado nos nossos antepassados africanos para gerar a capacidade de um novo e mais elevado nível de cognição que, uma vez desenvolvido, produziria uma alteração duradoura no comportamento humano.

Como explicar, então, estes rasgos aparentemente esporádicos de criatividade? Uma hipótese é a causa não ser um novo tipo de pessoa, mas a maior densidade de pessoas. Talvez os picos demográficos tenham desencadeado contacto entre grupos, acelerando a transmissão inovadora de ideias de uma mente para outra, criando uma espécie de cérebro colectivo. Os símbolos teriam contribuído como elemento aglutinador deste cérebro colectivo. Quando as populações voltavam a regredir, diminuindo abaixo da massa crítica, os grupos tornavam-se isolados, deixando as novas ideias sem destino. Aquilo que fora consolidado pelas inovações fenecia e desaparecia da memória.

Estas teorias são difíceis de provar, pois o passado guarda bem os seus segredos. Contudo, análises genéticas de populações modernas apontam efectivamente no sentido de um aumento demográfico em África há 100 mil anos. Um estudo de 2009 conduzido por Adam Powell, Stephen Shennan e Mark G. Thomas, do University College de Londres, também fornece corroboração estatística à capacidade das populações de maior dimensão para gerar inovações. E uma investigação realizada por Joseph Henrich, actualmente na Universidade da Colúmbia Britânica, indica que, à medida que as populações encolhem, experimentam dificuldades cada vez maiores em manter inovações inventadas por si próprias. Os habitantes da ilha da Tasmânia fabricavam ferramentas de osso, roupa para o frio e equipamento de pesca 15 mil anos antes de estes avanços desaparecerem do registo arqueológico, há cerca de três mil anos. Joseph Henrich defende que quando os níveis dos mares subiram, há 12 mil a 10 mil anos, isolando a Tasmânia do resto do mundo, a população indígena de talvez quatro mil indivíduos simplesmente não tinha dimensão para manter vivas as tradições culturais.

A razão pela qual o registo arqueológico de África se esbate durante 150 séculos não é de todo clara. Talvez pragas, catástrofes naturais ou alterações climáticas radicais provocassem o decréscimo demográfico. No entanto, o arqueólogo Francesco d’Errico, da Universidade de Bordéus, salienta que, embora condições difíceis possam ser fatídicas para algumas culturas, outras poderiam ser estimuladas por elas. Não existe uma fórmula definida.


 

“Cada região do globo gerou culturas com várias trajectórias diferentes”, diz ele. “Podemos ter situações em que algum desastre caótico de curto prazo possa ter eliminado uma cultura numa região, ao passo que noutra os habitantes foram capazes de tirar partido desse desafio.” Ele compara o conceito com uma receita. “Mesmo que os ingredientes sejam os mesmos, não obtemos necessariamente o mesmo resultado.”

 

invenção da expressão simbólica
65.000 anos: Christopher Henshilwood segura um lápis de ocre vermelho encontrado no sítio vizinho do Abrigo sob Rocha de Klipdrift, em 2013. “Foi aqui que tudo começou”, diz.

“Deixe-me  mostrar-lhe uma coisa.” Nicholas Conard espreita sobre o ombro e depois gira cuidadosamente o botão de um cofre enorme existente no seu gabinete da Universidade de Tübingen, instalado num castelo do século XVI. Ele retira do cofre quatro caixinhas de pinho, colocando-as delicadamente sobre a mesa à minha frente. Dentro de cada uma está uma escultura minúscula: um cavalo, um mamute, um bisonte e um leão. Todas provêm de uma gruta alemã chamada Vogelherd. A graciosidade e beleza ímpares que ostentam seriam o orgulho de qualquer artista contemporâneo. E contudo datam de há 40 mil anos, ou seja, quatro mil anos mais antigas do que as obras-primas pintadas em Chauvet.

“São um assombro”, diz Nicholas, director científico da área de pré-história da universidade. “São todas diferentes. Mas quando as observamos é óbvio que formam um conjunto coerente.”

Os seres humanos responsáveis pelo fabrico destes objectos faziam parte de uma população que deixou África há cerca de sessenta mil anos, seguindo uma rota que atravessou o Médio Oriente e a actual Turquia, percorrendo a orla ocidental do mar Negro e subindo o vale do Danúbio. Tanto quanto sabemos, não deixaram sinais de inclinações artísticas em ponto algum dessa viagem, nem sequer um pedaço de ocre gravado. Mas quando se instalaram há cerca de quarenta e três mil anos, nos vales dos rios Lone e Ach, no Sul da Alemanha, começaram subitamente a criar. E não fizeram entalhes rudes, mas figuras realistas de animais esculpidas em presas de mamute.

A maioria destes objectos é originária de quatro grutas: Hohle Fels e Geissenklösterle, no vale do Ach, e Hohlenstein-Stadel e Vogelherd, no Lone. Constituindo pouco mais do que sulcos na parede rochosa, as pinturas poderiam facilmente ser ignoradas hoje por alguém que conduzisse pelas estradas interiores que serpenteiam pelas montanhas do Sudoeste da Alemanha. Verdes e luxuriantes na actualidade, os vales do Ach e do Lone eram paisagens gélidas há 40 mil anos, no início de um período conhecido como Aurinhacense, salpicadas por manadas de cavalos, renas e mamutes. Apesar da dureza das condições climáticas, a riqueza dos sítios arqueológicos indica que houve crescimento demográfico durante este período. O aumento pode ter contribuído para justificar um aparente surto de criatividade, semelhante ao anteriormente observado em África. Talvez as dificuldades enfrentadas por estes colonos europeus os tenham levado a partilhar costumes transmitidos de um grupo para outro ou de uma geração para a seguinte. Em tempos duros, esculturas e ferramentas teriam facilitado casamentos, transacções comerciais e alianças intertribais, contribuindo para a disseminação de novas técnicas de caça, construção de abrigos e fabrico de vestuário.

Em Hohle Fels, a equipa de Nicholas Conard escavou recentemente alguns objectos cujas mensagens eram tão sexualmente explícitas que poderiam necessitar de um aviso parental. Uma delas é a escultura de uma mulher com seios e genitais exagerados, descoberta em 2008. Com pelo menos 35 mil anos, a Vénus de Hohle Fels é a figura indiscutivelmente humana mais antiga alguma vez descoberta. Duas figuras muito mais antigas oriundas de Marrocos e de Israel podem ser rochas naturais com vagas semelhanças com a forma humana. A equipa já encontrara uma vara de siltito polido, com cerca de vinte centímetros de comprimento e três centímetros de diâmetro, com um anel gravado numa das extremidades – provavelmente um símbolo fálico. A cerca de um metro da figura de Vénus, a equipa de Nicholas encontrou uma flauta esculpida a partir de um osso oco de grifo e mais três flautas na gruta de Geissenklösterle: uma de marfim e duas afeiçoadas num osso de asa de cisne. São os instrumentos musicais mais antigos do mundo.

De todas as descobertas deste período surgidas na Alemanha, nenhuma é mais fascinante do que o Homem-Leão da gruta de Hohlenstein-Stadel, uma escultura fantástica com quase quarenta mil anos. Os cerca de duzentos fragmentos originais do Homem-Leão foram descobertos em 1939, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, por Robert Wetzel, professor catedrático de anatomia na Universidade de Tübingen, e um geólogo chamado Otto Völzing. Robert Wetzel esperara trabalhar nas peças em presa de mamute quando a guerra terminasse, mas elas permaneceram intactas dentro de uma caixa durante 30 anos. Em 1969, o arqueólogo Joachim Hahn retirou-as da caixa e começou a juntá-las, compondo um quebra-cabeças tridimensional.

Ao fazê-lo, surgiu uma extraordinária obra de arte. Com 29,6 centímetros de altura, o Homem-Leão faz empalidecer todas as outras esculturas até à data descobertas nos vales alemães. Mas aquilo que o torna especialmente interessante, segundo o arqueólogo Claus-Joachim Kind, do Gabinete Estadual para o Património Cultural de Baden-Württemberg, é o facto de ser a primeira representação de uma criatura completamente imaginária, parte homem e parte leão. A sua criação exigiu não só uma mente invulgarmente inventiva, como capacidades técnicas impressionantes e uma enorme quantidade de tempo. “Não é um objecto que se faça à noite depois do trabalho”, brinca Claus-Joachim.

Conseguimos sentir a força desta figura quando a observamos: a fusão serena de um ser humano altivo com um animal feroz. Será que a escultura reflecte um desejo de conceder o poder do leão a um ser humano? Ou representará a capacidade especial de um xamã de andar entre os mundos espirituais humano e animal? Hohlenstein-Stadel é a única gruta da região onde os arqueólogos não encontraram ferramentas de uso quotidiano, ossos ou lixo. E é mais funda do que as outras grutas. Não é difícil imaginar que, dentro das suas câmaras, caçadores antigos venerassem o Homem-Leão e que a gruta de Hohlenstein-Stadel fosse um centro primitivo de religião pré-histórica. Seria “um sítio sagrado”, imagina o arqueólogo.

Segundo Nicholas Conard, estas comunidades possuíam mentes tão completamente modernas como as nossas e procuravam respostas para os mistérios da vida no ritual e no mito, sobretudo face a um mundo incerto. Quem governa as migrações das manadas, quem cultiva as árvores, quem modela a Lua, quem faz acender as estrelas? Temos de morrer porquê? Para onde vamos depois? “Eles queriam respostas, mas não tinham explicações de base científica para o mundo em seu redor”, diz.


Pouco depois da chegada dos humanos modernos à Europa, os habitantes que há muito residiam neste continente começaram a morrer. Um dos seus últimos redutos deverá ter sido a Península Ibérica, onde os seus vestígios conhecidos, como o dente encontrado na gruta da Figueira Brava, na serra da Arrábida, são mais tardios do que no resto do continente.

Os neandertais tinham surgido na Eurásia cerca de duzentos mil anos antes e restam poucas provas de que demonstrassem comportamentos simbólicos. No entanto, a noção tradicional do Neandertal como ser bruto incapaz de tal comportamento tem sido lentamente abandonada. Nunca tendo atingido as densidades demográficas que poderão ter desencadeado o aparecimento do simbolismo em África, o homem de Neandertal talvez não sentisse necessidade de desenvolvê-lo ou então revelou-o de formas ainda não compreendidas.

Durante décadas, a discussão acerca da capacidade dos neandertais para igualar os padrões dos seus sucessores centrou-se num sítio em França chamado Grotte du Renne, onde artefactos normalmente associados aos seres humanos do Paleolítico Superior (ferramentas de osso, lâminas distintivas de pedra e dentes de animais furados e entalhados provavelmente usados como pendentes) foram descobertos juntamente com restos mortais do homem de Neandertal. Alguns investigadores argumentaram que embora exista a possibilidade de os neandertais serem responsáveis por esta tradição de ferramentas (conhecida como Chatelperronense), eles ainda só seriam uma espécie capaz de imitar o artesanato elaborado dos seus novos vizinhos humanos, não o tendo inventado.

Quanto mais aprendemos sobre os neandertais, incluindo a sua capacidade de se cruzarem com os nossos antepassados directos, mais a explicação da “imitação” nos parece fantasiosa quando aplicada ao Chatelperronense. O registo de comportamento simbólico dos neandertais pode ser ténue noutros locais, mas é discernível. Alguns académicos defendem que esqueletos de homem de Neandertal descobertos em França e no Iraque foram objecto de enterramento deliberado. Marcas de cortes recentemente encontradas em ossos de asas de aves sugerem que eles utilizaram plumas como ornamentos até há 50 mil anos e um padrão axadrezado gravado há pelo menos 39 mil anos na rocha de uma gruta em Gibraltar indica que eles teriam sido capazes de raciocínio abstracto. Um único disco vermelho pintado numa parede da gruta espanhola de El Castillo foi recentemente datado de há cerca de 41 mil anos, época incrivelmente próxima daquela em que se tem conhecimento da presença dos últimos neandertais na Europa Ocidental. Talvez tenham sido eles, e não nós, os primeiros praticantes de arte rupestre.

No entanto, a maioria das pinturas nas grutas do Sul de França e Espanha, as extraordinárias gravuras ao ar livre do santuário do vale do Côa, em Portugal, ou até a placa móvel gravada com as figuras de quatro animais do sítio de Vale de Boi, no Algarve, escavado pelo arqueólogo Nuno Bicho, foram realizadas após o desaparecimento dos neandertais. Porquê aqui? Porquê nessa altura? Uma das pistas é fornecida pelas próprias grutas. São mais fundas e maiores do que as dos vales dos rios Ach e Lone, na Alemanha, ou do que os abrigos sob rocha de África. Tito Bustillo situa-se no Norte de Espanha e mede pelo menos 700 metros de uma extremidade à outra. El Castillo e outras grutas do monte Castillo mergulham, encurvam e entram no solo como saca-rolhas gigantes. O mesmo processo acontece no Alentejo, onde a gruta do Escoural permaneceu inviolada durante milénios, preservando vestígios ósseos e uma colecção impressionante de pintura rupestre.
As grutas francesas de Lascaux, Grotte du Renne e Chauvet, por seu lado, ocupam o espaço de campos de futebol dentro da rocha, com várias ramificações e câmaras tão grandes e imponentes como catedrais.

Talvez a explosão de criatividade que vemos nas paredes destas grutas tenha sido em parte inspirada pela sua profundidade e escuridão, ou melhor, pelo contraste entre claro e escuro. Iluminadas por luzes tremeluzentes de fogueiras ou lamparinas de pedra alimentadas por gordura animal, como as encontradas em Lascaux, as saliências e reentrâncias das paredes rochosas poderiam sugerir formas naturais, tal como as nuvens passageiras fazem a uma criança imaginativa. Em Altamira, no Norte de Espanha, os pintores responsáveis pelo famoso bisonte incorporaram os altos e saliências da rocha, dando mais vida e dimensão às suas imagens. Chauvet inclui um painel de quatro cabeças de cavalo desenhadas sobre curvas e pregas subtis numa parede de rocha recuada, acentuando o focinho e a testa do animal. O seu aspecto muda consoante a nossa perspectiva: de um lado mostra perfis perfeitos, mas de outro ângulo os narizes e os pescoços dos cavalos parecem esticados, como se estivessem a fugir de nós. Numa câmara diferente, um retrato de leões das cavernas parece emergir de um corte na parede, acentuando as curvas do dorso e das espáduas de um animal, enquanto este persegue a sua presa invisível. Segundo o nosso guia, é como se alguns animais já estivessem na rocha, aguardando a sua revelação pelo carvão e tinta do artista.

No seu livro “La Préhistoire du Cinéma”, o cineasta e arqueólogo Marc Azéma defende que alguns destes artistas antigos foram os primeiros animadores do mundo e que as imagens sobrepostas dos artistas se aliavam à luz tremeluzente das grutas escuras como breu, criando a ilusão de movimento das pinturas. “Eles queriam tornar estas imagens realistas”, referiu o autor. O cineasta recriou versões digitais de algumas imagens das grutas que ilustram este efeito. O Painel dos Leões na câmara mais funda de Chauvet é um bom exemplo. Exibe as cabeças de dez leões, todos aparentemente apostados em apanhar a sua presa. No entanto, à luz de uma tocha ou lamparina de pedra estrategicamente posicionada, estes dez leões poderiam ser caracterizações sucessivas de apenas um leão, ou talvez de dois ou três, deslocando-se numa história, à semelhança dos fotogramas de um livro de folhear ou de um filme animado. À frente dos leões, há uma manada de rinocerontes. A cabeça e o chifre do animal de cima repetem-se seis vezes, assemelhando-se a um staccato de imagens sobrepostas, como se ele investisse para o alto com o corpo inteiro tremendo em contornos múltiplos.

A interpretação de Marc Azéma é compatível com a do eminente pré-historiador Jean Clottes, o primeiro cientista a entrar em Chauvet, poucos dias após a sua descoberta. Clottes crê que as imagens da gruta foram feitas para serem apreciadas de forma muito semelhante aos filmes, peças de teatro ou cerimónias religiosas da actualidade – um abandono do mundo real que arrebata o público e o une numa poderosa experiência partilhada. “Era um espectáculo!”, diz Clottes.

Milhares de anos mais tarde ainda é possível sentir o poder desse espectáculo enquanto caminhamos pelas câmaras da gruta, escutando o som da nossa própria respiração pesando-nos no ouvido, e os constantes pingos da água escorrendo das paredes e dos tectos. Embalados por este ritmo, quase conseguimos ouvir a batida musical ancestral e sentir o embalo da dança, enquanto um contador de histórias lança a luz de uma tocha sobre uma imagem flutuante e maravilha o público com um conto.

invenção da expressão simbólica

36.000 anos: Os artistas do Paleolítico Superior retratavam sobretudo herbívoros, mas os pintores de Chauvet desenhavam frequentemente predadores, como estes no famoso Grande Painel. Em Junho de 2014, a UNESCO classificou a gruta de Chauvet como Património Mundial.