Publicada em 1852, A cabana do pai Tomás tornou-se de imediato num best-seller e contribuiu para questionar o sistema esclavagista nos estados do Sul dos Estados Unidos.

A tradição conta que, em 1862, quando o presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln, conheceu Harriet Beecher Stowe, cumprimentou-a dizendo:“Então é você a mulherzinha que escreveu o livro que provocou esta grande guerra!”O diminutivo estava correcto, pois Stowe tinha um metro e meio de altura e o presidente mais de um metro e noventa. E embora seja exagerado dizer que A cabana do pai Tomás desencadeou por si a Guerra da Secessão (1861-1865), a terrível contenda entre o Sul e o Norte dos Estados Unidos que provocou centenas de milhares de mortos, não há dúvida de que contribuiu decisivamente para mobilizar a opinião pública contra o regime esclavagista dos estados sulistas.

Elizabeth Harriet cresceu numa família culta e de forte convicção cristã. Durante alguns anos, dedicou-se ao ensino e começou a escrever artigos para os jornais da sua cidade, Cincinnati, actividade que manteve após o casamento com Calvin Stowe, um clérigo e estudioso da Bíblia. Harriet Stowe fazia parte de um grupo de escritoras, na sua maioria brancas (embora se tivessem juntado algumas afro-americanas) que, na primeira metade do século XIX, quiseram participar nos assuntos públicos. O tema mais urgente era a escravatura, uma instituição que Stowe e muitas como ela consideravam contrária à fé cristã e ao princípio da igualdade que inspirara a fundação dos Estados Unidos.

Cabana do Pai Tomás

A fronteira do mundo livre. Durante 18 anos, até 1850, Harriet Beecher Stowe viveu em Cincinnati, uma cidade do estado de Ohio na fronteira com o Sul esclavagista. Graças a isso, a escritora conhecia bem a situação dos negros que fugiam das plantações e rumavam ao Canadá, escapando à captura autorizada pela Lei do Escravo Fugitivo. Na imagem Escravos fugitivos cavalgam rumo à liberdade. Por Eastman Johnson, 1862.

No caso de Stowe, o detonador para a sua explosão de indignação moral foi a aprovação da Lei do Escravo Fugitivo em 1850, uma norma que obrigava todos os norte-americanos, incluindo os do Norte, a denunciar e a devolver os escravos fugidos aos donos, os terratenentes esclavagistas do Sul. Ofendida na sua condição de cristã e  norte-americana, decidiu  escrever um relato sobre diversos escravos negros do Sul vítimas da exploração dos seus amos e das leis vigentes. “Escrevi o que escrevi porque, como cristã, senti a desonra do cristianismo; como cidadã do meu país, tremia perante a chegada da ira”, declarou mais tarde numa carta a Lord Denman.

O livro que todos esperavam

A cabana do pai Tomás, ou A vida entre os humildes, foi publicado em fascículos num jornal antiesclavagista em 1851 e no ano seguinte como livro, obtendo um êxito inédito em obras norte-americanas anteriores. Mais que lido, foi devorado desde o momento da sua publicação, uma data que coincidiu com o recrudescimento e a recta final das tensões face à questão da escravatura. De facto, o impacte que teve nas décadas seguintes nos Estados Unidos e no exterior chegou a eclipsar outros textos antiesclavagistas, incluindo os duros e comoventes testemunhos autobiográficos dos próprios escravos.

Harriet Beecher Stowe

“Escrevi o meu romance porque senti a desonra do cristianismo e tremia perante a chegada da ira.” Na imagem Harriet Beecher Stowe. 1862. Galeria Nacional de Retratos, Londres.

Existiram edições legais e piratas, com ou sem ilustrações, traduções para mais de sessenta idiomas, versões abreviadas, adaptações infantis e numerosas versões para teatro, nem todas respeitando a mensagem antiesclavagista. No final do século XIX, o romance convertera-se num clássico universal.

A história de A cabana do pai Tomás começa na plantação dos Shelby, no Kentucky, quando o amo vende parte dos seus bens e os escravos para pagar dívidas familiares, um episódio que representava para Stowe a essência da escravatura: a transformação do ser humano em objecto.

A narração bifurca-se então em duas linhas de enredo. Uma delas dedicada à escrava Eliza e ao indómito mulato George, pais do pequeno Harry. Inicialmente, George foge com a intenção de comprar a liberdade da sua família. A fim de proteger o filho, Eliza também foge, protagonizando a famosa cena em que atravessa as águas geladas do rio Ohio, a fronteira com o Norte antiesclavagista, para atingir a outra margem livre e prosseguir caminho em direcção ao Canadá até se reunir com George.

A cabana do Pai Tomás

A Casa de Harriet B. Stow, em Cincinnati. A autora de A cabana do pai Tomás viveu aqui 18 anos antes de se mudar para Brunswick (Maine).

A outra linha de enredo centra-se em Tom, um escravo profundamente religioso que vive com a mulher e os três filhos e que parece resignado à sua condição de escravo. Apesar da sua boa conduta, o dono vende-o e acaba na plantação do aristocrata Saint Clare, onde faz amizade com a sua filha, Eva, cuja cena constitui uma cena sentimental de redenção cristã. Avançando rumo a outra etapa do seu calvário, Tom será vendido à plantação comandada pelo malvado Simon Legree. Aqui, depois de ser cruelmente torturado por Legree, Tom só encontra a liberdade através da morte. Enquanto isso, Eliza e o filho reúnem-se com George e decidem partir para África em busca de liberdade.

Um melodrama

A cabana do pai Tomás é um melodrama típico do século XIX, repleto de elementos românticos que apelam ao sentimentalismo do leitor: o sofrimentos dos fracos, a religiosidade edificante, as separações e reuniões finais entre os protagonistas, a exemplaridade dos inocentes e o castigo dos malvados. Um autêntico folhetim que  segue as linhas traçadas pelos aclamados romances de Dickens no século XIX. Porém,   nem   todos   aplaudiram de forma igual a obra de Stowe. Os leitores dos estados esclavagistas sentiram-se difamados. Alguns dirigiram ameaças escritas à autora, que chegou a receber um pacote com a orelha cortada de um suposto escravo. Em resposta, surgiu uma onda de romances pró-escravatura que se prolongaria para além da Guerra da Secessão e culminaria em 1936 com a publicação de E tudo o vento levou, um romance que, graças ao poder do cinema, se tornou quase tão famoso como o de Stowe.

Por outro lado, Beecher Stowe também foi objecto de críticas em sentido contrário, e até chegou a ser apelidada de racista. De facto, a autora apresenta muitas das personagens negras como figuras cómicas, crianças grandes que se expressam com uma linguagem melodramática e que agem segundo impulsos naturais incontroláveis. Em contrapartida, as personagens mulatas mostram características que se assemelham mais às dos brancos. É o caso de Eliza e George: a primeira representa o ideal feminino da época, que acentua os sentimentos de dedicação maternal e piedade cristã. Já George é o rebelde romântico que abdica da violência ao ser domesticado pela religião.

A cabana do Pai Tomás

Êxito sem precedentes. No cartaz reproduzido junto destas linhas, o edi- tor do romance de Beecher Stowe anunciava o número de exemplares vendidos nos primeiros meses de publicação: 135 mil por cada volume. Num ano, venderam-se nos Estados Unidos 300 mil exemplares.

O escravo como redentor

É certo que Stowe assumiu os estereótipos raciais da sua época, segundo os quais as raças eram essencialmente diferentes e o negro era uma criatura inepta, escrava das emoções, incapaz de se governar por si próprio. Porém, os indivíduos que mantinham a primazia do sentimento sobre o intelecto (quer pelo romantismo quer pela religião evangélica) viam nestas supostas debilidades uma série de virtudes redentoras e até indícios de superioridade dos afro-americanos, e daí a sua imagem como criaturas inocentes e cristãs naturais.

A cabana do Pai Tomás

Em A cabana do pai Tomás, os afro-americanos surgem mais como símbolos do que como pessoas, mais como veículo para uma crítica romântica da sociedade do que como seres humanos com virtudes e defeitos. Com este retrato do pai Tomás como irmão cristão, Stowe desafiava os leitores a questionar a sua hipocrisia diante da injustiça de um estado esclavagista e a decidir tomar partido para extinguir o que considerava um flagelo nacional.