escrita

Todos os anos, a freguesia de Salir, em Loulé, comemora a Festa da Espiga.

Entre as actividades tradicionais evocadas no programa, está a arte das lavadeiras – figurantes encenam o trabalho destas mulheres que, usando a água dos rios e uma placa de xisto, repetem o trabalho da barrela. A placa é sempre a mesma – uma peça de xisto recuperada por Jorge Narciso há muito da estrutura de um poço perto do sítio da Cortelha. 

Este ano, ao ver a peça, o fotógrafo Jorge Graça detectou signos numa das faces. O Museu Municipal de Loulé (MML) detém estelas com escrita do Sudoeste na sua colecção e o Projecto Estela, dos arqueólogos Pedro Barros e Samuel Melro, tem divulgado amplamente este tipo de registos na região.
A similitude parecia evidente. “Foi um acaso, como sucede quase sempre com as descobertas destas inscrições”, diz Ana Rosa Sousa, directora técnica do MML. “Mas pesou certamente o conhecimento de estelas semelhantes expostas em Loulé.”

No final do século XVIII, Frei Manuel do Cenáculo registou a ocorrência de várias destas inscrições no Alentejo. Chamou-lhes premonitoriamente “pedras Phenicias”, reconhecendo nos signos um carácter pré-romano. Nos séculos seguintes, à medida que se processavam mais descobertas, este sistema de escrita foi ganhando outros nomes. Estácio da Veiga designou-a como “escrita do Algarve”, reflectindo a importância regional das ocorrências. Outros autores trataram-na como “escrita ibérica” ou “sud-lusitana”. Uma forte tradição associou esta escrita ao universo tartéssico apesar de mais de 90% das descobertas se registarem fora do limite geográfico desta cultura. Nas últimas duas décadas, vingou por fim a designação “escrita do Sudoeste”.

“Raramente se processaram descobertas in situ, o que dificulta a interpretação”, comenta o epigrafista Amílcar Guerra. “Nos raros casos em que tal sucedeu, foi em contexto de reutilização no período romano, que nada esclarece sobre a função original.”

No início da década de 1990, os arqueólogos Manuel e Maria Maia fizeram uma descoberta espantosa: numa placa de xisto, um mestre e um aprendiz reproduziram 27 signos desta escrita – o primeiro com objectividade, o segundo procurando reproduzir os signos do mestre. “Não foi a pedra de Roseta desta escrita porque não nos aproximou da compreensão, nem a comparou com uma escrita conhecida, mas deu-nos uma ideia do universo de signos disponíveis”, diz Guerra. “Entretanto, noutras estelas, apareceram alguns signos inexistentes no signário de Espanca”, acrescenta Pedro Barros. “É compreensível: sem um sistema de uniformização, a escrita do Sudoeste foi usada com liberdades regionais por cada escriba.”

“O universo cronológico das estelas encontradas até agora situa-se na I Idade do Ferro, entre os séculos VI e V a.C.”, diz Guerra. Ao contrário do que acontece com os vestígios materiais, a língua e a escrita fenícias estão escassamente representadas nas áreas onde a influência dessa cultura é mais substancial. Na região onde a escrita do Sudoeste mais se manifesta, a cultura material sugere geralmente menor influência exógena. 

A descoberta da estela da Cortelha junta-se a um universo de mais de uma centena de inscrições já conhecidas. É mais uma peça de um puzzle antigo, que requer paciência e desafia a imaginação. Quem seriam os escribas do Sudoeste peninsular?