Cidade oculta
Todos os dias, sem que ninguém o perceba, arqueólogos escavam camadas da história da cidade de São Paulo. Tanto encontram peças recentes de uso doméstico como segredos do primeiro imperador.
Gravura de Charles Simon Pradier, a partir da pintura de Jean Baptiste Debret. 1817-1819. Palácio Nacional de Queluz, PSML
No bulício diário de uma cidade como São Paulo, não é improvável que um acontecimento que pode mudar a história ocorra no subsolo. Agora. Sem um anúncio prévio. Sem nada que o possa distinguir.
Na véspera do feriado da Páscoa de 2012, o caos do trânsito paulista materializou-se logo no início da tarde no bairro do Ipiranga, sobretudo em redor da praça que circunda o monumento erguido nas imediações do riacho onde, em 1822, Dom Pedro IV (Dom Pedro I, do Brasil) proclamou a independência da nova nação. Poucos sabem, mas o imperador ainda lá está, cerca de dez metros abaixo da rua, num mausoléu de paredes de mármore negro. Repousa ao lado das suas duas esposas, Leopoldina de Habsburgo e Amélia de Beauharnais-Leuchtenberg. Hoje, a cripta imperial está fechada para um ritual solene. Passa das 15 horas quando dois padres carmelitas começam a rezar o pai-nosso em latim, diante de cientistas e representantes da família real. Pela primeira vez em 180 anos, os restos de Dom Pedro serão exumados.
O corpo está envolvido em três caixões. O externo, de pinho, tem ferragens de prata com representações de dragões, espadas e os brasões de Brasil e Portugal – é um sinal da ideologia de 1972, apressa-se alguém na sala a argumentar, pois esse foi o ano em que o caixão foi enviado para o Brasil numa manifestação de afinidade entre os dois países. No interior, há uma urna de chumbo amassada e, por fim, está o caixão, de madeira rudimentar, que encerra as ossadas. Muitas pessoas usam máscara para evitar a inalação de fungos. Quando o último caixão é enfim aberto, Dom Pedro ressurge no Brasil numa versão sem retoques nem nobreza. Sem glamour. O esqueleto tem a nuca fora do lugar e a cabeça voltada para a direita. Um buraco na base do crânio atesta um procedimento realizado após a morte, em 1834, para se retirar o cérebro. Os presentes observam, um de cada vez, estupefactos. Sou convidado a espreitar também. Boa parte dos ossos está submersa numa montanha de cinza e tecidos decompostos e noto que se assemelham a uma mistura insólita de cascas de árvore cobertas por açúcar.
A máscara sufoca-me e tenho de sair para respirar. Na rua, São Paulo prossegue com indiferença: um praticante de skate quase me atropela assim que saio do monumento. Adolescentes jogam à bola na praça ou conversam pelo telemóvel junto da figura de bronze do imperador no seu cavalo, empunhando a espada e gritando pela independência. A vida flui com ligeireza nesta tarde da véspera de feriado. Creio que o imperador ficaria feliz ao vislumbrar, quase dois séculos depois, o país que ajudou a criar em 1822, o mesmo ano em que se recusou a voltar para Lisboa (“Fico”, terá dito) e em que soltou o célebre grito do Ipiranga.
Na cripta, a sua memória começa a ser resgatada e a emoção toma conta do ambiente. Valdirene do Carmo Ambiel é historiadora e arqueóloga. Coordena a cerimónia como uma anfitriã do nobre português e pede a palavra. “Dom Pedro I foi o maior dos Braganças. Formou um país, foi um pai excelente e um militar exemplar”, diz. “Agora, finalmente, está em casa. E vamos tratar dele.”
A CIDADE DE SÃO PAULO NÃO É COMO ROMA ou Lisboa, repletas de catacumbas milenares, nem Paris, com a sua rede de galerias subterrâneas, ou muito menos o Cairo, no Egipto dos faraós. Aos poucos, porém, a maior metrópole do hemisfério sul descobre uma conexão com o seu subsolo, numa actividade que começa a lançar luz sobre episódios, personagens e lugares obscuros. Os arqueólogos estão por todo o lado. Dentro da cripta imperial, procurando entender a história de um período decisivo de Portugal e do Brasil, numa investigação forense. Ou na rua, descortinando os hábitos domésticos das famílias que viviam neste território antes do início das grandes obras urbanas. Ou escavando sítios pré-históricos surpreendentes – um dos quais com vestígios de milhares de anos no luxuoso bairro do Morumbi.
A nova arqueologia urbana desfaz uma caricatura. “Na maior parte das vezes, a matéria-prima da actividade é o objecto. Por isso, tanto se pode encontrar um arqueólogo no interior da Amazónia como na zona urbana, pesquisando uma rede de drenagem de esgotos”, define Paulo Zanettini, um dos mais experientes arqueólogos brasileiros. “O nosso trabalho é identificar algo que já não está visível. Expor aquilo que o tempo encobriu”, diz. “Longe das figuras de Indiana Jones ou de Lara Croft, que procuram cidades perdidas ou tesouros que levarão para museus, o que nos interessa é saber como era a sociedade e como se transformou. Lidamos com objectos do quotidiano, que explicam como as pessoas comiam, dormiam ou educavam os filhos. É o resto da cama, do botão da roupa, do prato onde se comeu.”
“Na cidade, a camada de asfalto é, em teoria, a última de um grande e despercebido sítio”, explica Rafael de Abreu e Souza, enquanto caminha a meu lado, diante do mais bem acabado retrato das transformações paulistanas que alimentam o trabalho de arqueólogos como ele. Olhamos para o alto. O tecto de um vão livre com 40 metros de largura reflecte, em espelhos azulados a 20 metros do chão, uma modesta casinha colonial do século XVIII, agora integrada no jardim de um novo projecto empresarial no bairro do Itaim. A cena intriga peões e condutores e é um elo entre dois mundos. Enquanto um exército de operários finaliza o acabamento desse monumento ao futuro, um punhado de jovens empunha pás, espátulas e peneiras para procurar no solo resquícios de ocupações do lugar.
No coração desta área nobre, o terreno foi negociado por duas vezes por valores recordes: a última, em 2011, envolveu 195 milhões de euros, na maior transacção deste âmbito no município. O empreendimento que se ergueu ali faz jus aos valores: o edifício Pátio Bandeiras possui duas torres de 19 andares interligadas por outra de 11 pisos, as três alinhadas na cobertura por uma laje de cinco mil metros quadrados. Abriga a sede do Google e de bancos de investimento e é o endereço comercial mais caro do país.
Dom Pedro IV foi o protagonista do grito do Ipiranga em 1822, recusando regressar a Portugal como lhe mandava o pai, Dom João VI. Esse foi o momento fundador da independência brasileira.
BRIDGEMAN / AIC
MUITOS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS de São Paulo foram estudados com o impulso das chamadas “operações urbanas”, instrumentos legalmente consolidados em 2001, através dos quais o poder p��blico investe na melhoria das infra-estruturas para a chegada de empreendimentos privados. Em tese, serviriam para revitalizar áreas decadentes, mas os críticos acusam-nas de servirem mais o mercado imobiliário do que a recuperação patrimonial. “Apesar de algumas controvérsias, as operações trouxeram a arqueologia à rotina da cidade”, comenta Paula Nishida, coordenadora do Centro de Arqueologia de São Paulo. “A expansão da construção civil permitiu o estudo e o acesso aos locais.”
Desde o fim de 2002, todos os empreendimentos de médio ou grande porte em áreas de relevância histórica e “capazes de afectar o património arqueológico” passaram a necessitar de licenças. A chamada “arqueologia de contrato” criou um mercado de trabalho, atraindo ao sector uma legião de recém-formados nas áreas humanas, sobretudo de história. Os jovens, desde cedo, trabalham sob pressão, pois há conflitos frequentes entre a urgência dos construtores e o ritmo dos investigadores. Nem sempre o embargo da obra é feito a tempo de impedir perdas irreparáveis. “Não podemos contentar-nos em sermos meros emissores de licenças, sem antes entendermos a história oculta dos sítios. Não se pode desumanizar o espaço”, critica Rafael de Souza.
O objectivo desta vaga de investigação é entender o processo de ocupação de São Paulo. Mas a interacção com um sítio muitas vezes associado aos bandeirantes (embora nem sempre se comprove a sua ocupação de uma casa histórica) talvez também sirva para uma revisão da controversa imagem destas personagens – às vezes retratadas como audazes desbravadores, às vezes como crápulas que investiam no recrutamento de mão--de-obra para o trabalho nas plantações de trigo do planalto paulista. Para obter lucro, vendiam o excedente — escravos ou trigo. “Um grupo de meia dúzia seria acompanhado por legiões de indígenas, que também beneficiavam desse esquema de apresamento de tribos inimigas”, comenta o arqueólogo. “Os bandeirantes terão sido protocapitalistas.” Faziam negócios que pareciam correctos na ética da época. “Talvez não fossem muito diferentes de nós.”
Para Valdirene Ambiel, que usou técnicas forenses para investigar os corpos da família real, a história do Brasil muitas vezes produziu-se em torno de rumores que, reproduzidos ao longo dos séculos, tornaram-se gradualmente verdades. Dispondo de métodos e técnicas modernos e com capacidade para lidar com fontes diferentes das utilizadas pelos historiadores tradicionais, a arqueologia “tem a oportunidade de, por fim, elucidar a biografia de muitas personagens históricas”, avalia. “Podemos investigar pessoas e questões com centenas de anos ou produzidas há apenas um minuto. Em vários países, a arqueologia forense serve para resolver casos criminais.”
Uma das questões que a incomodam, na verdade, é quase um caso de polícia na corte: a hipótese de que a morte de Dona Leopoldina (1797-1826) possa ter tido como causa indirecta um confronto com Dom Pedro IV. Algumas biografias reduzem o imperador a uma personagem truculenta tanto na forma de governação como no trato com as suas esposas. Essas descrições culminaram na lenda de que um pontapé teria precipitado o aborto que levou a imperatriz à morte, nos últimos dias de 1826. “Dizem que ela rebolou pelas escadarias do palácio na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, onde viviam. No Museu Nacional, ainda há quem acredite que vê o seu fantasma”, diz.
Em busca de respostas, ao longo de sete meses, de Fevereiro a Setembro de 2012, Valdirene fez da cripta a sua segunda casa, coordenando uma equipa de cientistas num projecto multidisciplinar pioneiro – física, química, diversas áreas da medicina – para análises dos três corpos reais. A investigadora defendeu a sua dissertação de mestrado no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo precisamente sobre essa questão. Na arqueologia forense, pretende-se identificar tudo o que envolveu o óbito (desde a causa aos ritos funerários) para preservar os restos. Por isso, um amplo espectro do trabalho baseou-se na tentativa de entender não apenas as circunstâncias do óbito mas os processos usados para a conservação do corpo e os agentes da sua decomposição. “O meu projeto também foi um estudo da morte, das suas consequências e dos seus efeitos”, diz esta investigadora que prossegueo seu trabalho, agora no âmbito do doutoramento, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e que planeia no futuro investigar os escassos restos mortais remanescentes de Tiradentes (1746-1792), pioneiro do movimento independentista brasileiro, condenado à morte por Dona Maria I.
TEMPORADA NA CRIPTA
“O arqueólogo moderno já não trabalha sozinho. Há uma série de disciplinas associadas”, diz Valdirene Ambiel, que coordenou o estudo dos corpos imperiais. Para evitar a contaminação, os cientistas do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN) e do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) analisaram gases e fungos contidos nos caixões, como o da imperatriz Leopoldina. A fluorescência de raios X permitiu a identificação dos elementos químicos nos restos. À excepção das tomografias, todo o trabalho foi feito na cripta sob o monumento da Independência, cuja humidade constituiu sempre uma ameaça à conservação dos corpos.
A MORTE SURPREENDEU TODOS com um rosto contundente: para espanto dos cientistas, Dona Amélia (1812-1873), a segunda esposa de Dom Pedro IV, estava mumificada, com cabelo, pele, cílios, unhas e vários órgãos internos preservados. Descrita como um mulher de grande beleza e parente do ex-imperador francês Napoleão Bonaparte, casou-se por contrato com Dom Pedro em 1829 – tinha 17 anos, e ele, 31. Viveu menos de dois anos no Brasil, antes de acompanhar o marido no seu regresso à Europa, em 1831. “No Portugal do século XIX, os médicos aplicavam um tratamento apenas para impedir a decomposição até ao fim dos funerais, que duravam três dias. Mas o embalsamamento dela perdurou”, comenta Valdirene. Além disso, um novo tratamento foi dado ao corpo à data do seu envio definitivo para o Brasil, em 1982. Ao abrir agora a urna, os cientistas puderam sentir o aroma da cânfora, uma das substâncias usadas.
Em operações secretas, pela calada da noite, os três corpos reais foram levados para a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo para exames imagiológicos. Com as tomografias, os especialistas puderam examinar cada item em separado – o caixão, o corpo e as vestes. Descobriu-se que o vestido e a faixa com as quais Dona Leopoldina foi enterrada são os mesmos que usou na coroação de Dom Pedro, documentada num quadro do pintor neoclássico francês Jean-Baptiste Debret, que viveu no Brasil entre 1816 e 1831. “O vestido, para nós, surgiu como se fosse o bilhete de identidade da imperatriz”, explica Carlos Augusto Pasqualucci, médico e professor de patologia.
Técnicas de física atómica e nuclear, como a fluorescência de raios X, permitiram, pela primeira vez no Brasil, analisar contaminações em remanescentes humanos e materiais associados. “Nos restos de Dom Pedro, havia elevadas concentrações de chumbo, provenientes do caixão, além de cobre e zinco, possivelmente de objectos do vestuário, como botões e esporas”, diz Márcia Rizzutto, do Instituto de Física da mesma universidade paulista. Um acelerador de partículas foi usado para certificar que as medalhas do imperador foram feitas com uma liga de ouro, prata e cobre; a tecnologia é conhecida por PIXE (sigla, em inglês, para “emissão induzida de radiação X por partículas”). “São métodos não destrutivos de análise, usados para aferir a autenticidade em obras de arte, como pinturas. No nosso caso, serão importantes para a preservação dos artefactos recolhidos”, completa Valdirene.
De cabelo curto, olhar melancólico e gestos suaves, a arqueóloga preserva convicções monárquicas e prefere não discutir se Dom Pedro IV foi um herói ou vilão na história dos dois países, como sugerem certas biografias. Interessa-lhe mais a figura humana. Nascido em Portugal e criado no Brasil, o jovem herdeiro da casa real de Bragança não desfrutou da mesma formação fina da sua esposa Leopoldina, uma Habsburgo, das dinastias mais nobres da Europa. “Ele não foi educado para ser monarca. Muito jovem, aceitou a responsabilidade de construir uma nação, sem estrutura emocional e intelectual para isso. E teve o azar de perder cedo Leopoldina, que fora preparada para governar e que dava todo o apoio ao marido”, diz.
Elevado à posição de príncipe regente num período político turbulento, após o regresso de Dom João VI a Portugal, em 1821, o herdeiro do trono português – cujo nome completo é Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon – incorporou o espírito liberal que culminou na independência do Brasil, enfrentando a resistência de tropas leais a Portugal e os movimentos de secessão em regiões isoladas de um país que nascia enorme, pobre, analfabeto, escravocrata e refém da economia agrária do latifúndio. Formou exércitos, batalhou pela integridade territorial, promulgou duas Constituições ousadas – a primeira, de 1824, permitia, por exemplo, liberdade religiosa – e defendeu a sua causa ideológica perante os absolutistas, como o seu irmão Dom Miguel, contra o qual decidiu combater em Portugal, abdicando do trono no Brasil em Abril de 1831.
Era baixo para os nossos padrões: media entre 1,67 e 1,73 metros, segundo atestam os estudos na cripta. Gostava de exercício físico, caça e marcenaria, mas aventurou-se na música; compôs até missas, diz Valdirene. A equitação foi um hobby e, em parte, o seu calvário. A tomografia revelou fracturas em quatro costelas do lado esquerdo, com sequelas graves num dos pulmões, provenientes de acidentes equestres – um deles de carruagem, quando estava na companhia de Dona Amélia e da filha Maria da Glória (mais tarde, Dona Maria II), em 1829.
As lesões, cogitam os especialistas, podem ter agravado a tuberculose, que o vitimou, aos 36 anos, em 1834, em Queluz, precisamente no quarto Dom Quixote, onde nascera e que, por coincidência, o Palácio Nacional de Queluz acaba de apresentar ao público, já restaurado.
Smithsonian Institution/Art Resource
PSML
Ao abdicar da coroa três anos antes, Dom Pedro não desfrutava do mesmo prestígio. Pressionado por problemas políticos, era condenado na opinião pública pela sua buliçosa vida sentimental: teve 18 filhos, com as suas duas esposas e várias amantes – a mais famosa das quais, Domitila de Castro Canto e Melo, a marquesa de Santos. Nenhuma insígnia brasileira estava entre as cinco medalhas encontradas junto dos restos mortais do rei. As suas roupas também não fazem referência ao império dos trópicos que ajudou a conceber. O primeiro imperador do Brasil foi enterrado como Dom Pedro IV de Portugal, com botas de cavalaria, abotoaduras, esporas e botões da farda típicos de um general. “Ele não queria deixar o Brasil”, comenta Valdirene. “O seu temperamento não era de português, mas de brasileiro. Inclusivamente no defeito de ser mulherengo.”
A investigadora aceita a hipótese de que Dom Pedro tinha um histórico de violência doméstica – tolerável na sociedade patriarcal da época –, mas os resultados dos exames reforçam, agora, a convicção de que não existiu qualquer atentado contra a vida da sua primeira mulher. A tomografia de Dona Leopoldina não revelou marcas de fractura. A arcada dentária estava preservada; apenas um dente não foi localizado. “A imperatriz atravessava um momento psicológico difícil. Estava triste pelo tratamento dado pelo marido à marquesa de Santos. A traição tornou-se pública. Além disso, ela teve gestações sucessivas e nunca se adaptou ao calor do Rio de Janeiro. Estava deprimida, grávida e fragilizada”, diz Valdirene.
As datas também ajudam a defender Dom Pedro IV, argumenta a arqueóloga, que investigou documentos do Museu Imperial, em Petrópolis. O imperador saiu do Rio em viagem à convulsionada província de Cisplatina (hoje Uruguai) em 23 de Novembro de 1826, mas a esposa só teve a gravidez interrompida a 2 de Dezembro. Com um pontapé ou outra agressão, ela abortaria numa questão de horas e não nove dias depois. “O aborto ocasionou febre alta e convulsão até resultar no óbito, no dia 11. Qual a causa exacta? Se o corpo estivesse tão preservado quanto o de Dona Amélia, teríamos mais recursos para saber”, analisa. “Mas podemos afirmar que a morte dela não foi provocada por nenhum acto de violência.”
A ARQUEOLOGIA, AOS POUCOS, revela os mistérios de São Paulo e as suas personagens. Mas a história oficial nunca é o limite. Mesmo os primeiros colonizadores da cidade, no século XVI, valeram-se de estruturas herdadas de ocupações passadas. Os vales em que correm os actuais rios Tietê e Pinheiros eram ocupados por aldeias dispersas, ligadas por uma rede de caminhos. “Algumas das ruas de São Paulo são trilhos que os índios abriram e dos quais os portugueses se apropriaram”, conta Paula Nishida.
Fundada por padres jesuítas em 1554, a vila ganhou importância pela sua posição geográfica estratégica, fosse por estar na rota de mineradores ou pelo controlo de vias fluviais. No século XIX, foi convertida em capital de província e ganhou a sua primeira Faculdade de Direito, no Largo de São Francisco, contribuindo para a afirmação política e intelectual da cidade. Com a cafeicultura, que trouxe milhares de imigrantes para trabalhar na lavoura e, depois, no emergente parque industrial, a população deu um salto impressionante: de 31,3 mil habitantes em 1872 para 580 mil em 1920 e mais de dois milhões na década de 1950.
Em certos bairros, essa súbita expansão ficou marcada no subsolo, onde todos os dias surgem novas pistas sobre o quotidiano de quem ocupou este espaço e de como vivia. Essa é a paisagem do arqueólogo urbano. “Algumas vezes, depois de sair de uma escavação numa área central de São Paulo, sinto que os transeuntes olham-me com pena e medo. Parecem pensar: pobre rapariga de classe média, toda suja de barro; tornou-se mendiga ou viciou-se em drogas e acabou na rua”, brinca Paula Nishida. Por enquanto, o arqueólogo é uma criatura invisível nas ruas da cidade, ao contrário do advogado de fato a caminho do escritório, do médico de branco, do estudante de mochila às costas ou do estafeta apressado. “Nessas ocasiões, já dei por mim a pensar como seria se o Indiana Jones tivesse de sobreviver em São Paulo”, diz ela. “O herói do cinema perdido no metropolitano, enfrentando o caos do trânsito, surpreendido por um temporal de Verão ou mesmo assaltado em plena rua. Seria, com certeza, a sua maior aventura.”
De regresso ao século XXI, terminamos em Queluz, onde na verdade tudo começou e acabou para Dom Pedro IV. Com pompa e circunstância, o Palácio Nacional apresentou ao público o restauro promovido no Quarto Dom Quixote, que permite observar, com renovado brilho, as elegantes pinturas, o mobiliário e lustre recuperados. Várias cenas da obra de Cervantes e do seu herói improvável tornam-se novamente palpáveis, apesar do desgaste e do incêndio de 1934. É impossível agora não associar o percurso aventuroso de Dom Pedro ao de Dom Quixote. Rei por morte do irmão mais velho, foi forçado a tomar parte em aventuras nas quais nunca se imaginara enquanto dormiu entre aquelas paredes. Fundou um império, foi rei de dois países, promulgou constituições ousadas e abriu a porta à regeneração da monarquia. Definitivamente, Dom Pedro IV não se saiu mal.
A propósito da investigação forense sobre Dom Pedro IV, o director da revista lembra uma certa tarde de Julho de 2006, aqui.