Quem segue pela antiga Estrada Nacional 234 (também conhecida por Estrada Velha de Viseu) na direcção de Mangualde, encontra uma cortada do seu lado direito sem qualquer sinalização. É um estradão de terra batida, numa envolvente florestal, culminando num largo de pedra centrado numa estátua e num mural de azulejo. Ocorreu, por estas bandas, o maior desastre ferroviário da história nacional e um dos acontecimentos mais trágicos do Portugal democrático: a colisão de dois comboios na freguesia de Moimenta Maceira Dão, perto do apeadeiro de Moimenta-Alcafache.

Foi no dia 11 de Setembro de 1985 que esta localidade do distrito do Viseu, cujo maior ponto de interesse eram à altura as águas termais à beira do Dão, entrou para o nosso léxico como sinónimo de catástrofe, antes de Entre-os-Rios e Pedrógão Grande. Dizê-la alto é invocar uma tragédia muito específica e é difícil que Alcafache não nos remeta para os comboios da morte de 1985. 

Em 2008, em entrevista à SIC, na rubrica "Perdidos e Achados", a bombeira Marília Moita contava que, nesse dia, estava nos serviços telefónicos de emergência. Quando recebe a chamada das chamadas da jornada, uma voz, esbaforida e irritada, manda-a calar e relata um acidente ferroviário grave. Descreve um cenário infernal, de ferro retorcido, chamas, pedaços de corpos espalhados. Os meios são mobilizados, mas a custo, com uma dificuldade em gerir e comunicar entre as várias corporações de bombeiros da região.

Era um dia tórrido e antes de os bombeiros chegarem, já os populares estavam no local. Eram habitantes de Alcafache e Moimenta, alertados por um estrondo ouvido na altura do embate. Entre eles, encontrava-se um operador de vídeo que trabalhava para a televisão pública portuguesa, a RTP, que recolheu as primeiras imagens do acidente.

UMA TRAGÉDIA DE ENGANOS

O que se sucedera fora uma infelicidade, sendo que as causas desta tragédia e o número de vítimas ainda hoje são alvo de discussão. A sequência de acontecimentos, no entanto, é linear.

Às 15h57, parte de Campanhã, no Porto, um comboio Sud-Express com destino a Paris-Austerlitz. Levava à volta de 400 passageiros, a maior parte emigrantes que tinham vindo passar férias a Portugal. Sai com um atraso de 17 minutos.

Quase uma hora depois, às 16h55, parte da estação da Guarda um comboio regional com destino a Coimbra, cumprindo o horário. Porque o Sud-Express segue em direcção a Vilar Formoso, atravessando assim a faixa centro-interior portuguesa, ambos os comboios terão de, a certa altura da sua viagem, passar no mesmo troço da Linha da Beira Alta, eixo ferroviário central na região, mas que na maior parte do percurso tem apenas uma única via.

O Sud-Express chega a Nelas às 18h19. Entretanto, o comboio regional alcança quatro minutos depois a estação de Mangualde, a poucos quilómetros. Aqui, tendo em conta o atraso do comboio internacional, esta locomotiva devia ter aguardado. Mas não o fez.

Ora, dois comboios cruzando a mesma linha única ao mesmo tempo é uma certeza assustadora de choque frontal: sendo impossível comunicar, na altura, com dois comboios em andamento, os passageiros e funcionários circulando em ambas as viaturas rumam a um desastre inevitável; e este ocorre às 18h37, quando o internacional 315 e o regional 1324 chocaram com estrondo e violência, descarrilando ao longo de dezenas de metros num espaço florestal.

Na altura e em anos posteriores, os bombeiros que participaram na operação de salvamento descreveriam um cenário de absoluto horror. Desde terem de descolar literalmente o que restava de corpos de pessoas, inclusive pais abraçados aos filhos num acto derradeiro e desesperado de protecção, a encontrar bolas esponjosas e aperceberem-se com terror que se tratavam dos restos daquilo que tinha sido seres humanos, passando por avistarem braços e pernas separados dos seus donos, aleatoriamente no chão como se houvesse chovido membros corporais. Choros, gritos, metal retorcido, cinzas, gente já carbonizada.

Bombeiros que participaram na operação de salvamento relatam que viram pais abraçados aos filhos num acto derradeiro e desesperado de protecção.

Para agravar a situação, o derrame de gasóleo das locomotivas gerou violentos incêndios no pinhal em redor. A demora no auxílio deveu-se ao facto de o local onde ocorreu o acidente ser remoto, mas também à falta de organização dos meios, num país pouco habituado à gestão deste género de tragédias.

Moimenta Acidente
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Monumento em Memória do Acidente de Alcafache – Moimenta do Dão. Fotografia de Vítor Oliveira

Vítor Morais foi um dos sobreviventes. Na supracitada reportagem à SIC, referiu que acabara de se sentar depois de arrumar as malas, tendo subido ao regional de Coimbra em Alcafache, quando se ouviu um barulho estrondoso. De súbito, teve um apagão. Quando voltou a acordar, sentindo um peso em cima de si, descobriu-se ensanguentado e fraco, e à sua volta encontrou uma amálgama metálica do que foram as carruagens. Vítor conta como horas mais tarde, quando o local foi visitado por Ramalho Eanes (à altura presidente da República), lhe pedira boleia no seu helicóptero para ser transportado para o hospital em Lisboa. Após uma análise do próprio médico presidencial, Vítor embarcou. No que foi uma tremenda sorte: todos os hospitais da região, principalmente o de Viseu, ficaram lotados e algumas das vítimas, até pela gravidade, foram desviadas para Porto ou Coimbra. A Força Aérea  Portuguesa e o Exército colaboraram activamente nas operações, nomeadamente no resgate dos feridos e no transporte dos mesmos por via aérea.

COMOÇÃO NACIONAL… E ESQUECIMENTO

Ramalho Eanes visitou nessa mesma noite o local às duas da manhã. O presidente chegara directo do hospital de Viseu, onde visitou as vítimas. Falou com os responsáveis in loco e deixou que todos trabalhassem. Eanes, ciente da importância do sucedido e também dos fantasmas de um país que dez anos antes vivera sob um ditadura que controlava as notícias, declarou que o país tinha o direito de saber o que se passara ali, e na hora.

Ao tomar conhecimento de que alguém gravara imagens no calor do acidente, requisitou as cassetes e ordenou a organização de um corredor aéreo que as levasse aos estúdios das RTP no Porto, os mais próximos da zona. Foi desta forma que os portugueses puderam ver, logo de madrugada, imagens da tragédia, calando muda na consciência nacional. 

Na sequência desta transmissão televisiva, centenas de cidadãos dirigiram-se aos hospitais para dar sangue. O primeiro-ministro Mário Soares chegou uma hora depois, anunciando ao país três dias de luto nacional e um inquérito para apuramento dos factos. Era necessário saber o que acontecera. 

Foi aberta uma vala comum no local do fatídico acidente.

O comandante dos bombeiros de Nelas quantificou a tragédia em 300 mortes, complementando que haveria mais gente falecida do que viva no meio dos destroços. O responsável pelos bombeiros de Maceira avançou a mais comedida soma de 100 vítimas mortais e, de facto, estando uma totalidade de 460 passageiros nos dois comboios e perante a dimensão daquele cenário e dos grotestos incêndios que se seguiram, não parecia exagero. O balanço feito posteriormente apontou para 49 mortos, ressalvando, no entanto, que 64 passageiros se encontravam desaparecidos e que só 14 pessoas foram positivamente identificadas. Desconhece-se, ainda hoje, o número exacto de vítimas.

Sabe-se que, no local onde hoje se encontram os monumentos que recordam a tragédia, foi aberta pouco depois do desastre uma vala comum. Aqui se reuniram todos os pedaços soltos de corpos e cinzas calcinadas possíveis e, depois de uma pequena cerimónia, fechou-se então esta sepultura improvisada. Cândido Ramos, à altura presidente da Junta de Freguesia de Maceira, lembraria anos mais tarde que esta vala teria entre três a quatro metros de profundidade, e mediria uns cinco metros de comprimento.

Ainda hoje desconhece-se o número exacto de vítimas, mas várias fontes apontam para mais de 100 óbitos.

Perante o número de desaparecidos, algumas estimativas colocam o número de vítimas de Alcafache na ordem dos 150. Esta hipótese, a ser confirmada, elevaria este evento ao título do maior desastre de origem humana, no mínimo, dos últimos 150 anos, juntamente com o despenhamento, em 1977, de um avião da TAP no aeroporto da Madeira, que vitimou 122 pessoas.

Porque é que Alcafache foi esquecido?

O inquérito anunciado por Mário Soares rapidamente concluiu que este acidente foi causado por erro humano. Fosse em Alcafache ou em Moimenta, alguém não comunicara o atraso do Sud-Express. No entanto, quatro anos de julgamentos que envolveram quatro arguidos apenas reforçaram esta tese, mas sem poder atribuir responsabilidades. Sem registos escritos ou electrónicos, era a palavra de cada arguido contra a do outro e, como tal, o juiz não pôde fazer mais do que os absolver

Além disso, os desastres ferroviários eram à altura comuns no nosso país. Só nesse ano, já se tinham ocorrido oito, de menor dimensão. Antes de 1985, os fatídicos desastres na Linha Porto-Póvoa em 1963, com entre 91 e 102 mortos, e em Santa Clara, Odemira, dez anos antes, registando 54 vítimas, habituaram o país a esta realidade. Aliás, um ano antes do desastre de Alcafache-Moimenta, a colisão entre uma camioneta e uma automotora em Recarei causa 17 mortos. 

O serviço do centenário Sud-Express foi suspenso a 17 de Março de 2020, em plena pandemia.

heranças do 11 de setembro de 1985

Esta tragédia contribuiu para a alteração por completo da forma como se encarava politicamente o serviço de comboios no nosso país. Foi instalada uma rede de sistemas mais avançados de comunicação e sinalização do tráfego, o que teria impedido este desastre, e o controlo de velocidade, que tornou estes desastres muito mais difíceis de acontecer. Além disso, a introdução de sistemas de rádio solo, que permitem que os maquinistas comuniquem entre si e com as centrais de controlo, é outra herança de Alcafache.