"Aterrámos em Marte"

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A 75 metros de profundidade, submersos no fundo do mar Báltico, jazem os destroços do maior navio de guerra da sua época. Afundou-se em plena batalha, em 1564. Agora, os arqueólogos descobrem os seus segredos.

Texto de Claus Lutterbeck

 

 

 

23h45

POR VOLTA DA MEIA-NOITE DO DIA 26 DE MAIO DE 2011, COMEÇARAM AS CELEBRAÇÕES A BORDO DO PRINCESS ALICE. O pequeno navio de investigação balouçava ao sabor das águas do Báltico, 15 milhas a norte da ilha sueca de Öland. O mar estava calmo e a noite de Primavera apresentava-se límpida. Christofer, o operador do sonar, encontrava-se sentado diante do ecrã, de postura tensa e olhar fixo nos sinais emitidos por um localizador instalado no fundo do mar. Nas últimas horas, o dispositivo detectava, sem margem para dúvidas, a presença de abundantes pilhas de pequenos destroços espalhados por uma zona extensa. Às 23h45, Christofer identificou uma silhueta maior. “Rapazes, olhem para isto!”, exclamou. Cinco homens debruçaram-se sobre o monitor. A 75 metros de profundidade, distinguia-se vagamente aquilo que um leigo identificaria como um punhado de fósforos despejado ao acaso. Os especialistas porém, reconheceram-no de imediato: o casco partido de um navio imponente, rodeado de inúmeros fragmentos. “Aqui está ele”, disse Richard Lundgren.

Mas seria de facto o Mars? O único modo de confirmar se aquilo que estava no leito marinho era o lendário navio de guerra sueco que procuravam há duas décadas implicava o envio das equipas de mergulho. O Mars, também conhecido como “o Irrepreensível”, afundou-se há quase 500 anos – a 31 de Maio de 1564 – numa batalha naval que durou vários dias, arrastando para o fundo cerca de setecentos marinheiros e militares suecos e alemães (algumas fontes referem mais de oitocentos). Nas últimas décadas, diversos mergulhadores e arqueólogos (além de salteadores) tinham procurado em vão os destroços.

Na verdade, o Mars não era uma embarcação qualquer. Tratava-se do “navio por antonomásia”, como explica Johan Rönnby, professor de arqueologia subaquática em Estocolmo. “Em meados do século XVI, era o navio de guerra mais moderno do mundo.” O veleiro de maior comprimento, de maior pontal, o mais bem apetrechado. E, pelos vistos, o que transportava a carga mais valiosa: segundo a lenda, carregava as arcas suecas de guerra. Na Guerra nórdica dos Sete Anos (conhecida também como a Guerra das Três Coroas), travada entre 1563 e 1570, o Mars era o orgulho da frota sueca. A Suécia lutava contra a Dinamarca e Lubeque para arrebatar à coligação o domínio sobre as rotas comerciais, embora, em teoria, o casus belli fosse a disputa que deu nome à guerra: o rei Frederico II da Dinamarca continuava a usar no escudo de armas as três coroas suecas, apesar de a Suécia já ser um reino independente desde a coroação de Gustavo I Vasa em 1523.

O filho de Gustavo, Eurico XIV, não perdeu tempo e usou de imediato a provocação como pretexto, declarando guerra. O seu rival dinamarquês também procurava o confronto, pois o verdadeiro problema não era a presença de três coroas num escudo de armas, mas a hegemonia sobre o Báltico. Naquele momento, o lucrativo comércio marítimo continuava dominado pela Dinamarca e, em menor escala, por Lubeque. A cidade hanseática sempre mantivera boas relações com Estocolmo, mas temia que os suecos passassem a controlar também o comércio com a Rússia. As restantes cidades hanseáticas abandonaram Lubeque à sua sorte. Já nada restava das glórias passadas da Liga Hanseática. Aquela que em tempos fora uma poderosa aliança de cidades alemãs desintegrava-se devido a discórdias mesquinhas.

 

 

EM MAIO DE 2011, quando Richard Lundgren, o seu irmão Ingemar e o seu amigo Fredrik Skogh realizaram o primeiro mergulho para investigar os destroços do naufrágio, a visibilidade pouco ultrapassava os dois metros. À luz de lâmpadas LED, conseguiram distinguir pranchas carbonizadas de carvalho. A proa estava arruinada e, pelas aberturas do costado de bombordo, espreitavam os canhões que se haviam tornado vermelhos incandescentes durante a batalha, rebentando ao afundar-se. Um canhão de bronze com cinco metros de comprimento repousava sobre a areia do fundo. Quando os três mergulhadores descobriram o escudo de armas de Eurico XIV não restou qualquer dúvida. Sobre aquele afloramento rochoso jazia efectivamente o vaso de guerra mais rico e potente da sua época. Não fora baptizado à toa com o nome Mars, Marte, o temível deus romano da guerra. Embora ninguém o ouvisse, Richard gritou de euforia dentro da máscara de mergulho: “Aterrámos em Marte!”

A descoberta causou grande sensação. Os arqueólogos estão mais do que habituados a que o Báltico os presenteie com achados emocionantes (estima-se que nas baixas profundezas daquele mar interior, coloquialmente conhecido como “a banheira”, existam cerca de cem mil embarcações naufragadas), mas não é todos os dias que se encontra um navio tão antigo e significativo como o Mars, e muito menos em tão magnífico estado de conservação.

Em praticamente nenhuma outra massa de água do planeta se verificam condições tão boas para a conservação de objectos de madeira. Nas águas salobras do Báltico, um navio de madeira de carvalho poderia resistir relativamente incólume até mil anos, graças a três factores decisivos: águas pouco oxigenadas, baixa salinidade e, sobretudo, a ausência de Teredo navalis. Este molusco vermiforme, um voraz xilófago que pode atingir 60 centímetros de comprimento e dois de largura, só sobrevive nas águas salgadas do Atlântico ou do Pacífico, onde se dedica a devorar a madeira até esta ficar, literalmente, pulverizada. Do ponto de vista ecológico, pode ser uma bênção, mas para os arqueólogos, o verme é uma praga pavorosa que quase sempre leva a sua avante.

O pior flagelo do Báltico são os mergulhadores que, com as suas acções indiscriminadas, saquearam e arruinaram inúmeros navios naufragados. Para proteger a descoberta do Mars, o Estado sueco – proprietário dos destroços – tomou medidas drásticas. As coordenadas 57º 8’ 25,48” N, 17º 20’ 56,43” E foram consideradas zona restrita: os pescadores não podem lançar as suas redes no local e é proibido largar âncora e utilizar o sonar. Para garantir o cumprimento destas medidas, o exército mantém vigilância sobre o local via satélite, uma base de submarinos nas proximidades controla a zona por radar e a guarda-costeira patrulha-a de barco.

“Os mergulhadores têm má fama”, diz Carl Douglas, entre gargalhadas. “E existem razões para tal. Infelizmente, há muitos que não têm a menor consideração.” Este conde sueco de linhagem ancestral tem paixão pelo mergulho. Nos últimos 20 anos, localizou inúmeros navios naufragados, contando para tanto com o apoio de uma das suas empresas, a Marin Mätteknik (MMT). Com 300 funcionários e uma frota de seis navios especializados, a MMT analisa o leito marinho e fornece informações especializadas aos gigantes internacionais dos sectores do petróleo, do gás e da electricidade. A MMT também sondou o traçado do Nord Stream, o gasoduto russo-alemão.

No entanto, a verdadeira paixão deste empresário abastado é a arqueologia subaquática. Há três anos que cede, a título gratuito, o uso dos seus navios equipados com sonar à equipa de investigação do professor Johann Rönnby. Carl participa sempre que pode. Aliás, já realizou 26 mergulhos ao Mars. “A identificação da insígnia da casa de Vasa num dos canhões foi um momento muito emocionante para mim.” Não é de admirar: Carl é descendente da dinastia Vasa. Entre os seus antepassados está Margareta Eriksdotter, irmã do próprio Gustavo I Vasa. O lendário pai da pátria sueca ofereceu à sua irmã uma propriedade em Estocolmo onde hoje, 22 gerações mais tarde, reside o conde Carl Douglas, que acaba de nos explicar: “Foi um gesto inaudito. Gustavo I não renunciava a nada voluntariamente.”

 

 

 

SÃO SETE HORAS DA MANHÃ em Böda Hamn, um pequeno porto na extremidade setentrional de Öland. Estamos em finais de Julho de 2014 e reúne-se aqui a frota que zarpa rumo ao navio naufragado sempre que o tempo o permite. Vinte homens de T-shirt e chinelos estão sentados no cais, comentando com bom humor o plano de trabalho do dia, enquanto tomam o pequeno-almoço. Carl Douglas parece um viking dos tempos modernos: físico poderoso, barba loura ligeiramente grisalha, olhos azuis e voz firme. Organiza os mergulhadores aos pares. Sobre uma placa, desenha o cronograma com marcadores coloridos: o mergulho técnico exige uma logística perfeita. A reunião matutina termina vinte minutos depois.

Entre os membros desta equipa especial de investigação dirigida por Johann Rönnby e pelo Instituto MARIS (Instituto de Investigação Arqueológica Marítima da Universidade de Södertorn), organismo de que Johann é responsável, reina o ambiente descontraído de uma excursão escolar. Cinco embarcações e mais de quarenta mergulhadores, arqueólogos, informáticos e voluntários dedicarão vários anos à reconstituição do Mars. Ninguém receberá remuneração, ninguém obterá qualquer benefício, muitos sacrificam as suas férias de Verão e investem aqui bastante dinheiro. Todos se orgulham de fazer parte de uma experiência arqueológica sem paralelo.

“O nosso modelo de negócio é singular”, explica Richard Lundgren, que dirige a empresa Ocean Discovery juntamente com o seu irmão Ingemar. “Equacionamos cada cêntimo gasto.”

Os dois irmãos são mergulhadores profissionais desde os 16 anos. Richard participou na exploração do HMHS Britannic, o navio-irmão do Titanic. Ingemar é perito em informática: monta os fragmentos do Mars num modelo tridimensional. Optaram por este procedimento porque o navio naufragado não flutuará de novo, ao contrário do Vasa de Estocolmo ou do Mary Rose de Southampton, mas será reproduzido sobre terra firme com a ajuda de uma impressora 3D, a partir de medições digitais recolhidas in situ. O projecto não é organizado nem financiado pelo Estado, mas única e exclusivamente por indivíduos e empresas, incluindo fundos da Fundação Waitt e da National Geographic Society.

O resgate do Mars, despedaçado por uma explosão, seria uma tarefa titânica. Os mergulhadores desportivos não podem descer abaixo de 40 metros de profundidade. Os mergulhadores técnicos, carregados com equipamentos dispendiosos pesando mais de 60 quilogramas, podem descer a maior profundidade graças aos CCR (recirculadores em circuito fechado) que permitem trabalhar a 75 metros de profundidade. A descida até aos destroços do navio é rápida: demora apenas cinco minutos, mas a subida parece durar uma eternidade: são duas horas, de modo a garantir a compensação gradual da pressão. Uma vez que a temperatura da água pode rondar quatro graus no fundo do mar, incluindo no Verão, os mergulhadores não podem trabalhar mais de meia hora seguida, sob risco de congelação dos dedos, enfiados em aparatosas luvas de neopreno.

Há dois anos que a equipa fotografa todos os milímetros do Mars a partir de diferentes ângulos. Cada mergulhador capta quatrocentas imagens por sessão. O maior perigo verifica-se quando se torna necessário aceder ao interior do navio.
É habitual encontrar redes de pesca enrodilhadas nos destroços, o que pode ser uma armadilha para os mergulhadores. Por essa razão, todos levam à cintura uma faca para conseguirem libertar-se delas sem demora, em caso de emergência. “Quando estamos perante um navio como o Mars, até parece que o esforço não custa nada e esquecemo-nos dos incómodos. Às vezes, sentia arrepios, ficava com pele de galinha, não de friomas de emoção, por me sentir preso numa máquina do tempo que me tivesse feito recuar 500 anos”, relata Carl com entusiasmo.

Paralelamente à documentação fotográfica, o navio é medido ao milímetro recorrendo a tecnologias sonoras. Existem três operadores de sonar em funcionamento a bordo do Icebeam, um navio hidrográfico da empresa MMT. Utilizando 16 monitores, eles supervisionam não só os mergulhadores e o suporte de luzes que, suspenso cerca de dois metros acima dos destroços, projecta 400 mil lúmenes (uma lâmpada incandescente normal de 100 watts emite cerca de 1.400 lúmenes) sobre a superfície equivalente a um mini-estádio desportivo. Ao mesmo tempo, manuseiam um joystick para deslocar os robots que percorrem o fundo do mar, equipados com os dispositivos de sonar mais avançados do mundo. Ao contrário da equipa humana, os robots podem trabalhar dentro de água durante horas, recolhendo milhões de dados numa única jornada.

 

 

 

INGEMAR LUNDGREN está sentado sobre uma lona branca no parque de estacionamento portuário. À sua frente, disposto sobre mesas de campismo, encontra-se um conjunto de computadores e monitores. Diariamente, ao fim da tarde, ele descarrega os dados do dia. Deixa-os depois a correr durante a noite numa aplicação personalizada e, no dia seguinte, pode consolidá-los em modelos tridimensionais de grande precisão. Estes modelos permitem a cientistas como Niklas Eriksson, aluno de doutoramento de Johann Rönnby, analisar milhares de vigas e pranchas do Mars e montá-las no computador.

Niklas roda um desses fragmentos com o rato. Aquilo que para um leigo na matéria parece ser as voltas intricadas de um protector multicolor de monitor, para o cientista é uma revelação: “Interessantíssimo”, diz. “Parece uma viga do último porão de estibordo”, referindo-se às cobertas inferiores dos antigos veleiros de madeira, onde se armazenavam as provisões.

Até à data só se recuperaram fragmentos isolados do Mars para análise, entre os quais várias vigas, algumas moedas e três dos 120 canhões, um dos quais Ingemar Lundgren mediu e reproduziu (em menor escala) utilizando uma impressora 3D.

Como os artefactos arqueológicos submersos pertencem, na sua totalidade, ao Estado sueco, os investigadores tiveram de obter autorização para trazer à superfície três táleres de prata. “O seu estado de conservação era excepcional e conseguimos estudá-los de imediato, sem ser necessária limpeza”, recorda Richard Lundgren. As moedas, de 30 milímetros de diâmetro e 30 gramas de peso, foram fotografadas e georreferenciadas quando ainda estavam no fundo do mar – como todos os objectos, aliás – e, por isso, o lugar exacto da descoberta foi determinado com precisão milimétrica. Na face, mostram o rei Eurico XIV com coroa, ceptro e espada, e do outro lado o brasão do rei rodeado pela divisa latina Deus dat cui vult, “Deus dá a quem quer”: o clã nunca se distinguiu pela modéstia.

Deus dera a Eurico em abundância, ou, melhor dizendo, permitira que os senhores da dinastia Vasa se apossassem de tudo quanto quisessem. É assim que se explica que vissem na Reforma sueca a ocasião perfeita para expropriar os bens da Igreja. Fazer arados com as espadas? Eurico fez o oposto: confiscou os sinos de bronze dos templos católicos e mandou fundi-los para os transformar em canhões, com os quais equipou os seus navios. Segundo a lenda, foi deste gesto que nasceu a maldição do Mars: o navio esteve quase cinco séculos perdido devido a tamanha blasfémia.

 

 

EM MEADOS DO SÉCULO XVI, os alicerces da Europa foram abalados. A transição da Idade Média para a modernidade foi por vezes cruel e violenta. Muitas estruturas feudais medievais, vigentes durante séculos, perderam o sentido num abrir e fechar de olhos. Deus deixou de ocupar o centro da existência quando o Renascimento entronizou um novo soberano: o homem. A Igreja Católica perdeu a sua posição central. A Reforma luterana acabou para sempre com a ordem natural que entregava todo o poder nas mãos do papa e do imperador. O florescente Norte da Europa foi o que mais abraçou a fé protestante. Os astrónomos Copérnico e Galileu subverteram a antiga cosmovisão ptolemaica: a Terra deixava de ser o centro do universo.

Tudo isto se traduziu no aparecimento de um novo factor de poder: o estado territorial. Antigas e poderosas cidades-estado como Florença ou Lubeque deixaram fugir a oportunidade de se adaptarem aos novos tempos e perderam influência. Ducados, condados e estruturas poderosas como a Hansa ou a Ordem Teutónica desapareceram no Báltico. Não possuíam tamanho suficiente para um mundo que rapidamente adquiria dimensões gigantescas. Magalhães circum-navegava o globo, a Espanha e Portugal acumulavam riquezas incomensuráveis graças às suas colónias americanas, africanas e asiáticas e o comércio marítimo com a Ásia era activado em pouco tempo. Para participar na redistribuição do mundo, era imprescindível um Estado forte, um exército profissional e uma frota de navios de guerra modernos, armados com canhões.

Alguns monarcas mostraram-se conscientes dos sinais dos tempos. Foi o caso dos Vasas suecos. O rei Gustavo I Vasa (1496-1560) tinha libertado as paupérrimas terras agrícolas do jugo dinamarquês. Limitou os privilégios da nobreza, impôs o luteranismo como religião do Estado, implantou um elaborado sistema tributário, impôs o recrutamento militar obrigatório e fundou o primeiro exército permanente. Com os fundos obtidos na expropriação das propriedades da Igreja Católica, adquiriu a Lubeque a sua primeira frota naval – pequenos navios mercantes reconvertidos em vasos de guerra.

Gustavo mudou a Suécia, antes uma colónia dinamarquesa atrasada, transformando-a num Estado moderno. Mas o seu filho tinha sonhos ambiciosos: queria transformar o país numa grande potência. O próprio nome que adoptou, Eurico XIV, não deixava margem para dúvidas. Pouco lhe importava que, na realidade, não tivessem existido treze monarcas chamados Eurico antes de si ou que ele tivesse de usurpar uma linha fictícia de soberanos vikings da qual se proclamou descendente.

Foi um homem culto que cantava, tocava instrumentos e lia os clássicos em latim. Procurou sem descanso mulher nas cortes europeias e até chegou a propor casamento –recusado – a Isabel I de Inglaterra e a Maria Stuart. Mas, acima de tudo, era imparável nos seus anseios de poder. Os historiadores crêem que conhecia bem o famoso tratado de Nicolau Maquiavel, “O Príncipe”. Maquiavel foi um importante teorizador da política, não o canalha sem escrúpulos apresentado por diversas caricaturas actuais. Depois de analisar a fundo a atribulada época em que viveu, o culto diplomata florentino apresentou aos dirigentes da fraccionada Europa as bases teóricas para a sobrevivência.

Frases como “Nada é tão débil nem tão instável como a auréola de poder que não se sustenta em força própria” (citada por Maquiavel, mas da autoria de Tácito) espicaçaram o ânimo de Eurico XIV. Qualquer pessoa que pretendesse expulsar do trono os poderes tradicionais para criar novas estruturas precisava do financiamento necessário à formação de um exército.
O jovem sueco sabia onde encontrá-lo. As rotas comerciais que partiam do Báltico geravam lucros exorbitantes. Se conseguisse controlá-las, Estocolmo passaria a cobrar todas as taxas e impostos que até então tinham enchido as arcas de Lubeque ou de Copenhaga. E só havia uma forma de fazê-lo: a frota do rei deveria superar em dimensão e capacidade militar a de Frederico II da Dinamarca.

 

 

EM 1561, EURICO PROJECTOU A QUILHA de um navio sem precedentes no mundo. Nesse tempo, não existiam projectos de construção nem cálculos de estática. Estas inovações ainda tardaram dois séculos. “Nos estaleiros, trabalhava-se a olho”, explica o professor Johann Rönnby. “Cada construtor tinha os seus segredos que protegia zelosamente.” Nem sequer havia um sistema métrico para servir de orientação. Um pé não media sempre o mesmo e, por vezes, os barcos pesavam mais a bombordo do que a estibordo, porque o material fornecido pelos diferentes madeireiros diferia em espessura ou comprimento.

O século XVI já ia bem avançado e ainda se combatia no mar da mesma forma que em terra: corpo a corpo. As fortalezas flutuantes procuravam a colisão: quando a distância era suficientemente pequena, os soldados tentavam afundar o navio inimigo com bombas incendiárias que atiravam contra as velas de cânhamo. Quando a carga era valiosa, os atacantes lançavam fateixas para abordar o navio inimigo.

Eurico compreendeu antes dos outros que a artilharia estava prestes a transformar radicalmente as regras do jogo. Se construísse navios suficientemente sólidos para suportar o peso de um grande número de canhões, evitava o perigoso combate corpo a corpo e conseguia liquidar o inimigo a uma distância razoável.

Para a construção do Mars, foi fabricada uma armação colossal, tão grossa na parte inferior que até resistia às balas de canhão. Todo o casco foi construído com os melhores carvalhos, cujas curvas de crescimento deveriam coincidir exactamente com a curvatura da embarcação. “Era um sistema de construção muito caro”, explica Niklas. “Foi complicado encontrar aquela madeira. Um século depois já não existiam árvores adequadas.” Todos os reis ordenaram então que se plantassem carvalhos para este fim. “Foi em vão”, acrescenta Niklas. “Quando alcançaram a dimensão suficiente, já chegara a época das canhoneiras de ferro.”

O Mars tinha cinco pisos e duas cobertas reservadas à artilharia. “Essa táctica de construção só foi possível porque, sendo o casco fortíssimo, podia-se criar aberturas para os canhões nos costados”, explica Johann Rönnby. “Por essa razão este navio é tão interessante, representando uma charneira entre a Idade Média e o mundo moderno.” Sobre o casco com as novas cobertas erguiam-se os tradicionais castelos de proa e de popa. Tal como as muralhas de uma fortaleza, dificultavam a abordagem do navio pelo inimigo e, do alto, era mais fácil repelir os atacantes.

O Mars foi lançado às águas em finais de 1563. Com 1.800 toneladas, era o maior navio da Europa. Tinha os dois costados repletos de canhões – segundo Johann Rönnby, seriam 60 de cada lado – entre os quais um que pesaria 4,9 toneladas e que, até então, só se podia usar em terra. Canhões ligeiros podiam ser disparados do alto dos mastros, a partir dos cestos. O alvo daquele fogo de artilharia adivinhava-se facilmente, bastando para tal ouvir o nome que o povo dava ao navio: Jutehataren. Literalmente, “aquele que odeia os dinamarqueses”.

 

 

A GUERRA NÓRDICA DOS SETE ANOS rebentou em Maio de 1563. A Suécia ganhou as primeiras batalhas navais porque a Dinamarca subestimou o país vizinho. O almirante dinamarquês Herluf Trolle escreveu, indignado, ao monarca: é impossível capturar os suecos, pois eles recusam o combate corpo a corpo. Ainda não tinha percebido que essa era, precisamente, a táctica da Suécia: manter o inimigo à distância, impedindo combates de proximidade.

Em finais de Maio de 1564, a norte de Öland, o esplêndido Mars participou na sua primeira batalha naval. Uma crónica redigida em Lubeque no século XIX relata: «No dia 30 de Maio […], os suecos saíram com 40 magníficos navios e com todo o favor do vento, do sol e dos meteoros. E tudo assim posto, os dinamarqueses e os de Lubeque fizeram-lhes frente e começou uma batalha como jamais se vira no Báltico. Em primeiro lugar, os suecos dispunham de um grande navio, no qual o rei e o seu pai tinham trabalhado durante anos: dez pés mais comprido do que a Igreja de São Pedro de Lubeque, 700 almas a bordo, com 140 peças de ferro [...]. Como divisa ostentava uma imagem de Marte. E o capitão era Jakob Bagge, arqui-inimigo dos alemães.”

Na primeira jornada, os ventos foram favoráveis a Bagge. O sueco conseguiu manter o adversário à distância e afundar o Lange Bark de Lubeque. Porém, no segundo dia, a coligação formada pela Dinamarca e Lubeque conseguiu danificar o leme do Mars e incendiá-lo. Não o afundou porque o almirante Friedrich Knebel pretendia apropriar-se dos tesouros que viajavam a bordo. A partir do Engel, o porta-estandarte da cidade hanseática, iniciou-se a abordagem ao Mars que gerou uma carnificina. Segundo diria mais tarde Knebel no seu relatório ao senado de Lubeque, houve “500 mortos e 100 prisioneiros”.

Enquanto a voragem sangrenta do combate corpo a corpo se desencadeava em todas as cobertas, as chamas foram avançando até alcançarem o paiol do navio. O Mars explodiu, rebentando pela proa. Um cronista de Lubeque descreveu-o da seguinte forma: “Pouco depois de começarem a salvaguardar-se os cabedais e riquezas, o fogo assenhoreou-se do navio e o Mars saltou pelos ares num espectáculo atroz.” A documentação histórica indica que o navio comandante da esquadra sueca levava a bordo cerca de 200 mil táleres de prata e aproximadamente quatro mil moedas de ouro. “Um tesouro difícil de avaliar actualmente, mas que poderia equivaler a cerca de 13 milhões de euros”, explica Richard Lundgren.

O Mars deveria transportar esta soma tão exorbitante até às costas de Mecklemburgo para recrutamento de tropas. O rei sueco pretendia derrotar os dinamarqueses com a estratégia da tenaz: os mercenários atacariam a partir do Sul e ele, com o seu exército e frota, a partir do Norte. Se o tesouro ia a bordo do Mars quando o navio se afundou ou se os de Lubeque chegaram a apoderar-se dele no momento da captura é algo que os arqueólogos talvez venham a descobrir.

Depois de sofrer várias derrotas navais, a coligação alcançou um enorme êxito ao afundar o navio mais imponente da frota sueca. O almirante Knebel foi recebido em Lubeque com honras de herói. Ainda hoje é possível admirar a pintura daquela batalha na Sala Vermelha da autarquia de Lubeque. O navio sueco fizera tamanha sensação que logo foi encomendada a construção de um ainda maior, o Adler von Lubeque (Águia de Lubeque). Ao que tudo indica, este colossal veleiro de quatro mastros que nunca chegou a travar combate foi convertido em navio mercante depois da guerra e posteriormente desmantelado em 1581. Em 1570, ao concluir-se sem vencedor claro a Guerra das Três Coroas, Lubeque saiu como derrotada. A Suécia dominava o Norte do Báltico e a Dinamarca o Sul. A cidade hanseática deixara de ser um rival a ter em conta.

Caiu a noite em Böda Hamn. Todos os investigadores voltam a reunir-se no cais, debruçando-se agora sobre um jantar à base de bacalhau com batatas. Johan Rönnby está de volta, depois de “correr um bocadinho”, nas suas palavras, mas na verdade fez uma corrida de 20 quilómetros sobre a areia. Não tem aspecto de professor de arqueologia, mas de praticante de triatlo. Pela manhã, nada no Báltico durante uma hora. Durante o dia, anda de bicicleta. Hoje, está satisfeito: pôde finalmente retomar os mergulhos e as medições ao fim de uma semana de mau tempo e mar revolto.

Um triatleta sabe reconhecer uma corrida de fundo: “Nunca se tinha trabalhado assim. Recolhemos apenas o imprescindível e não trazemos praticamente nada até à superfície. Tudo deve permanecer no fundo, tal e qual ficou desde a explosão, há 450 anos.”

No passado, partes do navio teriam sido postas de novo a flutuar para serem sujeitas a laboriosos processos de conservação e armazenamento. O sítio alterar-se-ia pouco a pouco ou seria mesmo destruído por completo. A burocracia museológica geraria montanhas de papel, com diferentes instituições envolvidas em intermináveis disputas para decidir quem deveria suportar os custos da conservação. “Ao deixarmos tudo no seu devido lugar, poupamo-nos a esses dissabores”, comenta Johann. Em todo o mundo, está a ganhar terreno a opção de deixar intactos os objetos de valor arqueológico, limitando a intervenção ao levantamento digital e à sua reprodução com tecnologia 3D. Quanto melhor trabalharem as novas impressoras, mais exactas serão essas réplicas.

 

JOHANN GOSTA DE COMPARAR o local do achado a uma famosa pintura de Pieter Brüghel, o Velho, contemporânea do Mars. “O Triunfo da Morte”, de 1562, é a sangrenta representação de uma batalha do século XVI: uma carnificina de proporções apocalípticas. “Gostaria de conseguir o que Brüghel fez com a sua pintura: inspirar uma reflexão sobre a guerra”, diz. “Brüghel conseguiu-o com o seu quadro. Nós utilizamos tecnologias de ponta para tornar visível um campo de batalha submarino cuja imagem ficou congelada no tempo no dia em que foi travada: 31 de Maio de 1564.”