Na manhã do dia 24 de Março de 1946, dois funcionários do Hotel Parque do Estoril (um chamar-se-ia Ivo, de acordo com uma das fontes), preocupados com a ausência de resposta do hóspede do quarto 42, usaram a chave-mestra e entraram na habitação. Depararam, com horror, com o hóspede sentado na poltrona do quarto, imóvel. À sua frente, estava um tabuleiro com os restos do jantar da véspera e um tabuleiro de xadrez quase intocado.

O hóspede era o franco-russo Alexander Alekhine, campeão mundial em título de xadrez, e o caso ainda hoje suscita as mais extraordinárias teorias. Alekhine tinha então 53 anos, mas vivera peripécias suficientes para três vidas. Oriundo da classe aristocrática da Rússia czarista, fora surpreendido pela Revolução Soviética. Com habilidade, e por força do seu talento para o xadrez, logrou fazer prova de fidelidade ao novo regime. Travou amizade com alguns dos seus líderes, também apaixonados pelo velho jogo de tabuleiro. Contará mais tarde que Trotsky o salvou de uma condenação à morte. À primeira oportunidade, desertou para o estrangeiro e pediu asilo em França. Renegou o bolchevismo e cortou laços com a pátria. Continuou a superiorizar-se nos tabuleiros – alguns dos seus movimentos tornaram-se clássicos. Alekhine sagrou-se campeão mundial em 1927 e manteve a coroa até 1935, ano em que a perdeu para o holandês Max Euwe. Recuperou o título em 1937. Ninguém parecia capaz de travá-lo nessa década de 1930. E, em 1939, embarcou com a elite mundial para Buenos Aires para um torneio internacional. Estavam em curso as negociações para definir as regras, datas e locais do próximo desafio, mas a Alemanha invadiu a Polónia no dia 1 de Setembro e iniciou a Segunda Guerra Mundial.

Alekhine

Alexander Alekhine no auge da sua celebridade.

Uma alma perdida

Vários jogadores, sobretudo os judeus, preferiram manter-se na América do Sul. Outros iniciaram o regresso lento à Europa. Alekhine aportou em Lisboa em 21 de Janeiro 1940, com incertezas sobre o futuro. Foi recebido por uma multidão, mas forçado a regressar a França, onde o esperava o serviço militar em tempo de guerra. Em Junho de 1940, porém, o país capitulou e o jogador hesitou sobre a jogada seguinte. Prestou entretanto serviços dúbios às novas autoridades, desconhecendo-se se o fez por convicção ou obrigação.

Regressou com regularidade à Península Ibérica para disputar partidas com mestres ibéricos ou simultâneas de exibição. Alekhine começou a ponderar a ideia de se radicar em Portugal ou em Espanha se a guerra não pendesse para o lado alemão. No final de 1945, decidiu mesmo pedir asilo a Portugal, temeroso de um ajuste de contas no seu país adoptivo por acusações de colaboracionismo.

Alekhine

ALEKHINE à chegada a Lisboa (o segundo a contar da esquerda), recebido pela família Lupi. Francisco Lupi (o primeiro da esquerda) era um xadrezista de renome e terá sido um dos primeiros a entrar no quarto do colega na manhã de 24 de Março. Jornal O Século, Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Com alguma ingenuidade, o mestre acreditava que tudo poderia voltar a ser como antes da guerra e que o seu longo reinado como campeão mundial seria de novo posto à prova. Sofreu um desgosto quando a sua participação no primeiro torneio após a guerra na Grã-Bretanha foi boicotada pelos jogadores americanos e por alguns franceses, visados nos artigos sobre o judaísmo e o xadrez. Alekhine resistiu, por isso, em Portugal, apesar de a mulher não se lhe juntar.

As suas finanças esgotavam-se. Vivia da caridade de amigos, que o sustentavam e lhe pagavam as despesas básicas. Participou fugazmente num torneio em Cáceres e em partidas de exibição com a promessa Francisco Lupi no Casino do Estoril. Bebia muito. Lupi dirá que a sua imagem, nos primeiros meses de 1946, pouco tinha que ver com a do gigante erecto e firme que, em 1940, aportara em Lisboa.

Alekhine era uma alma perdida no Hotel do Parque, no Estoril, onde residia.

Hotel do Parque

O HOTEL DO PARQUE era o antigo Hotel das Termas que, desde o século XIX, tirava partido da singularidade geológica em Santo António do Estoril que aquece a água de uma nascente que vai esfriando ao longo do dia. O hotel, onde Alekhine viria a morrer, perdeu alento com a inauguração do vizinho Hotel Palace, onde se sabe que o xadrezista também pernoitou. Nos meses finais da sua vida, como o provou o historiador Dagoberto Markl, Alekhine vivia da caridade de alguns amigos, entre os quais o presidente da Federação Portuguesa de Xadrez, que suportavam os seus parcos gastos e inventavam pretextos para lhe gerar receitas. Nove dias antes da sua morte, o campeão assinou um artigo no jornal A Bola. Abandonado à sua sorte, Alekhine tinha uma rotina certa: passeava ao fim da tarde pelo parque vizinho e ceava no quarto. Foi o que aconteceu na noite de 23 para 24 de Março de 1946. Jornal O Século, Arquivo Nacional da Torre Do Tombo

A morte

Um dia antes de morrer, na noite de 22 de Março, Alekhine apareceu na residência de Francisco Lupi, deprimido e sem propósito. No dia 5 de Março, Winston Churchill proferira o primeiro discurso sobre a Cortina de Ferro e os novos inimigos do mundo livre – os soviéticos. Alekhine acreditava que ninguém o deixaria disputar o título mundial com o soviético Mikhail Botvinnik, logo ele que proclamara em 1927 a sua intenção de pôr termo ao mito da invencibilidade bolchevista no xadrez. E, no entanto, havia boas notícias no horizonte: a Federação Inglesa de Xadrez aceitara organizar o match entre Alekhine e Botvinnik, apesar de todas as objecções. De Moscovo, chegara também a confirmação de que os russos não se opunham à partida, pois o desafio do campeão em título era a única forma de devolver o ceptro a Moscovo – pouco importava por isso que o campeão em título tivesse renegado o regime, desde que Botvinnik lhe arrebatasse a coroa.

Os relatos sobre a morte de Alekhine divergem radicalmente e vários biógrafos publicaram delírios ficcionais. Fixemo-nos na versão que Francisco Lupi contou a Pablo Móran, biógrafo de Alekhine. Na noite de 22, cansado de “gastar o soalho do quarto andando para a frente e para trás”, o xadrezista pedira a Lupi para o levar a um night-club. Ali confessara a sua depressão, ao som de tangos melancólicos. Foi a última vez que se viram.

Lupi contou também que fora acordado no dia 24, às 10 horas e meia, e avisado de que “o velho dr. Alex” não respondia do quarto de hotel. Correu para o Estoril e terá entrado ao mesmo tempo que os funcionários e as autoridades. O que viu nesse instante tem sido objecto de múltiplas interpretações.

É provável que Francisco tenha avisado o padrasto, Luís Caldeira Lupi, fundador da Agência de Notícias Lusitânia e correspondente em Lisboa da Associated Press (AP). O jornalista correu para o local com a convicção de que a morte do campeão do mundo teria interesse global e seria portanto uma oportunidade de carreira. Sabemos, por uma carta enviada por Luís Lupi a Robert Bunelle da AP (publicada pela primeira vez pelo historiador Dagoberto Markl) nesse mesmo dia 24, que o jornalista improvisou: não tendo levado a sua máquina fotográfica, pediu emprestada uma no hotel e captou de imediato alguns instantâneos da figura jacente do campeão. Nunca se saberá se o arranjo teatral do quarto foi decidido por Lupi para compor a fotografia, ou se, na verdade, Alekhine jazia tal como falecera. Dias depois do caso, Francisco contará ao mestre Rui Nascimento que fora o padrasto a “pôr [o tabuleiro] ali, à pressa, para fazer a foto”.

Vários pormenores na imagem têm sido questionados, a começar no tabuleiro de xadrez, impecavelmente alinhado numa partida começada (com dois peões capturados) e terminando num livro de poesia aberto na página onde estava a frase dramática: “Este é o destino de todos os que vivem no exílio.” Lupi fotografou quatro variantes, duas das quais são conhecidas e publicadas. As restantes estarão provavelmente no arquivo da AP.

Alekhine

Alekhine foi nazi? Alexander Alekhine partilhava as ideias anti-semitas e racistas dos alemães? A pergunta poderá ser estranha, tendo em conta a origem eslava do xadrezista franco-russo, mas uma série de artigos, publicados em 1941, na revista Pariser Zeitung, foi mal recebida pelos Aliados. Alekhine tinha servido o exército francês como tenente. Após a rendição, foi aproveitado, pelo governo de Vichy, como palestrante e personalidade desportiva em partidas de exibição com altos dignitários nazis. Nunca se saberá se o fez por convicção ou por ausência de alternativa. Na referida revista, assinou vários ensaios nos quais aplicou as teorias nazis ao xadrez, procurando explicar assim a superioridade dos praticantes arianos sobre os jogadores de origem judaica. Quando os ventos da guerra mudaram, Alekhine tentou reverter a repercussão dessas palavras, afirmando que os textos tinham sido grosseiramente adulterados pelos editores, mas entrevistas concedidas a jornais espanhóis revelam o apadrinhamento do xadrezista em 1941 desses artigos escritos “do ponto de vista da raça”. Depois da guerra, Alekhine foi vetado por vários adversários e certamente que essa circunstância pesou na sua depressão. À esquerda, o xadrezista no Estoril, em 18 partidas simultâneas “às cegas”.

Alekhine

Terá Alekhine sido assassinado? Terá orquestrado o seu suicídio? Ou faleceu por uma causa mais prosaica? A autópsia, publicada por Dagoberto Markl, confirma que a causa de morte foi um pedaço de carne alojado perto das cordas vocais, o que sugere morte por asfixia. Na sua carta para a AP (antes de se conhecer o resultado da autópsia), Luís Lupi conta que o campeão tinha de facto um pedaço de bife na mão, “pois comia com as mãos e só usava faca e garfo em público”. Outros autores especularam que o pedaço poderá ter sido colocado post mortem por um eventual homicida.

A demora de 23 dias entre o óbito e o enterro alimentou suspeitas, tanto mais que um artigo do jornalista Artur Portela, no Diário de Lisboa, explorou teses mirabolantes com evidentes liberdades criativas. É provável que a demora tenha decorrido por dificuldades de contacto com a esposa de Alekhine e porque o xadrezista era praticante da religião ortodoxa, o que dificultava um enterro católico. Portela dirá que a falta de amónio na morgue degradara radicalmente a fisionomia do defunto, dificultando a autópsia.

Talvez a melhor explicação tenha sido fornecida pelo médico-legista António J. Ferreira a Dimitrije Bjelica, outro xadrezista biógrafo de Alekhine. Ferreira era estudante em 1946, mas, por sortilégios do destino, assistiu à autópsia: “É difícil compreender a morte de um grande homem. Tendemos a adorná-la com uma auréola misteriosa porque a realidade autêntica pareceria demasiado prosaica.”