A história das pessoas a bordo do Clotilda, o último navio negreiro

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O porão do cargueiro Clotilda transformou-se num cárcere infernal para 110 cativos africanos. Dois morreram durante a travessia de seis semanas do Atlântico. Outros ansiaram pela libertação proporcionada pela morte. O mau cheiro “era suficiente para matar”, disse, anos mais tarde, um sobrevivente chamado Redoshi numa entrevista. Arte: Thom Tenery Fonte: James Delgado, Search, Inc.

Uma equipa de arqueólogos subaquáticos anunciou a descoberta, perto de Mobile, no Alabama (EUA), dos destroços carbonizados do Clotilda, o último navio negreiro conhecido a alcançar as costas dos EUA.

Em Maio de 2020, 400 anos depois de africanos acorrentados terem pisado pela primeira vez o solo da colónia inglesa de Virgínia, uma equipa de arqueólogos subaquáticos anunciou a descoberta, perto de Mobile, no Alabama (EUA), dos destroços carbonizados do Clotilda, o último navio negreiro conhecido a alcançar as costas dos EUA. Em 1860, 52 anos depois de os Estados Unidos da América proibirem a importação de escravos, um latifundiário abastado fretou a escuna e contratou o comandante para contrabandear mais de cem cativos para o Alabama, um crime então punível com a forca. 

Concluída a abominável missão, o navio foi incendiado para destruir as provas. Os cativos foram os últimos de um total estimado de 307 mil africanos escravizados e conduzidos ao continente americano entre o início do século XVII e 1860, transformando o Clotilda no cólofon daquilo a que há muito se chama o “pecado original da América”. Em 1865, o presidente Abraham Lincoln proclamou que a Guerra da Secessão que acabara de devastar o país fora a pena com que o Todo-Poderoso punira esse pecado. Uma vez terminada a guerra e abolida a escravatura, os africanos trazidos pelo Clotilda criaram raízes como americanos livres, mas não se esqueceram da sua identidade africana. 

Fixando-se em bosques e pântanos do rio, a montante de Mobile, construíram casas simples, plantaram hortas, criaram animais, caçaram, pescaram e lavraram a terra. Construíram uma igreja e edificaram a sua própria escola, fundando uma comunidade unida e auto-suficiente que veio a ser conhecida como Africatown. Muitos dos seus descendentes ainda são vivos. A história desta comunidade extraordinária é recordada com orgulho pelos habitantes de Africatown como um legado que se esforçam por preservar.

Esta é a história das 108 pessoas a bordo do navio… e dos seus descendentes 

Pinturas: Sedrick Huckaby

COMÉRCIO CRUEL

Em 1860, os escravos eram a base da economia norte-americana e tinham mais valor do que a totalidade do capital investido nas actividades industrial, ferroviária e bancária. O algodão representava 35 a 40% das exportações dos EUA, segundo Joshua Rothman, historiador da escravatura da Universidade do Alabama. “Os bancos de todo o mundo faziam aplicações no Alabama, no Mississípi e na Louisiana, investindo nas plantações, nos bancos dos estados do Sul e nos escravos, que podiam ser hipotecados”, afirma o investigador.

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Descobrir as suas raízes. 
Cudjo Lewis (à esquerda) e as suas descendentes Altevese Lumbers-Rosario (de vestido) e Ralphema Lumbers. Ele tinha 19 anos quando chegou, acorrentado, a bordo do Clotilda. Kossola, que assumiu o nome de Cudjo Lewis, nunca se esqueceu da sua terra natal. Libertados, ele e os seus companheiros de viagem construíram a sua própria cidade e mantiveram muitas tradições africanas. Aquando da descoberta dos destroços do navio, a sua descendente Altevese Lumbers-Rosario afirmou: “É muito emocionante, muito excitante para nós.” A sua prima direita Ralphema Lumbers veste uma T-shirt com uma fotografia de Lewis captada por volta de 1927. Fonte: Erik Overbey Collection, The Doy Leale Mccall Rare Book and Manuscript Library, Universidade do Sul do Alabama.


Era proibido importar escravos para os EUA desde 1808 e, em 1859, o preço dos escravos domésticos disparara, reduzindo drasticamente os lucros dos donos das plantações e reforçando as reivindicações em prol da reabertura do tráfico. 

Um defensor acérrimo desta posição foi Timothy Meaher. Natural do Maine, filho de imigrantes irlandeses, Meaher e vários irmãos mudaram-se para o Alabama e fizeram fortuna como construtores navais, comandantes de navios e magnatas madeireiros. Também eram donos de grandes extensões de terra, trabalhada por escravos. 

Durante uma discussão acesa com um grupo de empresários do Norte, Meaher fez uma aposta arrojada: propôs-se transportar um carregamento de cativos africanos até Mobile, mesmo debaixo do nariz das autoridades federais. 

Meaher teve poucas dificuldades em encontrar investidores para o seu esquema ilegal. Poucos anos antes, William Foster, seu amigo e colega na construção naval, construíra uma escuna elegante e veloz chamada Clotilda para transportar madeira e outras mercadorias em viagens pelo golfo do México. Meaher fretou o navio por 35 mil dólares e contratou Foster como comandante. 

No fim de Fevereiro ou no início de Março, de 1860, a tripulação partiu rumo ao porto esclavagista de Ouidah, no actual Benin. Assim começava uma das expedições navais negreiras mais bem documentadas da história dos Estados Unidos. Foster deixou um relato manuscrito da viagem. Mais tarde, Meaher e vários africanos também contaram a sua história a jornalistas e escritores. Dois dos antigos escravos, que ainda eram vivos na década de 1930, figuraram em curtas-metragens. 

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Sucesso merecido. 
Pollee Allen (à esquerda) e a sua trineta Vernetta Henson. Depois de 12 horas de trabalho como empilhador de madeira, Kupollee, que adoptou o nome de Pollee Allen, chegava a casa e trabalhava na sua horta até à noite, assegurando o sustento de 15 filhos. Transmitiu essa ética de trabalho a muitos dos seus descendentes, afirma Vernetta Henson. “A minha avó teve nove filhos e todos frequentaram a universidade.” Fonte: Emma Langdon Roche, “Historic Sketches Of The South” (1914)

VIAGEM SEM REGRESSO

Texto: Sylviane Diouf

Os 110 homens, mulheres e crianças embarcados a bordo do Clotilda em Maio de 1860 eram oriundos de Bantè, Daomé, Kebbi, Atakora e de outras regiões do Benin e da Nigéria. Entre eles havia pessoas pertencentes aos grupos étnicos yoruba, ixa, dendi, nupe e fon. 

Alguns praticavam o comércio de longa distância, provavelmente transportando sal, cobre e tecidos. Talvez produzissem ferro. Outros poderão ter tecido panos, colhido inhame e produzido óleo de palma. Algumas mulheres casaram-se e tiveram filhos. Trabalharam provavelmente como agricultoras ou vendedoras no mercado. 

Um dos homens, Kupollee, tinha uma pequena argola em cada orelha, o que significava que fora iniciado na religião dos yoruba. Ossa Keeby era oriundo de Kebbi, na Nigéria, um reino famoso pelos seus pescadores profissionais. À semelhança de Kossola, de 19 anos de idade (mais tarde conhecido como Cudjo Lewis), muitos tinham sido vítimas de um ataque lançado pelo reino esclavagista de Daomé. Kossola afirmou provir de gente modesta, mas o seu avô fora oficial de um rei bantè. Uma rapariga chamada Kêhounco (Lottie Dennison) foi raptada, tal como muitas outras. As suas viagens forçadas terminaram numa prisão para escravos em Ouidah.

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Guardiões da história. 
Charlie Lewis (à esquerda) e a sua trineta Lorna Gail Woods. O mais velho dos cativos do Clotilda, Oluale, que adoptou o nome de Charlie Lewis, fixou-se numa zona que veio a chamar-se Lewis Quarters, onde alguns dos seus mais de duzentos descendentes ainda vivem. “Em nossa casa, sempre se contaram histórias acerca do Clotilda”, diz Lorna Gail Woods. “Africatown era um lugar de orgulho para quem ali crescia.” Fontes: Lorna Gail Woods; Arquivo da Universidade do Sul do Alabama

No meio do horror e da miséria, os cativos encontraram apoio e solidariedade, até os esclavagistas estrangeiros desfazerem irreparavelmente a sua recém-criada comunidade. Segundo entrevistas concedidas aos jornais e relatos orais dos sobreviventes ao longo dos anos, descritos em pormenor no meu livro “Dreams of Africa in Alabama: The Slave Ship Clotilda and the Story of the Last Africans Brought to America”quando Foster, comandante do Clotilda, chegou ao local, os futuros tripulantes receberam instruções para formar círculos de dez.  

Depois de lhes inspeccionar a pele, os dentes, as mãos, os pés, as pernas e os braços, ele seleccionou 125 indivíduos. Ao entardecer, foi-lhes dito que partiriam no dia seguinte. Muitos passaram a noite a chorar. Não faziam ideia do que os aguardava e não queriam ser separados das pessoas que amavam. 

De manhã, o grupo desalentado atravessou a lagoa com água pelo pescoço até chegar à praia, de onde se procedeu ao transporte em canoas até ao Clotilda, ultrapassando a rebentação perigosa e, por vezes, mortífera. Aquilo que aconteceu depois atormentá-los-ia para sempre. Foram obrigados a despir a roupa. A nudez total dos africanos era uma regra do tráfico negreiro, oficialmente imposta (embora muito ineficazmente) para manter a higiene. Muitos anos mais tarde, os derradeiros sobreviventes do Clotilda ainda se mostravam indignados ao recordarem a humilhação de serem apelidados de selvagens nus pelos norte-americanos, os mesmos que acreditavam que a nudez era “africana”. 

Antes de concluir a transferência, Foster avistou navios a vapor no horizonte. Receoso de ser capturado, fez-se à vela, deixando 15 pessoas na praia. Durante os primeiros 13 dias passados no mar, todos os cativos permaneceram fechados no porão. Décadas mais tarde, em 1906, quando Abache (Clara Turner) falou da imundície, da escuridão, do calor, das correntes e da sede a um redactor da revista “Harper’s”, “os seus olhos ardiam, com a alma inexpressivamente atormentada por essa recordação”.

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Corrigindo erros antigos. 
Ossa Keeby (à esquerda) e o seu descendente Karliss Hinton. Ossa Keeby era provavelmente pescador no rio Kebbi, no Noroeste da Nigéria, antes de ser capturado. Ele e a mulher, Annie, foram agricultores bem-sucedidos, criando nove filhos e tornando-se donos de vários terrenos. “A minha avó era uma keeby e contou-me tudo sobre o navio”, afirma Karliss Hinton, veterano do exército. “Passaram-se todos estes anos até as pessoas reconhecerem a minha gente. Pode demorar algum tempo, mas o Bem supera sempre o Mal.” Fonte: Emma Langdon Roche, “Historic Sketches of the South” (1914)

O desespero, a agonia e o horror eram agravados no caso dos pais que se sentiam impotentes, incapazes de aliviar o medo e o sofrimento dos filhos. Uma mulher, mais tarde conhecida como Gracie, levava quatro filhas a bordo: a mais nova, Matilda, tinha cerca de 2 anos de idade. A falta de água era uma tortura e as refeições (melaço e papas) não ajudavam. Os alimentos açucarados intensificavam a sua sede. “Um gole” duas vezes por dia era tudo aquilo a que tinham direito e a água sabia a vinagre. A chuva que apanhavam com a boca e as mãos oferecia-lhes alívio passageiro. Registaram-se doenças e duas pessoas morreram.

Os navios negreiros eram lugares de miséria indescritível. A solidariedade era fundamental e aqueles que sofreram juntos forjaram relações para toda a vida, por vezes prolongadas por várias gerações, excepto se novamente separadas. A bordo do Clotilda, ao longo de um mês e meio, nasceu uma comunidade deste tipo.

No dia 8 de Julho, os companheiros de viagem avistaram terra ao longe. Ouviram um ruído que se assemelhava a um enxame de abelhas. Era o som de um rebocador a conduzir o Clotilda através da baía de Mobile. Foram transferidos para um navio a vapor pertencente a Burns, irmão de Timothy Meaher, e levados rio acima até à plantação de John Dabney, enquanto Foster conduzia o seu navio até Twelve Mile Island. Não havia maneira de esconder os vestígios de uma viagem esclavagista e Foster arriscava a pena de morte, caso fosse descoberto. Ateou fogo e o navio desapareceu em chamas.

Com falta de mão-de-obra para desenvolver as suas plantações, há muitos anos que os proprietários de escravos do Sul Profundo compravam pessoas nas regiões setentrionais do Sul a preços que consideravam ultrajantes. Com o comércio internacional de escravos ilegalizado, alguns optaram pelo contrabando. No Alabama, a viagem “secreta” era tema de conversa em toda a cidade e, no espaço de um ou dois dias, apareceu nos jornais. Entretanto, os jovens africanos tinham desembarcado nos canaviais ermos e infestados de mosquitos da plantação de Dabney, em Clarke County. Alimentaram-nos com carne e papas de milho que os fizeram adoecer. Ficaram contentes com os andrajos, pedaços de sacas de milho e peles que lhes deram para vestir em vez de roupa. Quando as autoridades federais encarregaram uma unidade de os descobrir, os africanos já tinham sido transferidos para a plantação de Burns.
“Quase se deixaram morrer de tristeza”, confessaram meio século mais tarde. 

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A norte de Mobile, perto de Twelve Mile Island, os africanos foram embarcados num navio a vapor e transportados rio acima, onde foram escondidos nos pântanos até serem divididos entre os conspiradores ou vendidos. O comandante do Clotilda ateou fogo à escuna para apagar o seu rasto. Arte: Thom Tenery Fonte: James Delgado, Search, Inc.

Timothy Meaher organizou a venda. No instante em que a sua nova família era de novo separada, os companheiros de viagem entoavam uma canção de despedida, desejando uns aos outros “nenhum perigo no caminho”. Enquanto cerca de oitenta foram conduzidos a Mobile, a edição de 23 de Julho de 1860 do jornal “Mercury” publicava a seguinte notícia: “Alguns negros que nunca aprenderam a falar inglês caminhavam para norte, seguindo a linha do comboio, no outro dia…” Durante a caminhada, um circo passou pelo grupo e, ao ouvirem um elefante a barrir, os africanos gritaram: “Ile, ile, ajanaku, ajanaku” (“casa”, “elefante”, em yoruba e fon). 
Passaram o resto das suas vidas dispersos pela Cintura Negra do Alabama. Gracie foi vendida com duas das suas filhas, mas, com grande sofrimento, nunca soube o destino das outras duas. 

Timothy Meaher foi detido, libertado sob fiança, julgado e ilibado de todas as acusações. Os processos federais contra Burns Meaher e Dabney foram anulados, porque os “ditos negros” nunca foram encontrados. Foster foi multado em mil dólares por não ter pago as devidas taxas aduaneiras pelas suas “importações”. Timothy Meaher reservou para si 16 homens e 16 mulheres. Burns ficou com 20 dos cativos, incluindo Kêhounco, e James Meaher ficou com Kossola e sete dos seus companheiros. Foster recebeu 16 indivíduos, entre os quais Abile (Celia Lewis). Cada pessoa comprada por 100 dólares em Ouidah valia agora mil dólares e, depois de aclimatada, poderia ser vendida por dois mil – ou seja, 60 mil dólares a preços actuais.

LAÇOS DE IDENTIDADE

a fase seguinte das atribulações foi a sua entrada no mundo selvagem da plantação, habitado por estranhos: negros e brancos. Até então, eles tinham sido yoruba, dendi, nupe ou fon, com línguas e culturas diferentes. Naquele instante, tornaram-se africanos. Adoptaram a sua nova identidade com orgulho, indiferentes ao desprezo das outras pessoas. Noah Hart, escravizado na plantação de Timothy Meaher, recordou que eles tinham uma atitude agressiva e, contudo, nunca ameaçaram os afro-americanos da plantação, nem nunca se zangaram entre si. Agindo como grupo, “não toleravam qualquer desaforo” de brancos ou negros. Envolveram-se várias vezes em actos colectivos de resistência, sem temerem as consequências.

Quando a cozinheira de Meaher, Polly, esbofeteou uma das jovens, ela gritou como um “gato bravo na escuridão”, contou Hart. Os seus companheiros de viagem acorreram, empunhando ancinhos, pás e paus. Polly fugiu, escadas acima, refugiando-se no quarto de Mary Meaher. Eles seguiram-na e bateram à porta. Polly despediu-se. 

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Um dia, o capataz de Burns tentou chicotear uma jovem mulher. Saltaram-lhe todos em cima, agarraram a chibata e deram-lhe uma sova. Nunca mais tentou quaisquer brutalidades com eles. Segundo parece, porém, nos lugares onde os companheiros de viagem se encontravam isolados, ou havia apenas dois ou três homens na plantação, eram maltratados. Redoshi (Sallie Smith) contou que “os donos de escravos e os capatazes espancavam-nos por tudo e por nada, quando nós não compreendíamos o que diziam em americano”.

A maioria dos africanos manteve-se unida e conservou as práticas da juventude. A comunidade de Atakora, no actual Benin, enterrava os seus mortos em covas fundas, com os cadáveres envoltos em casca de árvore. Os yoruba mergulhavam os recém-nascidos num riacho, procurando sinais de vitalidade. Um casal fon tatuou no peito do seu filho a imagem de uma serpente a morder a cauda, símbolo sagrado do reino do Daomé.

Durante cinco anos, os companheiros de viagem trabalharam nos campos de algodão, arroz e cana-de-açúcar. Em Mobile, vários homens trabalharam em embarcações fluviais, alimentando as fornalhas com toneladas de lenha, carregando e descarregando fardos de algodão. Durante a Guerra da Secessão, foram forçados a construir as fortificações da cidade e viveram em condições abjectas.

Por fim, no dia 12 de Abril de 1865, o exército da União entrou na cidade. Os africanos comemoraram ao som de tambor. 

MÃES E PAIS FUNDADORES 

os homens arranjaram trabalho nas serrações, fábricas de pólvora e estações ferroviárias de Mobile. As mulheres cultivavam legumes e vendiam-nos de porta em porta. Para estruturar a sua comunidade recomposta, escolheram um chefe, Gumpa (Peter Lee), um nobre aparentado com o rei de Daomé, e dois juízes, Charlie Lewis e Jabe Shade, ervanário e médico. À semelhança do que faria qualquer família, restabeleceram os laços com os companheiros de viagem residentes a cerca de 240 quilómetros de distância, no condado de Dallas.

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Geraldine Hunter (à esquerda) e Carolyn Harris passam as bandejas com oblações durante a liturgia anual de aniversário, na Igreja Baptista Union Missionary em Africatown. Os sobreviventes do Clotilda edificaram a igreja original, chamando-lhe Igreja Baptista Old Landmark, em 1872. O nome mudou, mas a congregação manteve-se até aos dias de hoje.

Subsistindo com rações escassas, poupavam o que podiam, desejosos de regressar a casa, mas não era suficiente. Por isso, definiram uma nova estratégia, como Kossola explicou a Meaher. “Comandante Tim, trouxe-nos do nosso país, onde tínhamos terra e casa”, disse. “Fez-nos escravos. Agora somos livres, sem país, sem terra nem casa. Porque não nos dá um pedaço desta terra e nos deixa construir uma Cidade Africana?” Era um pedido de indemnização. Meaher ficou furioso. 

A comunidade conseguiria comprar terra. Juntando dinheiro, quatro famílias criaram raízes em três hectares de terreno ainda hoje conhecido como Lewis Quarters, pois foi baptizado com o nome de Charlie Lewis. A três quilómetros de distância, o maior povoado, com 20 hectares, aninhava-se entre pinheiros, ciprestes e zimbreiros. Os novos proprietários construíram três dezenas de casas de madeira colectivamente. Rodeadas de flores, cada uma possuía uma horta e árvores de fruto. Mais tarde edificaram uma escola e uma igreja. A Igreja Baptista Old Landmark situava-se ao lado da terra de Abile e Kossola e estava orientada para leste, na direcção de África. Nas proximidades, ficava o seu cemitério. Chamaram ao seu povoado African Town. Queriam estar em África, mas estavam em Mobile. 

As políticas públicas progressistas contribuíram para a libertação das pessoas, mas a situação estava prestes a mudar. Em 1874, no decurso da campanha eleitoral de candidatura ao Congresso dos EUA, o jornal “Mobile Daily Register” fez um apelo aos brancos para “responderem à chamada e exigirem a supremacia branca”.

Timothy Meaher pressionara os homens africanos, que se tinham naturalizado em 1868, a votar pelos Democratas, o partido pró-escravatura. No entanto, duvidando que o fizessem, no Dia das Eleições disse aos funcionários da mesa eleitoral que eles eram estrangeiros. Charlie, Pollee e Cudjo foram mandados embora. Meaher montou no cavalo e impediu-os de votar em dois outros sítios. Os homens foram a pé até Mobile, a oito quilómetros de distância. Disseram-lhes que, para votarem, tinham de pagar um dólar cada um, quase o salário de um dia. Pagaram. Receberam um papelinho a comprovar que tinham votado. Guardaram esse papel durante décadas.

Kêhounco e o marido, James Dennison, da Carolina do Norte, aderiram ao primeiro movimento reivindicativo de indemnizações. Após a morte de James, Kêhounco continuou a requerer que lhe fosse paga a pensão militar do exército da União. No condado de Dallas, Matilda, de 72 anos, caminhou 24 quilómetros para visitar o juiz do tribunal de sucessões em Selma, inquirindo-o sobre as indemnizações para os africanos arrancados da sua terra natal.

No princípio do século XX, os companheiros de viagem já tinham passado mais tempo nos EUA do que na sua terra natal. A maioria adoptara apelidos americanos, convertendo-se ao cristianismo. Vários casaram-se com americanos de origem africana. Aderiram aos costumes locais, embora mantendo as culturas que lhes eram queridas. Os seus filhos, que frequentaram a escola, cresceram divididos entre estes dois mundos. Algumas destas crianças, nascidas americanas, falavam os idiomas dos pais: Matilda servia de intérprete à mãe. Cada um possuía um nome americano para usar no mundo exterior, onde eram frequentemente ostracizados e insultados como macacos e selvagens. 

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Amigos reúnem-se no velório de Henry Galloway, residente em Africatown a vida inteira e que morreu aos 64 anos de doença pulmonar crónica. A sua irmã, Mattie Galloway, afirma que ele estava prestes a reformar-se quando morreu. “Achei que ele merecia viver mais um bocadinho, mas Deus não comete erros.”

Helen Jackson, neta de Ossa Keeby, confidenciou: “Éramos todos uma só família. Aprendemos a chamar ‘primo’ a todos os outros africanos da nossa idade. Sabíamos que eles eram iguais a nós e que nós éramos diferentes de todos os outros.” As crianças sentiam-se seguras. “Tínhamos terras, tínhamos família”, disse Olivette Howze, bisneta de Abache, num artigo publicado em 2003. “Vivíamos bem. Sinto-me feliz por ter sido criada aqui.”

Se a sua aldeia natal era um porto seguro, as terras natais africanas eram os lugares idílicos com que as mães e pais sonhavam. “Diziam que lá era bom”, recordou Eva Allen Jones, filha de Kupollee. “Vejo-os sentados e a chorar. Vejo o meu pai e o Tio Cudjo a chorar e a verter lágrimas, falando sobre o regresso a casa.”

Kossola morreu em 1935 e Redoshi no ano seguinte. Outros poderão ter vivido um pouco mais. Na escravidão e na liberdade, da juventude à idade adulta, estes homens e mulheres resistiram à opressão. Louvaram e defenderam com vigor as suas culturas, transmitindo o que puderam aos seus filhos. Os que se fixaram em African Town, que ainda existe, criaram um lugar para se refugiarem dos americanos, fossem eles brancos ou negros. A sua comunidade adaptou-se, mas o sucesso baseou-se indubitavelmente nos valores fundamentais africanos da primazia à família e à comunidade.

Os companheiros de viagem do Clotilda aguentaram a separação dos que amavam, a Passagem do Meio, a escravatura, a Guerra Civil, as leis de Jim Crow e, alguns deles, a Grande Depressão. Nunca recuperaram da tragédia da sua juventude, mas mantiveram a sua dignidade, união e o orgulho de serem quem eram e de terem vindo de onde vieram. A sua história fala-nos de enorme força de vontade e realizações. Mas, acima de tudo, fala-nos de perdas irremediáveis. Várias décadas depois de pôr o pé em terra, desembarcando do Clotilda, Ossa Keeby disse: “Volto a África todas as noites, nos meus sonhos.”

SALVANDO AFRICATOWN

Texto: Joel K. Bourne, Jr.

Pouco depois, os africanos receberam a companhia de algumas famílias afro-americanas que abandonavam as quintas para procurarem trabalho nas fábricas e no porto vizinhos. Em 1910, a comunidade edificou a Escola de Formação de Mobile County, a qual, ao longo das décadas que se seguiram, haveria de formar dezenas de pregadores, professores, empresários e até alguns atletas profissionais. 

Na década de 1960, duas gigantescas fábricas de papel funcionavam de noite e de dia. Havia muitos empregos e mais de doze mil pessoas habitavam Africatown. Anderson Flen cresceu durante o apogeu de Africatown e recorda-se dela como um lugar onde as crianças podiam falar com as pessoas mais velhas, sentadas nos seus alpendres, e as pessoas mais velhas garantiam que nenhuma criança passava fome. 

Enquanto me leva a dar uma volta pela cidade, Anderson conta que o acesso à água era mais fácil quando ele era novo. “Apanhávamos perca, rabeta, tainha, peixe-gato, solha, caranguejo-azul. Havia aqui pomares, bagas e figueiras. Foi um sítio extraordinário para crescer.”

A escola de formação era o coração e a alma da comunidade. Segundo Anderson Flen, a campainha da escola tocava por tudo e por nada. 
Os estudantes andavam de uniforme três vezes por semana e eram treinados nos “cinco bens”: “Vestir bem, falar bem, ler bem, viajar bem, ser bem equilibrado”, conta o meu interlocutor, que hoje dirige a associação de antigos alunos da escola. 

Hoje, Africatown é uma sombra do que foi antigamente: são quarteirões de pequenas casas dilapidadas, polvilhados, aqui e além, por moradias de tijolo com flores no jardim. Cerca de metade das casas encontram-se ocupadas: o estado das restantes oscila entre o desocupado e o condenado à demolição. Uma grande urbanização construída na década de 1960, a que os moradores chamavam Happy Hills, apresenta-se entaipada e com demolição anunciada. Edifícios da indústria pesada (incluindo indústrias químicas, um parque de tanques de petróleo e a única fábrica de papel restante) ladeiam a zona ribeirinha e cercam a comunidade. A ponte de Africatown, de quatro faixas de rodagem, finalizada em 1991, foi construída sobre o coração do centro de negócios da cidade. A congestionada Bay Bridge Road divide agora a comunidade ao meio, separando a histórica Igreja Baptista de Union Missionary do cemitério onde se encontram enterrados vários dos seus fundadores africanos.

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As comemorações de Terça-Feira de Carnaval continuam a ser festas maioritariamente segregadas em Mobile. Apesar da história racial da cidade, muitos acalentam a esperança de que a descoberta do último navio negreiro possa unir a cidade, permitindo o reconhecimento da história partilhada e a cicatrização de feridas antigas.

Há muito que os problemas de justiça ambiental afectam a comunidade, afirma Joe Womack, major reformado do corpo de fuzileiros e fundador de uma associação de defesa de Africatown. As indústrias que trouxeram postos de trabalho transformaram-se numa faca de dois gumes, deixando atrás de si um legado de poluição e de cancros que, segundo muitos residentes, foram causados pelas emissões das fábricas de papel e de outras indústrias pesadas.

Há alguns anos, os moradores de Africatown ajudaram a impedir um plano para construir mais um parque de contentores de petróleo, em frente da Escola de Formação de Mobile County. Os moradores também accionaram judicialmente a International Paper por poluir o ar, o solo e a água no decurso das suas operações e por se recusar a limpar o solo poluído, o qual, no entender dos moradores, continua a contaminar os aquíferos e os ribeiros locais. Entretanto, a câmara de comércio de Mobile procura atrair mais indústrias para a região, promovendo-a como parte do Corredor Químico da Costa do Golfo do Alabama.

“Planeiam construir uma ponte de 1,8 mil milhões de euros e retirar os túneis que estão debaixo do rio para que os superpetroleiros consigam chegar cá”, diz Joe Womack. “A cidade não tem cuidado da comunidade porque quer industrializar esta zona. Só querem ganhar dinheiro. Mas poderiam ganhar dinheiro com o turismo. Só temos de reencaminhá-los na direcção certa.”

Joe Womack e os outros líderes da comunidade afirmam que a descoberta do Clotilda deu um impulso no sentido de sarar feridas antigas e insuflar nova vida na zona. Outros esforços estão a ser desenvolvidos para ligar de novo as comunidades ao rio e entre si. Os planos incluem a proposta de um parque estadual na comunidade vizinha de Prichard, cidade geminada com Ouidah, no Benin, desde 1986.

O Instituto Americano dos Arquitectos, a Organização Nacional dos Arquitectos de Minorias e a Visit Mobile estão a patrocinar um concurso internacional de design para projectar um novo centro de acolhimento, uma escola renovada, um museu e um parque ribeirinho onde poderia ser construída uma réplica do Clotilda. E os funcionários da Comissão Histórica do Alabama e do Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana, da Smithsonian Institution, sugeriram que Africatown pode tornar-se um memorial nacional dos navios de escravos. 

“Esta é uma parte fundamental da nossa história”, afirma Lorna Gail Woods, de 70 anos, historiadora local e descendente de Charlie Lewis, um dos fundadores de Africatown. “O Amistad e o Titanic tiveram exposições itinerantes. Porque não o Clotilda? Precisamos de dar alguma possibilidade de resolução emocional a estas crianças. Há aqui uma história importante que precisa de ser contada ao mundo inteiro!”

Anderson Flen concorda. “Neste momento, existe muito sofrimento no nosso país. Enquanto não tratarmos da essência da questão racial, em vez dos seus aspectos superficiais, nunca será possível sarar as feridas. Até resolvermos 
o sofrimento.” 

ASSUMIR O PASSADO

Texto: Chelsea Brasted

Robert Meaher ouviu as histórias de como o seu bisavô, Timothy Meaher, planeou o derradeiro desembarque de escravos nas costas dos EUA, e da maneira como o navio, o Clotilda, foi desmantelado perto de Mobile. No entanto, questiona que os destroços encontrados nas águas lamacentas do rio Mobile sejam os desse navio, recordando achados ocorridos em décadas anteriores. Sublinha que o seu antepassado nunca foi condenado por qualquer crime e aponta para o envolvimento de outras entidades, como as pessoas do Benin que venderam os escravos, e William Foster, que comandou o navio. 

“A escravatura está errada, mas se o seu irmão matar alguém, a culpa não é sua”, afirma Robert Meaher, lembrando que os pecados dos antepassados não são herdados. Ainda assim, consegue dizer: “Peço desculpa. Fazer uma coisa daquelas é errado.” 

Único membro da sua família a responder a pedidos de entrevista, Robert afirma que tem conduzido a sua própria investigação sobre o Clotilda, reunindo pormenores sobre o navio e a sua carga. Guarda um artigo sobre Cudjo Lewis publicado no “Mobile Register” em 1931, sublinhando uma citação na qual Lewis afirmou: “Vendo bem, estou feliz por me encontrar aqui, porque, quando estava lá, não sabia que havia um Deus.” 

Para Meaher, homem religioso, isto não é irrelevante. A ligação da sua família à história, diz, levou-os a doar bens da igreja em Africatown e um terreno para um parque. Também fez donativos a uma organização sem fins lucrativos que envia navios-hospital a todo o mundo, incluindo o Benin. 

Com 73 anos, Robert Meaher explica que já não está ligado à gestão do património imobiliário da família há cerca de duas décadas e, por isso, não pode comentar quaisquer planos para os terrenos que esta possui em Africatown e nos arredores do bairro. Quando lhe perguntámos se estaria interessado numa reunião com descendentes das pessoas que vinham a bordo do Clotilda em 1860Robert respondeu com clareza: “Não estou disponível para isso.”

Joycelyn Davis, descendente de Charlie Lewis, cativo do Clotilda, vive perto do cruzamento das avenidas Timothy e Meaher. Diz ser provável já ter visto membros da família Meaher no supermercado ou ter estado a seu lado numa fila à espera de um café. Nunca falou com nenhum deles, mas já pensou no que perguntaria aos Meaher se tivesse oportunidade. 

“Se eles pudessem apenas sentar-se e contar-nos a história que lhes foi contada, porque tem de haver uma história”, diz. Joycelyn também pensou em contactar os descendentes de Foster, ou das pessoas do Benin cujos antepassados venderam os seus antepassados aos traficantes de escravos. “O assunto é muito mais importante do que uma vingança”, afirma. “É muito mais importante do que ganhar dinheiro.”

Esse tipo de ligação, em que os descendentes das mais terríveis divisões raciais da história dos EUA alcançaram a reconciliação, é possível. Em 2009, os descendentes de Homer Plessy e do juiz John Howard Ferguson, homónimos do tristemente célebre processo judicial que levou o Supremo Tribunal dos EUA a apoiar a segregação racial em 1896, constituíram uma fundação para explicar as repercussões do caso e a sua relevância nos tempos modernos. Uma trineta do juiz, Phoebe Ferguson, reuniu-se com Keith Plessy, cujo bisavô era primo de Homer Plessy, pouco depois de saber o papel que a sua família representara na história.

“Fiquei perplexa ao perceber o poder do simbolismo do nosso encontro, sem fazermos nada para além de sermos amigas uma da outra”, afirma Phoebe. “Eu sabia que a culpa não era minha, mas era o legado da minha família. Vivermos no século XXI não pode servir de desculpa para nada fazermos acerca do assunto.”

Tudo começa por assumir os factos. “Somos responsáveis por emendar as coisas no tempo presente”, afirma Keith Plessy. Os afro-americanos foram “mal recebidos aqui, obrigados a trabalhar, torturados, assassinados e tudo o mais. Tudo isso nos foi feito”. O perdão, afirma, começa pelo reconhecimento desses erros e pelo pedido de desculpa por eles.