Vislumbre do Universo

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Só vemos uma fracção minúscula do que existe. Para obter um VISLUMBRE DO UNIVERSO sombra que nos rodeia, os cientistas estão a aprender a detectar a matéria escura e a energia escura.

Texto de Timothy Ferris

Fotografias de Robert Clark

Só vemos uma fracção minúscula do que existe. Para obter um VISLUMBRE DO UNIVERSO sombra que nos rodeia, os cientistas estão a aprender a detectar a matéria escura e a energia escura.

 

 

SEGUNDO UMA VELHA PIADA, OS COSMÓLOGOS, QUE ESTUDAM O UNIVERSO COMO UM TODO “ESTÃO QUASE SEMPRE ERRADOS, MAS NUNCA TÊM DÚVIDAS”.

Actualmente, eles erram com menos frequência, mas as suas dúvidas tornaram-se tão grandes como todo o espaço fora de nossas casas.

Depois de décadas de investigação utilizando telescópios, detectores de luz e computadores mais potentes, os cosmólogos podem agora afirmar com alguma segurança que o universo nasceu há 13.820 milhões de anos, muito provavelmente de uma bolha de espaço mais pequena do que um átomo. Foi cartografada pela primeira vez a radiação cósmica de fundo (a luz libertada quando o universo tinha apenas 378 mil anos) com uma precisão superior a um décimo de ponto percentual.

No entanto, chegou-se também à conclusão de que todas as estrelas e galáxias visíveis no céu representam apenas 5% do universo observável.

A maioria invisível é composta por 27% de matéria escura e 68% de energia escura. Ambas são misteriosas. Pensa-se que a matéria escura será responsável pelo padrão das folhas e nervuras brilhantes das galáxias que formam a estrutura de grande dimensão do universo e, contudo, ninguém sabe o que ela é. A energia escura é ainda mais misteriosa. A expressão, cunhada para indicar tudo o que acelera a velocidade de expansão do cosmos, já foi classificada como um rótulo genérico para aquilo que não sabemos sobre as propriedades de grande escala do nosso universo.

Por consequência, os cosmólogos encontram--se hoje num estado de ignorância semelhante ao que afectava Thomas Jefferson em 1804, quando recomendou aos pioneiros Lewis e Clark, a caminho de uma viagem exploratória pela América bravia, que tivessem cuidado com os mamutes--lanudos. Jefferson e os seus contemporâneos sabiam que a América do Norte, desde o Mississípi até ao oceano Pacífico, era grande e importante, mas tinham noções vagas dos organismos que a poderiam habitar.

O primeiro indício da presença generalizada de matéria escura foi apontado pelo astrónomo suíço Fritz Zwicky na década de 1930, que mediu as velocidades a que as galáxias do enxame da Cabeleira, a 321 milhões de anos-luz da Terra, orbitam em torno do centro do enxame e calculou que, se ele não contivesse muito mais massa do que a visível, as galáxias já teriam há muito voado pelo espaço. O facto de o enxame da Cabeleira ter sobrevivido milhares de milhões de anos só poderia significar que “a matéria escura se encontra presente no universo em densidade muito superior à da matéria visível”, conjecturou. Investigações posteriores revelaram que as galáxias nunca se teriam formado se a gravidade gerada pela matéria escura não tivesse aglutinado os materiais primordiais quando o universo era jovem.

 

A matéria escura não pode ser apenas matéria normal imperceptível porque esta não existe em quantidade suficiente. Há seguramente biliões de objectos ténues de matéria normal pelo espaço fora, mas em nenhum cenário plausível a sua massa pode ser cinco vezes superior à da matéria luminosa. Por isso, os cientistas pensam que a matéria escura deverá ser formada por materiais muito mais exóticos. Já foi aliás proposta a hipótese segundo a qual entre numerosas variedades de matéria não observadas, uma (ou mais do que uma) poderá vir a revelar-se de matéria escura. No entanto, resultados experimentais recentes do Grande Colisor de Hadrões do CERN eliminaram algumas hipóteses. Em vez de especularem sobre a identidade exacta da matéria escura, a maioria dos cientistas envolvidos no projecto confessa apenas que procura “partículas maciças de interacção fraca”.

Provas da fraca interacção da matéria escura não só com a matéria normal mas também consigo mesma surgiram a três mil milhões de anos-luz da Terra, no enxame Bullet — na realidade dois enxames de galáxias em colisão. Ao cartografarem o Bullet com ajuda do Observatório de Raios X Chandra da NASA, os astrónomos encontraram enormes massas de gás quente no seu centro e atribuíram-nas a colisões de nuvens de matéria normal. Porém, ao elaborarem o gráfico referente ao campo gravitacional do Bullet, os especialistas descobriram duas concentrações de massa ainda maiores, correspondentes a cada um dos enxames originais, mais afastadas do centro da colisão. Concluíram que embora as estruturas de matéria normal de ambos os enxames estejam a colidir e a fundir-se, as cargas mais pesadas de matéria escura atravessavam a carnificina sem sofrerem danos.

A indiferença da matéria escura torna-a difícil de identificar pelos experimentalistas. Os detectores actualmente em funcionamento são tecnologicamente sofisticados. Um deles é o Espectómetro Magnético Alfa, que foi anexado à Estação Espacial Internacional para procurar evidências de partículas de matéria escura colidindo junto do centro da nossa galáxia. A maioria dos detectores, porém, procura interacções entre partículas de matéria escura e matéria normal na Terra. Estão enterrados nas profundezas do solo, de modo a minimizar as intrusões de partículas de matéria normal de alta velocidade provenientes do espaço. Alguns são compostos por um conjunto arrefecido de cristais ou por um tanque de xénon ou árgon em estado líquido rodeado de detectores e camadas de materiais protectores desde o polietileno ao cobre e ao chumbo.

O Grande Detector Subterrâneo de Xénon é o mais sensível do seu género e encontra-se instalado em Lead, no Dacota do Sul, a 1.478 metros de profundidade. É acessível através de um elevador. Começou a funcionar em 2013, mas não encontrou nada e está actualmente a retomar as buscas operando com uma sensibilidade mais elevada. Outras buscas forneceram “indícios fantasmas”, mas nenhuma rendeu provas definitivas de matéria escura. O Grande Colisor de Hadrões, que deverá retomar operações em 2015 após ter sido desligado para efeitos de manutenção e actualização, poderá atingir níveis de energia suficientemente elevados para produzir algumas partículas de matéria escura. No entanto, as probabilidades são difíceis de avaliar, porque as massas das desejadas partículas não são bem conhecidas.

 

POR ESTRANHO QUE SEJA O ENIGMA DA MATÉRIA ESCURA, ele parece quase banal em comparação com o fenómeno misterioso da energia escura, designado pelo astrofísico Michael Turner como “o mais profundo mistério de toda a ciência”.

Michael Turner cunhou o termo “energia escura” depois de, em 1998, duas equipas de astrónomos terem anunciado que a velocidade de expansão do universo parecia aumentar. Os astrónomos chegaram a esta conclusão estudando uma classe particular de estrelas explosivas, suficientemente luminosas para serem visíveis a grande distância e suficientemente coerentes em termos de luminosidade para serem úteis ao registo das distâncias a que se encontram as galáxias mais isoladas. A atracção gravítica mútua entre as galáxias funciona como travão à expansão do universo e os astrónomos imaginavam que esta estivesse a abrandar. Em vez disso, descobriram precisamente o contrário: com o tempo, o universo está a expandir-se velozmente e isso tem vindo a verificar-se nos últimos cinco a seis mil milhões de anos.

Na actualidade, os observadores desenvolvem cartografia do universo com um rigor sem precedentes, procurando provas de quando a energia escura surgiu e se esta se manteve constante em termos de força ou se tem vindo a tornar-se cada vez mais forte. Têm a seu favor a vantagem de poderem olhar para o passado: quando os investigadores estudam uma galáxia a milhares de milhões de anos-luz da Terra, vêem-na como ela era há milhares de milhões de anos. No entanto, são limitados pela capacidade dos seus telescópios e detectores digitais. Agora, como no passado, o estudo mais rigoroso da história cosmológica exige a construção de melhor equipamento.

Essa exigência está a encontrar resposta em projectos como o Censo Espectroscópico de Oscilação de Bariões, que utiliza um telescópio com 2,5 metros instalado em Apache Point, no Novo México, para cartografar distâncias cósmicas com uma inaudita precisão de 1%. Entretanto, o Censo de Energia Escura utiliza o telescópio Blanco, de quatro metros, instalado nos Andes chilenos, para recolher dados de trezentos milhões de galáxias. O telescópio espacial Euclides, da Agência Espacial Europeia, com lançamento agendado para 2020, foi concebido para fazer medições exactas de dinâmicas cósmicas ocorridas nos últimos dez mil milhões de anos. As expectativas são também elevadas no que diz respeito ao Grande Telescópio de Levantamento Sinóptico (LSST), actualmente em construção na região centro-norte do Chile, a alguns quilómetros do telescópio Blanco. Este instrumento atarracado com 8,4 metros de comprimento e elevada velocidade fotográfica foi equipado com a maior câmara digital alguma vez concebida e captará repetidamente imagens das profundezas do universo observável, realizando o varrimento do céu austral com a frequência máxima de dez vezes por mês.

Com estas ferramentas, os cosmólogos esperam reconstituir a história do aparecimento da energia escura e da sua influência, através de medições directas da velocidade da expansão cósmica no passado.

Eles esperam obter respostas decisivas sobre o futuro do universo e do seu estudo. Se vivermos num “universo em fuga”, cada vez mais dominado por energia escura, a maioria das galáxias acabará por ser levada para longe do nosso alcance, deixando os cosmólogos do futuro com pouco para observar além do bairro galáctico vizinho e do negrume do espaço.

 

 

Num futuro mais próximo, a compreensão da energia escura poderá exigir melhorias radicais na forma como concebemos o próprio espaço. As vacuidades entre os planetas e as estrelas foram durante muito tempo consideradas nadas absolutos, embora Isaac Newton admitisse que não imaginava como a gravidade poderia manter a Terra a girar à volta do Sol se o espaço entre eles fosse completamente vazio. No século XX, a teoria quântica de campos deu o seu contributo para a questão, demonstrando que o espaço nunca está realmente vazio, sendo banhado por campos quânticos presentes literalmente em toda a parte. Os protões, os electrões e outras partículas, frequentemente descritos como elementos constitutivos da matéria, são eles próprios excitações dos campos quânticos. O espaço parece vazio quando os campos enlanguescem os seus níveis de energia mínimos. Mas quando os campos são excitados, o espaço ganha vida com matéria e energia visíveis. O matemático Luciano Boi compara o espaço à água num sereno charco alpino: invisível quando calma, mas evidente quando uma brisa desenha ondas sobre a sua superfície. “O espaço vazio não está vazio”, disse em tempos o físico norte-americano John Archibald Wheeler. “É o lugar da mais rica e surpreendente física.”

 

 

A energia escura pode vir a provar que ele foi profético à maior escala possível. Para compreender a forma como o espaço cósmico infla e a razão pela qual parece inflar cada vez mais depressa, os físicos dependem essencialmente da teoria geral da relatividade de Einstein, elaborada há um século. A teoria funciona bem quando aplicada à grande escala, mas cede a nível microscópico, onde a teoria quântica impera e onde se pensa residir a causa subjacente à aceleração da expansão cósmica. A explicação da energia escura poderá exigir algo novo: uma teoria quântica do espaço e da gravidade.

Os cientistas vêem-se confrontados com o facto embaraçoso de simplesmente não saberem quanta energia, escura ou de outro tipo, o universo contém. Os peritos em teoria quântica obtêm um valor elevado quando tentam calcular quanta energia reside, por exemplo, num litro de espaço aparentemente vazio. No entanto, os astrónomos que procuram realizar o mesmo cálculo com base nas suas observações de energia escura obtêm um valor baixo. A diferença entre os dois valores é assombrosa: dez elevado à 121.ª potência, ou seja um 1 seguido de 121 zeros, valor largamente superior ao número de estrelas do universo observável ou de grãos de areia no planeta. É a maior disparidade entre teoria e observação em toda a história da ciência. Torna-se evidente que falta aprender algo de importância fundamental sobre o espaço e, consequentemente sobre tudo, uma vez que as galáxias, as estrelas, os planetas e as pessoas são essencialmente compostos por espaço.

E contudo no passado foi precisamente este tipo de enigmas que abriu as portas à descoberta. A teoria da relatividade geral de Einstein foi parcialmente inventada para resolver discrepâncias minúsculas entre as órbitas prevista e observada de Mercúrio. A física quântica surgiu em parte devido a pequenas interrogações acerca da forma como o calor é irradiado. Quanto mais poderemos então aprender solucionando as confusões actuais, muito maiores, sobre a matéria escura e a energia escura? Como o físico Niels Bohr costumava dizer, “sem paradoxo, não há progresso”.