Se não é coisa única no mundo, é no mínimo uma anomalia o dia nacional de um país celebrar um escritor. O 10 de Junho é dia de Portugal, do autor de “Os Lusíadas” e das comunidades portuguesas, mas é o poeta que se destaca. 

Para perceber como Luís Vaz de Camões acabou por surgir como símbolo do seu país de origem, é necessário recuarmos até 1880 e a um período conturbado da história nacional. Portugal vivia uma aguda contestação à monarquia, sendo a sua principal face o Partido Republicano Português, fundado quatro anos antes.

Sem grande relevância política na altura, os Republicanos eram contestatários e destacavam-se pelas suas intervenções eloquentes: alguns dos nomes literários maiores da segunda metade do século XIX português, como Antero de QuentalOliveira Martins ou Teófilo Braga eram simpatizantes e foi este último quem, em várias revistas (como "O Positivismo") durante 1879, foi alimentando a ideia de aproveitar o ano de 1880 para celebrar o trecentésimo aniversário da morte de Camões

O lírico escritor convinha muito aos liberais: trazia consigo a memória de uma altura em que Portugal era percepcionado internamente como uma grande nação mundial, em contraste com aquilo que os Republicanos e outros intelectuais viam como a decadência nacional do século XIX, culpa da monarquia. Era também um homem sem grandes conotações monárquicas ou religiosas aos olhos de Teófilo. Uma figura de letras, laica, e se era fora da religião, alegrava aos Republicanos.

O poema épico de Luís de Camões, publicado originalmente em 1572, foi revisto pelo "erudito sócio da Academia das Sciencias de Lisboa" José Gomes Monteiro (1807-1879). 
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O poema épico de Luís de Camões, publicado originalmente em 1572, foi revisto pelo "erudito sócio da Academia das Sciencias de Lisboa" José Gomes Monteiro (1807-1879). 

 

O que (não) se sabe sobre Camões

Sabemos muito pouco hoje sobre a vida do autor, e na altura menos se sabia. 1524 é aceite quase unanimemente como o ano do seu nascimento, numa família da pequena nobreza. Como tal, mesmo recebendo uma educação formal e clássica, nem sequer sabemos se frequentou a Universidade de Coimbra, como muitas vezes se crê, já que não existe qualquer documento que o comprove. 

Alegadamente visitou os continentes africano e asiático, e entre poesia e teatro, deixou ao mundo “Os Lusíadas”, uma das obras mais aclamadas e fundamentais de todo o cânone ocidental. É incerto o ano em que morreu, vítima de peste, e se durante muitos anos se apontou para 1580, os historiadores actuais inclinam-se para 1579. O seu corpo foi dado à terra numa campa rasa da Igreja de Santa Ana, em mais uma suposição, ou num cemitério dos pobres, noutra teoria, sendo que ambas as histórias aumentam a sua aura romântica de génio incompreendido e esquecido. 

Era uma aura que convinha a Teófilo Braga: os portugueses esqueceram Camões e, por conseguinte, o valor da nação. Camões, que chegou a dedicar o seu grande triunfo lírico a Dom Sebastião, era agora um republicano convicto no seu simbolismo. O século XVI é marcado pela contínua expansão territorial de Portugal, numa altura em que África estava esquecida e alguns países europeus, ansiosos por cortar esse continente em pedaços para os seus interesses, reclamavam as colónias africanas portuguesas.

Monumento ao poeta português no Largo Luís de Camões, em Cascais.
Benny Marty/ Shutterstock

Monumento ao poeta português no Largo Luís de Camões, em Cascais.

O 10 de Junho de 1880

O programa das comemorações dos 300 anos sobre a morte de Camões em 1880 foi extenso, e a comissão – maioritariamente composta membros Republicanos, com excepção de Pinheiro Chagas – contemplou festividades em vários locais do país, naquela que foi uma das primeiras grandes celebrações cívicas nacionais

O 10 de Junho ficou simbolicamente marcado, e ainda que o impacto tenha sido meramente no imaginário popular, pegou. Até Luís I, o rei de Portugal e dos Algarves, e a sua corte participaram, mesmo que sem grande convicção. A unanimidade em torno do poeta era tão expressiva que houve quem, em vez de um centenário, chamasse à celebração um “santanário”. Camões já não era só um homem: era uma Figura, assim com maiúscula. 

Um deputado do Partido Progressista sugeriu na altura que se decretasse feriado nas repartições públicas e a proposta passou no parlamento. Ainda assim, devido a uma alegada sobrecarga de datas festivas e feriados à altura – nomeadamente aquelas datas que celebravam os aniversários de membros da família real – o 10 de Junho só voltou a ser feriado no ano seguinte.

Selo de tributo ao poeta Luís Vaz de Camões (1979) 
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Selo de tributo ao poeta Luís Vaz de Camões (1979) 

Camões na República

Só em 1911, já com a República como regime político português, é que o feriado se oficializa. Inicialmente, acontecia só na cidade de Lisboa, sendo que a celebração incluía uma procissão que terminava no Chiado, junto à famosa estátua da autoria de Vítor Bastos e que fora colocada no largo homónimo em 1867, onde era deixada uma coroa de flores.

O dia começou em gradual movimento a ser celebrado nacionalmente, mas só em 1925 o Governo o tornou oficial: era uma festa de todo o povo português. De 1880 até 1925, Camões fora colocado como este grande símbolo da nacionalidade, aquele que quase dá o nome aos portugueses.  Agora, deixara de ter uma festa só sua, era de toda a nação.

Camões representado no Desfile da História de Portugal, durante a celebração do Dia dos Pais (São José) na Póvoa de Lanhoso, Portugal, a 17 de Março de 2019.
Bruno Ismael Silva Alves/ Shutterstock

Camões representado no Desfile da História de Portugal, durante a celebração do Dia dos Pais (São José) na Póvoa de Lanhoso, Portugal, a 17 de Março de 2019.

Mudam-se os tempos...

Devido a problemas de ordem financeira, já com a ditadura militar instalada, é que a designação de feriado se torna, de facto, oficial. A forte carga nacionalista do regime que em 1933 se tornou Estado Novo transforma o revolucionário republicano num emblema de nacionalismo bacoco. Camões perde-se nas brumas da propaganda e das grandes celebrações.

Túmulo de Camões na igreja de Santa Maria de Belém, em Lisboa.
Sonia Bonet/ Shutterstock

Túmulo de Camões na igreja de Santa Maria de Belém, em Lisboa. Arcos e colunas monumentais com pormenores de pedra esculpida ao fundo. 

O Estado Novo nunca terá uma relação fácil com a data, devido ao facto de ter origem republicana democrática, mas dará seguimento a um dos aspectos que surgia nos últimos anos da Primeira República: a Festa da Raça. Esta seguia uma ideia de nacionalismo vincado que se tornava popular na Europa da década de 1920 e daria origem ao Fascismo. O regime republicano nunca definiu bem o que queria dizer com raça, mas o facto de muitas discussões nas conferências da altura fazerem referência à frenologia e às alegadas virtudes de umas raças por comparação com as outras escancarava a porta para a eugenia tão em voga nessa época.

O regime irá reforçar ainda mais a ideia, embora os interesses em torno da raça de Salazar sejam canalizados noutras celebrações. É, no entanto, em 1958 que se inaugura uma tradição que ainda hoje se mantém: o Presidente da República começou a entregar no 10 de Junho cumprimentos e condecorações aos cidadãos nacionais. Inicialmente centrou-se nos professores primários. Depois estendeu-se a outros campos da sociedade portuguesa. 

Em 1961 começa a Guerra Colonial. A tónica do “Dia da Raça” é acentuada ainda mais e o foco das condecorações a partir de 1963 passa a ser em todos aqueles que combateram no conflito ou de alguma forma serviram as colónias. Se em 1880 o dia começara como uma celebração nacional e de paz entre os povos, agora era assumidamente um acto simbólico de guerra

Camões apropriado pelo Estado Novo, em 1972, num selo comemorativo do quarto centenário de "Os Lusíadas".
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Camões apropriado pelo Estado Novo, em 1972, num selo comemorativo do quarto centenário de "Os Lusíadas".

Um novo olhar em democracia

É Ramalho Eanes, o primeiro presidente democraticamente eleito da Terceira República Portuguesa, quem dá ao feriado o último retoque conhecido até hoje: decide enquadrar o 10 de Junho não só como dia de Camões e Portugal, mas também das comunidades portuguesas de emigrantes

A primeira cerimónia oficial a seguir ao 25 de Abril ocorre no interior do país, na Guarda, uma zona de resistência ideológica ao novo regime democrático. Eanes sinaliza, assim, que este feriado é de união entre todos os portugueses. As décadas seguintes trarão um novo ânimo e importância da efeméride.

Quando em democracia se abandonou a ideia de celebração da raça, o que sobrou foi a língua de Camões como elemento unificador dos países agora independentes que partilham esta língua. Cinquenta anos depois, nem todos os espinhos de cinco séculos de colonização estão ultrapassados, mas o génio do Poeta é unânime entre todos os que o lêem.

Como homenagem ao autor de “Os Lusíadas”, é instituído em 1988 o Prémio Camões de Literatura, que celebra desde então a língua portuguesa e distingue os seus melhores autores. É Miguel Torga, em 1989, quem recebe o primeiro galardão. Seguiram-se-lhe outros laureados do mundo lusófono como Vergílio Ferreira, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Paulina Chiziane, José Saramago, Pepetela, Sophia de Mello Breyner, Maria Velho da Costa, Agustina Bessa-Luís, Rubem Fonseca, António Lobo Antunes, Mia Couto, Hélia Correia e Chico Buarque (que teve de esperar quatro anos para receber em Portugal o galardão pelas mãos de Lula da Silva e Marcelo Rebelo de Sousa). 

Monumento ao Adamastor, de Júlio Vaz Júnior, no jardim do Alto de Santa Catarina, em Lisboa. 
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Monumento ao Adamastor, de Júlio Vaz Júnior, no jardim do Alto de Santa Catarina, em Lisboa. Na literatura portuguesa, a mais memorável referência a esta temível figura mitológica é da autoria por Luís de Camões, no Canto V de "Os Lusíadas". Na epopeia, Adamastor era o gigante do Cabo das Tormentas, que tinha o poder de afundar as naus.