Em algumas culturas, a viuvez significa exílio, vulnerabilidade e abuso. As mulheres enlutadas começam agora a lutar por um novo estatuto.

1. REGRESSO À VIDA, Vrindavan, Índia
Muito antes do nascer do Sol, as viúvas de Vrindavan apressam-se, através dos becos escuros e não pavimentados, tentando evitar as poças de lama e os dejectos de vaca. Há uma determinada calçada onde, todas as manhãs, voluntários instalam um grande fogão portátil e aquecem uma panela de chá. As viúvas sabem que têm de chegar lá bem cedo, sentar-se em esteiras de pano, levantar a bainha dos saris para não tocar na sujidade e descansar os cotovelos sobre os joelhos enquanto esperam. Se chegarem demasiado tarde, o chá já pode ter desaparecido. Ou o arroz branco já pode ter acabado no ponto de apoio seguinte, muitas vielas depois. “Não consigo andar depressa de manhã, não estou bem”, queixa-se uma delas. “Mas temos de ser rápidas. Não sabemos o que podemos perder.”

Algumas viúvas envolveram-se em saris coloridos, mas a maioria vestiu-se de branco. Na Índia, essa é a cor mais comum entre as mulheres que perderam maridos, recentemente ou há décadas.

Eram cinco horas e meia de uma madrugada fresca, sob o tom prateado da Lua. Algumas viúvas envolveram-se em saris coloridos, mas a maioria vestiu-se de branco. Na Índia, essa é a cor mais comum entre as mulheres que perderam maridos, recentemente ou há décadas. Na penumbra, moviam-se como cardumes, apressando-se em conjunto, inundando as esquinas – uma dúzia aqui, duas dúzias além.
Não há dados exactos sobre o número de viúvas em Vrindavan. Alguns relatórios calculam que sejam duas ou três centenas; outros referem dez mil ou mais. A cidade e as cidades dos arredores são um centro espiritual, repleto de templos dedicados ao deus hindu Krishna e ashrams, onde bhajans, as cantigas votivas, são entoadas durante o dia pelas viúvas empobrecidas que se agrupam lado a lado no solo. A santidade das bhajan dos ashrams é sustentada pelo canto constante e, embora esta seja nominalmente uma tarefa de peregrinos e sacerdotes, as viúvas obtêm refeições quentes, e talvez um tapete para dormir à noite, se entoarem os cânticos repetidamente, por vezes três ou quatro horas sem parar. 

BÓSNIA E HERZEGOVINA  - No 20.º aniversário do massacre de milhares de muçulmanos bósnios em Srebrenica, Advija Zukić, protegida do sol por sombrinhas, assiste ao funeral do marido Alaga. Peritos forenses trabalham ainda na identificação das vítimas.

Também vivem em abrigos, em quartos alugados partilhados e sob lonas à beira da estrada quando não são admitidas em instituições de apoio. Chegam aqui viúvas oriundas de toda a Índia, particularmente do estado de Bengala Ocidental, onde a fidelidade a Krishna é forte. Por vezes, chegam acompanhadas dos gurus nos quais confiam. Noutras ocasiões, são trazidas pelos parentes que depositam a viúva num ashram ou num canto da rua e depois partem.
O papel desempenhado pela mulher enviuvada na família termina. Uma viúva na Índia carrega para sempre o fardo de ter sobrevivido ao marido, está “fisicamente viva, mas socialmente morta”, nas palavras da psicóloga Vasantha Patri, de Deli, que escreveu sobre a situação difícil das viúvas da Índia. Como Vrindavan é conhecida por ser a “cidade das viúvas”, uma possível fonte de refeições quentes, de companheirismo e de razão de vida, há gerações que elas também chegam aqui sozinhas, em autocarros ou comboios. “Nenhuma de nós quer voltar para as nossas famílias”, declarou uma mulher chamada Kanaklata Adhikari, falando da sua cama no quarto que partilha com outras sete mulheres no abrigo. “Nunca falamos com as nossas famílias. Nós somos a nossa família.”

Na Índia, rapar o cabelo a uma viúva foi em tempos uma prática comum, uma forma de mostrar o fim da sua feminilidade.

Estava sentada por cima dos lençóis, com as pernas cruzadas à frente apesar de estarem contorcidas pela idade e pela doença e de apenas ser capaz de caminhar quase dobrada ao meio. O seu sari branco cobria frouxamente a área superior da cabeça. Na Índia, rapar o cabelo a uma viúva foi em tempos uma prática comum, uma forma de mostrar o fim da sua feminilidade. O cabelo da viúva Adhikari parecia ter sido rapado recentemente. “Mantenho-o assim porque o meu cabelo era dele”, diz, franzindo os olhos para os convidados, a estrangeira e o jovem intérprete, como que surpreendida pela pergunta. “Vem cá um barbeiro e corta-mo. A maior beleza de uma mulher está nos seus cabelos e nas suas roupas. O meu marido já não está entre nós. O que faria eu com ele?”
Quantos anos tem agora?, pergunto.
“96.”
E quantos tinha quando morreu o seu marido? 
“70.”
Estava em Vrindavan porque a fotógrafa Amy Toesing e eu visitámos, ao longo de um ano, extraordinárias comunidades de viúvas em três locais diferentes do planeta. Não queríamos explorar o luto privado, mas sim a forma como as sociedades podem forçar as mulheres a adoptar uma nova identidade após a morte do marido: passam a párias, exiladas, empecilhos, mártires e presas.

UGANDA - Christine Namatovu e o filho Andrew confortam-se na casa de família de onde os sogros de Christine a tentaram despejar quando o marido morreu. O despejo das viúvas é prática comum nesta região. Com a ajuda de advogados, Christine ripostou.

Em 2011, a Organização das Nações Unidas (ONU) decretou o dia 23 de Junho como o Dia Internacional das Viúvas, mas a explicação oficial foi sombria: em muitas culturas, as viúvas são vulneráveis a tradições abusivas, à pobreza, às consequências das guerras que matam os maridos e que a própria viuvez deve ser considerada uma potencial calamidade para os direitos humanos. As mulheres que eu e Amy encontrámos, como as assistentes sociais e voluntárias que tentavam ajudá-las, tornaram-se nossas professoras explicando-nos crueldades especiais praticadas especificamente contra as viúvas. 
Na Bósnia e Herzegovina, passámos um mês junto de uma das concentrações mais singulares de viúvas de guerra da história. São mulheres que passaram duas décadas procurando e enterrando os restos mortais dispersos de mais de sete mil homens mortos. No Uganda, aprendemos a frase “herança de viúva” que, na cultura local, não significa a herança que a viúva recebe. Significa que os sogros arrestam ilegalmente todos os bens herdados, assumindo que a estão a herdar também a ela, como parceiro sexual ou esposa para qualquer parente que escolherem.
Em Vrindavan, encontrámos uma assistente social chamada Laxmi Gautam. Perguntámos-lhe se alguma vez imaginara o que mudaria se lhe fosse dado o poder de proteger as mulheres desse tipo de indignidades. “Removeria a palavra ‘viúva’ do dicionário”, respondeu. “Assim que o marido de uma mulher morre, ela recebe esse nome. Esta palavra. E quando lhe fica colado, começam os seus problemas.”

Na Bósnia e Herzegovina, passámos um mês junto de uma das concentrações mais singulares de viúvas de guerra da história. São mulheres que passaram duas décadas procurando e enterrando os restos mortais dispersos de mais de sete mil homens mortos.

A organização de caridade criada por um magnata britânico nascido na Índia, Raj Loomba, pressionou a ONU a aprovar o dia da viúva.
O isolamento e a invisibilidade tornam difícil descobrir quantas viúvas existem no mundo.
A recolha de dados mais ambiciosa veio da Fundação Loomba, que fornece apoio às viúvas e recentemente calculou que existam cerca de 259 milhões nessas condições, lembrando porém que poucos países monitorizam a presença e as necessidades das suas próprias viúvas. 
A data de 23 de Junho também foi ideia de Raj Loomba. Foi neste dia que morreu o seu pai, na Índia. Apesar de terem passado mais de sessenta anos, o tipo de histórias que nos conta sobre o que aconteceu a seguir é-nos familiar. A mãe foi banida das festividades por ser “azarenta” e ficou marcada para o resto da vida como um presságio de má sorte. Escutámos esse desfecho de muitas mulheres de Vrindavan que encontrámos.
Uma viúva não deve vestir-se de cores ou embelezar-se porque isso seria impróprio para o novo papel de enlutada que durará para sempre. Uma viúva deve consumir apenas comida pouco apaladada, em pequenas porções, porque a riqueza das especiarias poderia agitar as paixões que ela nunca deverá voltar a experimentar. Estas são regras hindus que estão a desaparecer, muitas vezes rejeitadas como relíquias de outro século por indianos educados, mas ainda levadas a sério em algumas comunidades e famílias conservadoras. Meera Khanna, uma escritora de Deli que trabalha para uma organização de defesa das viúvas chamada Guild for Service, observa que a estigmatização das viúvas não tem origem em Vedas, as escrituras sagradas hindus, pois foi criada por gerações de tradição repressiva.

Uma viúva não deve vestir-se de cores ou embelezar-se porque isso seria impróprio para o novo papel de enlutada que durará para sempre.

“Em nenhum ponto das escrituras se diz que uma viúva tem de viver uma vida austera”, disse. “Numa passagem, refere-se: ‘Tu, mulher. Porque choras pelo homem que já cá não está? Ergue-te, toma a mão de um homem vivo e vive de novo.’”
Planeámos a visita a Vrindavan e a Varanasi, uma cidade a noroeste de Calcutá que também atrai centenas de viúvas, de forma a coincidir com uma campanha simples: queríamos verificar como as viúvas se juntam às festas de celebração. Por toda a Índia, os festivais Diwali e Holi são ocasiões de alegria pública e divertimento.
O festival Diwali inclui presentes, luzes brilhantes e fogo-de-artifício. O Holi celebra-se nas ruas de forma a que as pessoas possam “brincar ao Holi”, como dizem os indianos, atirando pós coloridos e água uns aos outros.
Para uma mulher condenada ao eterno abafamento, nada neste tipo de exuberância costumava ser aceitável. “Quando enviuvam, dizem-lhes que não têm autorização para participar num festival”, contou Vinita Verma, uma funcionária da organização Sulabh International. “Mas queremos que estas mulheres façam parte da sociedade. Têm todo o direito de viver a sua vida.”

ÍNDIA - Comunidades de viúvas nos templos das cidades atraem mulheres hindus do Nepal e do Bangladesh. A viúva bengali Bhakti Dashi, de 75 anos, viveu 25 anos na parte de trás de um templo no centro espiritual de Navadwip, em Bengala Ocidental. Juntamente com outras mulheres que saíram de casa ou foram afastadas pelas suas famílias, canta orações durante horas em troca de hospedagem e comida.

Vinita é a vice-presidente da Sulabh International, uma organização indiana que providencia serviços de apoio e pequenos subsídios mensais a viúvas em abrigos de Vrindavan e Varanasi. Há alguns anos, a Sulabh começou a organizar eventos Diwali e Holi para viúvas nas duas cidades. Inicialmente, eram pequenos eventos, mas depois ganharam escala. Mesmo em privado, dentro de casa, algumas mulheres precisaram de tempo para aprender a relaxar entre as flores e os pós do Holi, conta Vinita. “Sentiam que, se tocassem nas cores, aconteceria algo muito negativo.”
Em 2015, as festividades nas “cidades das viúvas”, como Vrindavan e Varanasi, deslocaram-se intencionalmente para os espaços abertos. Não surgiu nenhuma denúncia na comunicação social da Índia e, quando eu e Amy estivemos na Índia, a única queixa que ouvimos sobre as festas descreviam o espectáculo como algo bonito mas com pouco conteúdo. Foi-nos dito que as viúvas precisavam sobretudo de alojamentos mais confortáveis, refeições que não tivessem de conquistar cantando, famílias que as acolhessem, comunidades que não as rotulassem.
“A verdadeira mudança tem de ser originada na sociedade que as produziu”, diz Laxmi Gautam. Laxmi abriga regularmente algumas viúvas que não conseguem encontrar alojamento e, quando lhe perguntei qual seria a forma mais correcta de rotular essas mulheres, tornou-se óbvio que já ponderara a questão. “Mãe”, respondeu. “Se não é mãe, é filha, talvez irmã. Também é esposa. Só que o marido já não está vivo.”

É preciso energia para cantar durante três horas sem parar, para ficar acocorado no solo duro do templo, para andar rapidamente através de ruas enlameadas em busca da próxima refeição e de chá quente.

É também importante lembrar que as viúvas de Vrindavan podem ser fortes e determinadas. É preciso energia para cantar durante três horas sem parar, para ficar acocorado no solo duro do templo, para andar rapidamente através de ruas enlameadas em busca da próxima refeição e de chá quente. Quando cheguei, em Novembro de 2015, o Diwali estava prestes a começar. Certa tarde, acompanhei Vinita Verma quando esta preparava os eventos da Sulabh, que incluíam uma procissão ao ar livre, fogo-de-artifício no rio e mil saris coloridos novos para as viúvas. Os saris eram um presente da Sulabh. As viúvas do programa de apoio foram chegando em grupos ao longo de algumas horas, examinando e escolhendo, como sabem fazer as hábeis compradoras de saris. 
No interior da loja de saris, eu e o meu intérprete vimos as primeiras viúvas abrindo caminho, estudando os saris e chamando o lojista: “Gosto mais daqueles que estão na outra prateleira”, disse uma mulher. “Podemos escolher aqueles?”
O lojista explicou que não estavam à venda. “Humph”, exclamou uma viúva. Tocou no pano do sari da organização de caridade. “Não tem qualidade”, disse outra viúva. “Pode afastar-se por favor?” disse outra. A mulher que estava a ser acotovelada retorquiu que havia espaço suficiente e a outra respondeu que ela cheirava mal, que ela fumava muitos bidis, os fortes cigarros indianos. Levou mais tempo do que o esperado a atender as pessoas e vi um quarteto de viúvas saindo da loja sem saris novos, resmungando umas com as outras. “Como se o nosso tempo não tivesse valor”, dizia uma.

ÍNDIA - A exuberância do Holi, o feriado que inclui a dispersão de pós coloridos, era considerada inadequada para as viúvas. Grupos de ajuda desafiaram o preconceito tradicional contra as viúvas e convidam-nas agora a juntar-se a celebrações como esta festa Holi em Vrindavan.

A procissão do Diwali e o fogo-de-artifício ribeirinho foram imponentes, repletos de cânticos e brilhos e saris brancos e coloridos, cores surpreendentes para os olhos de um estrangeiro: safira, escarlate, verde-lima, magenta, amarelo-torrado. Chegaram muitos fotógrafos. O fumo rodopiava, o fogo-de-artifício coloria o rio de rosa, lamparinas flutuantes desenhavam círculos na água em movimento, e apesar disto a minha recordação mais vívida de Vrindavan são aquelas quatro dignas viúvas que desdenharam a oferta de saris e marcharam porta fora. Mantiveram-se próximas umas das outras, envoltas no branco da viuvez, rindo, e quando atravessaram a estrada, juntas, o trânsito parou para as deixar passar.

 

 

Gráfico: NGM Maps. Fonte: Organização para o Desenvolvimento e Cooperação Económica.

2. ENTERRAR O PASSADO , Tuzla, Bósnia e Herzegovina
Quando chegou a primeira chamada do centro de identificação forense, Mirsada Uzunović estava em casa com o filho de 13 anos e por isso manteve-se calma. A voz do outro lado era gentil. Os restos mortais do marido, Ekrem, tinham sido identificados através de testes laboratoriais, disse a voz. Os restos eram... pequenos. Parte do crânio. Nada mais. Se Mirsada o desejasse, poderia organizar-se um funeral no novo cemitério memorial.
Não.
Durante três meses, não disse a ninguém. “A noite era a fase difícil. Ficava sozinha com os meus pensamentos. Do homem grande que eu conhecia, só um pedaço de crânio. Não conseguia imaginar: mataram-no, mas porque não o enterraram? Ele estava espalhado. Eu não sabia onde. Onde estavam esses ossos? Onde estava ele?”

Alguns foram separados à força das famílias e transportados para locais de execução. A maioria foi baleada enquanto tentava escapar para território mais seguro sob domínio do exército bósnio.

A chamada inicial chegou em 2005, uma década depois de as forças sérvias da Bósnia matarem mais de sete mil homens muçulmanos bósnios – o número continua a ser discutido, mas é esse que está registado no Tribunal Internacional de Justiça –, numa única semana dos três anos da Guerra da Bósnia. De 11 de Julho a 19 de Julho de 1995, os homens foram mortos na cidade e arredores de Srebrenica, na fronteira oriental da nação balcânica da Bósnia e Herzegovina. Alguns foram separados à força das famílias e transportados para locais de execução. A maioria foi baleada enquanto tentava escapar para território mais seguro sob domínio do exército bósnio. Ekrem Uzunović, por quem Mirsada se apaixonara quando se conheceram num baile de aldeia quando ela tinha 15 anos, usava calças pretas e uma T-shirt na última vez que o viu, e na mochila transportava um pão que ela cozera naquela manhã. Ele baixou-se para beijar o filho, virou-se e correu.
O filho tinha 2 anos. Ekrem tinha 27 anos. Em Tuzla, a cidade onde Mirsada e muitas outras viúvas de guerra de Srebrenica foram reinstaladas, há hoje um escritório com duas salas cujas paredes interiores estão cobertas até ao tecto com fotografias de homens bósnios de cabelos escuros como Ekrem, todos mortos ou presumidos mortos. Os álbuns empilhados têm milhares de imagens e, nas fotografias, os homens sorriem, fumam ou parecem comemorar com bebidas e torradas meio comidas.

São sepultados num grande cemitério criado exclusivamente para os mortos de Srebrenica. Os primeiros seiscentos caixões foram enterrados em 2003.

As fotos também mostram meninos quase adolescentes e homens com idade suficiente para serem avós de Ekrem. Mirsada comenta: “Em cada quintal, havia a mesma cena – homens fugindo de casa. As mulheres e as famílias choravam por eles, e os homens nem reagiam. Caminhavam em direcção à floresta sem olhar para trás. Havia escuridão. Um rio de homens. Sim, tenho pesadelos especialmente durante esta época do ano. A terapia não ajudou muito, mas o médico deu-me comprimidos, para Julho, o mês em que tenho de lidar com isso. Ainda tenho sonhos. Mas está melhor, por causa dos comprimidos.”
Quando nos encontrámos, na casa da encosta de Tuzla onde Mirsada e o filho ainda vivem, era Julho. Em cada 11 de Julho, em grande parte por causa dos incansáveis esforços de uma rede de mulheres bósnias, ocorre um funeral de grupo, o sepultamento autorizado pelas famílias de uma série de caixões que contêm os restos mortais identificados durante o ano anterior. São sepultados num grande cemitério criado exclusivamente para os mortos de Srebrenica. Os primeiros seiscentos caixões foram enterrados em 2003. 
Na primeira semana de Julho de 2015, faltavam poucos dias para o vigésimo aniversário da tragédia. A presença do ex-presidente norte-americano Bill Clinton estava anunciada, disse Mirsada. Viriam outros dignitários internacionais. Mirsada tinha então 41 anos e estava familiarizada com o cemitério no Verão, conhecia as belas ondulações verdes, as extenuantes fileiras de lápides, as zonas de relva livre ainda sem sepulturas. Já tinha assistido a muitos funerais do 11 de Julho em Potočari: o irmão, o avô, três tios, quatro primos, homens da família de Ekrem, maridos de outras viúvas. Todos os anos, tinha recusado que Ekrem fosse uma estatística. Quando o centro forense telefonou numa segunda ocasião, em 2007, para a informar que os ossos da anca e o fémur do marido tinham sido identificados, Mirsada recusou novamente. Ainda não havia o suficiente de Ekrem.

BÓSNIA - Um edifício de Tuzla abriga o grupo Mulheres de Srebrenica, que exige a contagem dos homens abatidos pelas forças sérvias da Bósnia durante uma semana da guerra da Bósnia. A fundadora, Hajra Ćatić, perdeu o marido e filho no massacre de 1995. Está exausta pelos preparativos para a comemoração do aniversário do massacre. Atrás de si, fotografias dos rostos dos mortos e dos desaparecidos.

“Tenho carregado um fardo pesado sobre os ombros”, disse Mirsada enquanto vertia café bósnio espesso na minha chávena e na do intérprete. Mirsada parecia esgotada. “Esperei muito tempo”, disse. “Preciso de encerrar este capítulo. Não posso esperar mais.” Este ano, nas cerimónias no cemitério de Potočari, enterraria o marido.
Em bósnio a palavra para viúva é udovice. No entanto, o nome usado pelas organizações de apoio para as viúvas de guerra bósnias é žene, mulheres. Snaga Žene, por exemplo: poder feminino. No Verão de 1995, os transeuntes que passavam pelo centro desportivo de Tuzla podiam ver imediatamente as žene de Srebrenica que tinham sido transferidas para Tuzla de camião enquanto os maridos, filhos, irmãos e pais eram mortos a tiro. Muitos homens tinham prometido que, se escapassem, dirigir-se-iam para o centro desportivo. Durante semanas, as mulheres mantiveram-se no exterior, à espera. “Era inimaginável para elas”, disse a presidente da Snaga Žene, Branka Antić-Štauber, uma médica de Tuzla. “Tornava-se palpável a extensão, a enormidade de pessoas mortas em poucos dias.”

Os líderes sérvios bósnios, preocupados com a descoberta de valas comuns, ordenaram que milhares de cadáveres fossem exumados e voltassem a ser sepultados nas zonas em redor.

Os líderes sérvios bósnios, preocupados com a descoberta de valas comuns, ordenaram que milhares de cadáveres fossem exumados e voltassem a ser sepultados nas zonas em redor. No processo, os equipamentos desfizeram em pedaços corpos já em decomposição. À trágica herança tradicionalmente legada às viúvas das zonas de guerra, composta por traumas, violações, isolamento e pobreza, foi acrescentado um novo fardo: os restos mortais dos homens de Sbrenica teriam de ser identificados pedaço a pedaço.
A genética forense, através da correspondência exaustiva de ossos e fragmentos com amostras de DNA de familiares, tem sido desenvolvida por uma organização criada depois da guerra chamada Comissão Internacional de Pessoas Desaparecidas. As exigências relativamente à contagem de mortos, o impulso para um cemitério único especial, a “caça” de fotografias de todos os desaparecidos, os protestos de rua mensais insistindo para que os restos mortais de cada homem sejam encontrados, o julgamento dos assassinos e a palavra “genocídio” associada para sempre aos assassínios de Srebrenica têm sido o trabalho destas mulheres. “Tenho de dizer que todas elas são heroínas”, comenta Amra Begić, oficial do centro memorial de Srebrenica-Potočari, na véspera do funeral do 20.º aniversário. “Não sabíamos que as nossas mães eram mulheres tão fortes.”
O pai e o avô de Amra contavam-se entre as vítimas. Duas lápides marcam as suas sepulturas. Havia 6.241 sepulturas terminadas antes desta última entrega de mortos. Cento e trinta e seis novos caixões verdes, a cor sagrada do Islão, alinhavam-se agora no centro memorial. Os restos de Ekrem Uzunović jaziam no caixão 59 e, na manhã sem nuvens e quente do funeral, Mirsada Uzunović encontrou a lápide com esse nome e a sepultura recém-aberta. 

Cento e trinta e seis novos caixões verdes, a cor sagrada do Islão, alinhavam-se agora no centro memorial.

Os familiares que a acompanhavam tinham trazido cadeiras e ela sentou-se numa delas durante algum tempo, recebendo as pessoas educadamente, os seus abraços e os pêsames murmurados. Da tenda de dignitários, demasiado distante para que lhe fosse possível ver claramente, podia ouvir-se vagamente a voz de Clinton, mas Mirsada não percebia inglês e não estava especialmente interessada. As vozes mudaram, as orações e as entoações continuavam a chegar ali e houve um momento de raiva barulhenta quando o primeiro-ministro sérvio, presente numa cerimónia de 11 de Julho pela primeira vez, tentou colocar flores numa lápide e foi assobiado e vaiado de forma tão ameaçadora que os seus guarda-costas o empurraram para o interior de um carro.
Um imã pediu respeito. O cemitério ficou em silêncio. O primeiro caixão verde podia ver-se abaixo da colina, transportado em ombros. 
O imã iniciou a oração pelos defuntos e milhares de pessoas nas encostas ajoelharam-se simultaneamente. Mirsada não rezou. Levantou-se da cadeira, acendeu um cigarro, sentou-se no chão ao lado do buraco aberto na terra e esperou. 
Os outros que rezem, pensou. Já tinha proferido tantas orações. Era para Ekrem que ela queria dirigir as suas palavras: “Disseste-me para manter o nosso filho a salvo. Vê, ele tem 22 anos. É um estudante universitário. Está a ajudar a carregar o teu caixão. Vai ajudar a baixá-lo até à cova, vai deitar uma pá de terra por cima e depois, finalmente, terás um lugar para descansar.” 

BÓSNIA - Melhores amigas desde a infância, casadas com irmãos mortos na guerra da Bósnia, Fata Lemeš (à esquerda) e Hamida Lemeš vivem agora com outras quatro viúvas de guerra na aldeia de Skejići. “Esta bela paisagem, na verdade, trouxe muito mal”, diz Fata.

3. FAZER CUMPRIR A LEI, Distrito de Mukono, Uganda
“A humilde petição de Tumushabe Clare Glorious manifesta o seguinte.” No Uganda, os documentos legais são escritos num inglês floreado da época colonial. Numa manhã de Verão, uma advogada chamada Diana Angwech equilibrava dois espessos ficheiros no colo e estudava-os. 
O tribunal improvisado era uma pequena construção de cor vermelha entre um campo de milho e uma plantação de bananeiras, a uma hora de carro da capital, Kampala. No interior, sobre o solo de cimento, alguns bancos de madeira alinhavam-se de frente para a mesa do magistrado que, na superfície limpa, exibia apenas um calendário, um Alcorão e uma velha Bíblia presa com cordão.
Um guarda à porta afastou-se e o povo entrou, sentando-se nos bancos ao lado e atrás de Diana. A viúva Clare Tumushabe trazia ao colo a filha de 2 anos, a mais nova dos seus seis filhos, e sentou-se na quarta fila. Clare já fora uma mulher tímida, mas a sua cabeça estava erguida enquanto olhava em redor. Estava grávida daquela filha quando o marido morreu. Ela aprendia agora a falar com clareza e paixão sobre o que lhe acontecera.

Informaram-na que os filhos pertenciam aos familiares. Ordenaram-lhe que não tocasse nas colheitas da família, uma vez que já não lhe pertenciam.

Fora convocada, de luto e grávida, para uma reunião com importantes membros da família e do clã do seu falecido marido. Informaram-na que os filhos pertenciam aos familiares. Ordenaram-lhe que não tocasse nas colheitas da família, uma vez que já não lhe pertenciam, e apresentaram-lhe o cunhado, o irmão mais velho do marido, com mais vinte anos do que ela, argumentando que este se mudaria para sua casa e a tomaria como a terceira das suas esposas. 
A casa e o hectare de terreno que o marido de Clare herdara do pai deveriam passar para eles, disseram os sogros. Por tradição, como viúva, Clare era considerada parte da propriedade.
Clare disse-lhes que era um disparate, que nunca iria levar aquele homem para a sua cama e que o marido deixara documentos provando que a terra transitara para ela. Os sogros ripostaram, alegando que ela enfeitiçara o marido e que veria a ajuda que ele lhe poderia dar a partir daquela sepultura recém-aberta onde estava sepultado. Clare chamou a polícia. Fez algumas colheitas e cortou árvores para lenha. As ameaças aumentaram. Foram dirigidos insultos às crianças. Certo dia, um homem da família do marido surgiu na propriedade gritando que Clare morreria naquele dia. A mão de Clare foi cortada com um machete, o que forneceu a Diana Angwech razões para avançar em tribunal com uma queixa por violência contra um dos atacantes de Clare.

Vamos às reuniões comunitárias para explicar que a intimidação de uma nova viúva para a forçar a abdicar da sua propriedade é proibida.

Trabalhamos com o que cada situação nos traz, lembravam-nos a cada momento Diana Angwech e os colegas, enquanto eu e Amy os acompanhávamos nas suas rondas pelas aldeias do Uganda Central: temos compaixão, aconselhamos, tentamos esclarecer polícias e anciãos das aldeias, vamos às reuniões comunitárias para explicar que a intimidação de uma nova viúva para a forçar a abdicar da sua propriedade é proibida mesmo quando a exigência parte dos próprios sogros. “As pessoas estavam chocadas”, disse uma advogada chamada Nina Asiimwe, recordando as primeiras palestras que proferiu depois de se juntar a outros profissionais ugandeses no escritório de Kampala da Missão de Justiça Internacional (IJM), a organização que emprega Diana Angwech. “Eles pensavam que era normal. Uma injustiça, mas normal. Validada pela sociedade.”
Pensem nestes ugandeses como uma brigada de defesa de viúvas: advogados, assistentes sociais e investigadores criminais que utilizam o sistema de justiça do próprio país para desfazer pressupostos antigos sobre mulheres que perderam os maridos. A IJM é uma organização não-governamental norte-americana que apoia advogados no estrangeiro que defendem vítimas de abuso violento. De certa forma, a agenda dos seus funcionários em Kampala é modesta. Gerem um programa-piloto num grande distrito, essencialmente rural, a leste da capital, que concede advogados e assistentes gratuitos a vítimas de um crime conhecido em toda a África Oriental e Austral como “apropriação de propriedade”: a extorsão, a pessoas vulneráveis, através de ameaças verbais ou ataques físicos, da terra que é legitimamente delas.

UGANDA - Quando as viúvas recorrem à lei para lutar contra a usurpação das suas propriedades, a probabilidade de perderem os casos judiciais  é gigantesca. O arquivista Michael Nyero trabalha na sala de registos do Tribunal Principal do magistrado de Mengo, um dos tribunais locais submerso em processos.

Por razões históricas e modernas, as vítimas de extorsão de terras mais frequentes nesta região do planeta são as viúvas. Mais de dois terços dos 39 milhões de habitantes do Uganda produz os seus próprios alimentos e ser proprietário da própria casa e da terra anexa continua a ser uma garantia forte de segurança material: alimentos para as crianças, lenha para cozinhar, colheitas para vender no mercado. Como as sepulturas se situam muitas vezes perto da casa, a pessoa que detém a propriedade da família também possui a sua história ancestral, honra e posição social. O rápido crescimento da população do Uganda, juntamente com a chegada da banca hipotecária, estão a elevar o valor das terras. Uma casa com terreno de cultivo constitui uma potencial garantia de crédito para investimentos.

A cultura tradicional do Uganda não assimila facilmente que estes privilégios são extensíveis às viúvas.

A cultura tradicional do Uganda não assimila facilmente que estes privilégios são extensíveis às viúvas. A Constituição, revista em 1995 e fonte de orgulho nacional, promete igualdade de género. Os novos estatutos alargam, explicitamente, os direitos de herança às viúvas e às crianças do sexo feminino. Na prática, especialmente nas zonas rurais que compõem a maior parte do território ugandês, é ainda amplamente assumido que apenas os homens devem possuir ou herdar a terra, que a viuvez encerra a legitimidade social da mulher e que cabe à família e ao clã do marido decidir o que acontece de seguida: quem fica com as terras, quem fica com as crianças, quem fica com a viúva. “Além do estigma”, acrescenta Nina Asiimwe. “Se é viúva, dá azar. Está amaldiçoada. É culpada pela morte do cônjuge. Ele até poderia ter tido várias esposas, ter trazido VIH para a casa. Mas quando morre, é ela. Ela matou-o.”
Assumindo a defesa de viúvas, advogados do IJM nas aldeias e tribunais do distrito de Mukono têm um objectivo: transmitir em Mukono e talvez em todo o Uganda, a ideia de que a apreensão de casas e colheitas dessas mulheres, bem como as ameaças, falsificações e abusos verbais associados, não só é errado, mas punível por lei. A diplomacia é crucial. Nas reuniões da aldeia, Nina Asiimwe dirige-se sempre aos anciãos como “meus pais” e “minhas mães”. Diz-lhes que sabe que o abuso de viúvas é tratado como uma disputa familiar a ser resolvida entre líderes de clãs ou por conselhos de aldeia, cujos chefes inspiram respeito.

A sua família de nascimento pode não a acolher de volta, porque não a pode sustentar ou porque já não a vê como parte da família.

Insiste, porém, que os esforços deles são muitas vezes inadequados. Os chefes podem ser comprados ou ameaçados. Em luganda, a língua indígena primária da região, ela usa palavras contundentes: okubba, roubar, e kimenya mateeka, criminoso. Implora aos ouvintes que se lembrem do futuro provável de uma viúva que é perseguida por usurpadores: a sua família de nascimento pode não a acolher de volta, porque não a pode sustentar ou porque já não a vê como parte da família. Essa viúva pode ser abandonada na rua e talvez forçada à prostituição. “Naturalmente, a sociedade em redor enfrentará um problema de insegurança”, diz Nina Asiimwe. “As crianças tornar-se-ão crianças de rua. Pessoas que comiam três vezes por dia vão passar a comer apenas uma. A desnutrição torna-se um assunto sério.”
A aceitação destas ideias é lenta. Um antigo agente da polícia nacional que dirige as investigações do IJM no distrito de Mukono disse que os seus antigos colegas ficaram perplexos quando ele começou a dirigir-se aos agentes da autoridade nas aldeias, ensinando-os a recolher provas de roubo de propriedades e a levarem a sério as ameaças de violência contra as viúvas. Disse-nos que os colegas da sua geração reagiram com surpresa: “Mas qual é o problema? Isto é um assunto importante?”

Os ugandeses receiam testamentos, suspeitos de avançarem a hipótese de morte.

De facto, as ameaças são tão credíveis e difundidas que, por vezes, são dirigidas a investigadores, razão pela qual o IJM pediu que o nome deste investigador não fosse publicado. Os próprios casos podem ser complexos. O Uganda sanciona múltiplas formas de posse de terras, tanto pré-coloniais como modernas, e pode ser difícil provar quem detinha os direitos de propriedade mesmo antes de o marido morrer. Os ugandeses receiam testamentos, suspeitos de avançarem a hipótese de morte. As relações de coabitação são comuns, mesmo quando há casamentos legais. Muitas mulheres que se consideram esposas e por consequência viúvas, acabam por não o ser para fins de herança. “Acredito que há esperança”, disse a advogada Alice Muhairwe Mparana, em Junho de 2016. “Ainda não estamos nessa fase, mas já começámos o trabalho. Obtivemos nove condenações este ano.”

UGANDA - Joseph Ssenkima (ao centro), acusado de aterrorizar a viúva Betty Nazoni é suspeito de ter sido uma das setenta pessoas que destruíram as colheitas de Betty e ameaçaram o seu filho. Desde a morte do marido, parentes da família deste e os seus aliados tentaram tirá-la da casa que o marido lhe legara. A polícia, em cooperação com a Missão de Justiça Internacional, perseguiu os suspeitos durante semanas.

Algumas das acusações que conduziram a condenações na primeira metade de 2016 foram por despejo ilegal, invasão de propriedade ou intermediação (interferência inadmissível nos negócios de outrém). Não existe lei  em nenhum lugar do mundo que criminalize o acto de tratar uma viúva como se a sua vida nada valesse. Mas o dia 23 de Junho de 2016 assinalou o sexto Dia Internacional das Viúvas e, na maior cidade de Mukono, na praça em frente do tribunal, decorreu uma comemoração especial. Funcionários importantes discursaram: o chefe da polícia, por exemplo, o magistrado principal, e Clare Glorious Tumushabe, que falou mais tempo ao microfone do que qualquer outro.

Não existe lei  em nenhum lugar do mundo que criminalize o acto de tratar uma viúva como se a sua vida nada valesse.

Clare conseguiu permanecer na sua propriedade. “Só amei um homem”, gritou em luganda, com a voz a erguer-se como se fosse um pregador. As Honradas Viúvas aplaudiram. “Disse ao clã do meu marido: ‘Como podem dar-me a outro homem? Eu não me casei com todo o clã.’”
Três meses depois, recebemos a notícia de que o homem que atacara Clare fora condenado por “agressão com danos corporais” e estava a cumprir a sentença de um ano de prisão. Clare e os advogados estavam exultantes. Em contrapartida, os irmãos dele estavam furiosos e o investigador principal estava preocupado com a viúva e os filhos. “Reforçámos a sua segurança”, disse. “E estamos a analisar nova visita à comunidade para os sensibilizar. Ela está isolada onde vive. Mas é forte, muito forte.”